Neste décimo segundo episódio do Fronteira recebemos Manuel Carballa para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Manuel, companheiro da Alter ediciones, aborda os impactos políticos, sanitários e econômicos do coronavírus em território uruguaio, destacando a violência policial nos bairros periféricos de Montevidéu e a rápida precarização das condições de trabalhadores. Não fosse suficiente a crise material, a sociedade uruguaia tem vivenciado um enorme fluxo de teorias da conspiração e fake news que mobilizam o debate público. Contudo, para além das violências cotidianas, diferentes estratégias de solidariedade tem surgido contrapondo a lógica da barbárie. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos da Covid-19.
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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Manuel Carballa:
Olá, como estão?
Vou contar um pouco da situação que estamos vivendo com o coronavírus aqui no Uruguai. No Uruguai o coronavírus chegou nos primeiros dias de março, chegou da Europa acompanhando as classes média e alta de suas viagens de prazer e negócios.
Em 13 de março, segundo dados oficiais, foram confirmados os primeiros casos e a partir daí começaram a se espalhar pelo resto do território. Desde que a emergência de saúde foi declarada, morreram 4 pessoas de Covid-19 e em pouco mais de 20 dias atingimos cerca de 400 infectados, distribuídos em 12 dos 19 departamento do Uruguai, sendo que Montevidéu é o departamento com a maior quantidade de casos. Se prevê que em meados de maio atingiremos o pico de infectados e especula-se que o inverno será difícil.
O governo declarou quarentena, embora no momento não seja uma quarentena obrigatória. Para controlar isso, a polícia realiza patrulhas terrestres e aéreas, pedindo para as pessoas reduzirem a circulação nas ruas e evitarem a aglomeração de pessoas. Dependendo dos bairros, as patrulhas e os pedidos são feitos com um megafone, isso acontece nos bairros costeiros, que são os residenciais e das classes média e alta, ou esses pedidos e as patrulhas, são feitos com perseguições de moto e cassetetes na mão, nos bairros populares.
A quarentena e o confinamento é algo que apenas as classes média e alta podem garantir. Embora muito menos do que em outros países da América Latina, uma boa parte das classes populares no Uruguai também carece de saneamento, água potável, carecem de espaço real para estar confinados e muito menos recursos e espaço para a compra massiva e armazenamento de alimentos, e produtos de necessidades básicas, como todos necessitam.
Um vez que vírus se espalhe, se não for contido adequadamente, os efeitos sobre a saúde desses setores serão, sem dúvidas, os mais preocupantes.
As fronteiras atualmente estão fechadas. As que compartilhamos com o Brasil foram as últimas devido às dificuldades de controle que tem uma fronteira terrestre muito grande.
Desde que a emergência de saúde foi decretada, os centros educacionais foram fechados, sem data clara para o retorno às aulas. A educação é claramente afetada e os professores improvisam o que podem, e como podem, com educação a distância. No nível superior, a Universidade da República fechou as portas durante todo o primeiro semestre e os cursos não poderão ser presenciais. Igualmente, nos outros centros de estudos, a universidade e os docentes, estão improvisando com educação a distância.
A exigência de não circular pelas ruas ataca fortemente a população que vive da informalidade. Isso está acontecendo aqui, como em todo a América Latina. Esta crise também tem um forte impacto nas questões trabalhistas e está afetando cada vez mais setores. Em nosso caso, uma faixa cada vez maior de trabalhadores está sendo enviada para o seguro-desemprego. Para que tenham uma ideia, apenas nos primeiros três dias de abril, cerca de 20.000 pedidos de amparo para os trabalhadores sem seguros.
Um exemplo do conflito entre quarentena e trabalho, dentre os muitos que poderiam enumerar, é claramente expresso com as famílias de pescadores artesanais localizados no interior do país, que o governo não está permitindo que saiam para pescar, e eles dependem totalmente dessa atividade para viver e levar o dia a dia.
