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Fronteira #13 com Laura Fernández Cordero

Neste décimo terceiro episódio do Fronteira recebemos Laura Fernández Cordero para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Laura, companheira feminista argentina, aponta os pontos de encontro e desencontro entre a realidade argentina e a brasileira. Se por um lado as medidas de saúde adotadas no país estão contendo o aumento de infectados e mortos, por outro, as manifestações da extrema direita pela reabertura do comércio, bem como, as precárias condições de vida das classes oprimidas revelam a violência estrutural. Tal realidade se torna ainda mais gritante quando saímos do espaço público e analisamos os efeitos da Covid-19 no espaço doméstico, na acentuação da exploração do trabalho feminino como, também, no aumento da violência contra as mulheres. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos da Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Laura Fernández Cordero:

Olá, como estão?

Aqui é Laura Fernández Cordero, falando desde Buenos Aires, Argentina. Gostaria de poder falar com vocês em português, que eu compreendo muito bem, mas não me animo em falar. Assim, tentarei não falar tão rápido em espanhol.

Em primeiro lugar, muito obrigado pelo convite em intercambiar como estamos vivendo esta situação nos distintos países. Sigo com muita atenção e com muita preocupação as notícias que vêm do Brasil, já víamos com muita preocupação as consequências do governo Bolsonaro mas agora ainda mais por causa da situação da pandemia.

Aqui, aparentemente, estamos um pouco melhor, pois essa pandemia não chegou no contexto do governo neoliberal de Mauricio Macri, que entre outras calamidades, precarizou desde o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e da Técnica até secretarias. Ademais, destruiu a economia, a indústria, o comércio, os índices de pobreza aumentaram, os níveis de soberania relativa que Argentina tinha em relação à sua economia voltaram aos tempos de submissão ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e o país está endividado pelos próximos cem anos.

O novo governo encontrou esse cenário e a surpresa da pandemia. Pelo menos os primeiros gestos do presidente e da sua equipe foi assumir o controle, sobretudo – isso é importante – estando assessorado por uma quantidade de especialistas em saúde que planejaram essa quarentena muito cedo e que, apesar de ainda estarmos imersos nessa situação, não diria que foi um equívoco. A quantidade de mortes é relativamente baixa, o índice de contágio é bastante controlado, apesar de haver muitas diferenças por zonas. Nesse momento, a cidade de Buenos Aires está tendo um grave problema nos bairros populares, que aqui chamamos de “villas”, porque tem graves problemas de urbanização. Ademais, recentemente sobretudo, uma das maiores villas está sem água em um momento em que a condição de poder se higienizar é fundamental para evitar o contágio, assim como evitar aglomerações. Bom, conto-lhes que a cidade de Buenos Aires (talvez vocês já saibam) hoje é governada pelo partido que levou Mauricio Macri ao poder, o PRO.

Então, é um paradoxo para quem de nós acompanhou o governo federal com o voto, mas que o horizonte político não é um governo peronista. Estamos com a sensação de alívio de sentir que há uma gestão bastante razoável. Depois de um primeiro momento onde pareceu haver um acordo político, inclusive com a oposição, em acompanhar as decisões do governo, estamos acompanhando nos dias de hoje a notícia de que vai haver uma suposta manifestação de rua em plena quarentena com pessoas que convocam protesto contra o governo e contra o que elas consideram um avanço do comunismo. Seria algo para rir senão fosse porque está acompanhado por uma série de interesses de alguns dos setores mais centrais da economia, cujos porta-vozes são os meios hegemônicos de comunicação. Eles tentam boicotar a quarentena, armar falsas polarizações entre saúde e economia, boicotam um processo lento de abertura da quarentena que nos permite seguir controlando a quantidade de contágios. Os meios hegemônicos são, sobretudo, Clarín, La Nación, Infobae, que estão operando a favor dos grandes capitais.

Enquanto isso, no governo de Alberto Fernández alguns de seus porta-vozes flertaram com a possibilidade de um imposto sobre as grandes fortunas ou imposto sobre as pessoas que lavaram dinheiro durante o governo de Macri, dinheiro que vinha claramente da sonegação. Porém, não apenas isso não está acontecendo como também há possibilidade de corte salarial. Além disso, há também um grave crescimento do desemprego e sobretudo na Argentina, onde temos 50% das pessoas trabalhando com atividade informal, as pessoas que precisam sair todo dia para buscar sua renda diária estão vivendo uma situação complicadíssima. Foi criada uma ajuda do governo para essas pessoas, assim como existem distintas atividades em vários bairros, como partilha de alimentos, distribuição de um cartão alimentar para as pessoas manterem uma alimentação básica. Bom, medidas temos muitas, mas é difícil medir o impacto que estão tendo. O certo é que o número da quantidade de mortos e de contágios nos permite ter certo otimismo.

Sobre os lares (espaços domésticos), é muito diverso. Se alguém pode se cuidar, ficar em casa, tem uma casa confortável, tem assegurado seu salário, há também pessoas que não tem nada disso. Por isso é uma situação muito variável. Certamente a pressão é grande pois, é claro, não há escolas. Assim a situação das pessoas que tem que trabalhar desde sua casa está complicada, porque tem as crianças é preciso se desdobrar para cuida-las e ademais seguir as orientações do Ministério da Educação, que implica fazer tarefas de casa.

Isso gera um impacto nos lares em muitos sentidos. Já faz tempo que as companheiras feministas vem agitando a politização do trabalho doméstico, de poder pensa-lo como um trabalho enorme e não remunerado e, como em muitas outras circunstâncias, o COVID-19 veio a mostrar aquilo que talvez não estivesse tão visível, que era a enorme quantidade de trabalho doméstico e de cuidado que sobretudo as mulheres fazem e que contribui para a economia de maneira indireta e sem que elas recebam muito em troca. Hoje a atividade do trabalho doméstico remunerado não está permitida e é cada vez mais visível o que significa essa unidade produtiva que é o lar. E, como sabemos, há uma diminuição na quantidade de delitos cometidos na via pública, mas há uma manutenção muito grave dos índices de feminicídios que não tem caído durante a quarentena. Ademais, também não tem caído outros delitos que se cometem no seio do lar, sobretudo abusos infantis, a violência de gênero que o atual contexto dificulta tanto a denúncia como a intervenção, mostrando-se como um dos temas mais preocupantes.

Outro tema que se tornou visível é o das forças de segurança. Estamos vindo de um paradigma do governo anterior, marcado pela gestão da ministra Patricia