O governo está implementando um fundo para avaliar as diferentes situações e responder aos efeitos da crise produzida pelo coronavírus. Parte deste fundo é formado de uma porcentagem da renda de funcionários públicos com salários mais altos. Esta medida que afeta cargos políticos de confiança de assessoria também envolve outros trabalhadores e representantes sindicais. Justamente, alguns destes últimos, que desfrutam de salários 11 vezes superiores ao salário mínimo nacional, se opuseram à medida, que, de qualquer forma, será implementada nestes dias.
Obviamente, a dimensão da crise social e econômica que a pandemia nos deixará ainda não está clara e as consequências que estas deixarão talvez sejam muito mais importantes do que aquelas que deixará o problema de saúde.
Nesse período, surgiram várias expressões de solidariedade diante da situação, temos comedores populares nos bairros, alguns bares que se organizam com seus trabalhadores para oferecer pratos de comida à população mais vulnerável, algumas lojas e livrarias que oferecem apoios semelhantes. Também mães e pais de escolas de período integral se organizam para garantir um prato de comida, que antes era oferecido pela própria escola e, também, organizações sociais que coletam doações de vários tipos para distribuir às populações mais vulneráveis.
Apesar de que, já começou a acontecer que algumas destas ações solidárias, justamente os comedores populares, começaram a receberam desaprovação do governo, devido aos riscos à saúde, por conta do acúmulo de pessoas.
Por outro lado, o confinamento está agravando a situação de violência doméstica e, nessa situação, já foram registradas muitas denúncias. E também são as mulheres que, na maioria dos casos, encontram no confinamento maior vulnerabilidade e exposição a essas situações de violência.
Por outro lado, de diferentes setores, se começam a escutar exigências ao governo para que este forneça informações mais detalhadas e que divulgue, todos os dias, sobre o que está acontecendo.
Junto a isso, o que tem se visto é fluxo de desinformação que cresce dia a dia, a quantidade de notícias falsas é cada vez maior, e um pouco também por este motivo, cresce a confusão e o medo. A população, em geral, é perturbada, confusa, cética, entediada, raivosa, faminta, violenta, frustrada, ansiosa e oprimida.
Esta rede crescente de desinformação que inunda as redes sociais digitais consegue confunde ainda mais esta situação. E, por outro lado, tem um conjunto cada vez maior de pessoas precisa acreditar em teorias da conspiração para explicar os fenômenos com os quais estamos lidando, da mesma forma que precisávamos explicar nos tempos antigos relâmpagos e tempestades como expressões dos deuses, agora temos a necessidade de justificar esses fenômenos como resultado de conspirações. Parecem que estamos constituindo a nova religião politeísta da modernidade.
Enfim, é uma situação de crise de saúde, econômica, social e ecológica de muita complexidade e com muitas incertezas, mas também devemos assumir que a responsabilidade de cuidar de si tem um senso de solidariedade social.
Um dos efeitos principais do coronavírus é a paralisia dos vínculos. A consequência dessa pandemia parece ser a sociedade atomizada. Portanto, a luta que travaremos residirá em transformar as consequências dessa atomização; como poderemos transformar esta paralisia em lentidão; como oferecer soluções de decrescimento contra o mito do progresso e de vida mediada pela tecnologia; como transformar o confinamento em espaço-tempo de reflexão criativa; nesta quarentena que se realizam cuidados conscientes e solidários; à diminuição do consumo em benefício ecológico e diminuição consciente do consumo.
Se essa sociedade atomizada, que nos é apresentada por medidas de isolamento, se instalar como o modo de vida saudável, será mais difícil afrontar e enfrentar o ajuste econômico, que cairá, cedo ou tarde, sobre os setores populares.
Não teremos, portanto, a capacidade de fazer ouvir nossas vozes, mesmo se nos oferecerem ferramentas digitais para simular que estamos conectados, mas socialmente distantes.
O desafio que temos, nesta crise, é como fortalecer os laços solidários, como construir estas novas resistências, como cuidar-nos coletivamente e ter em mente que não devemos confundir a repressão e a violência dos Estados com os cuidados com a saúde.
Lhes dou um grande abraço.
Saúde.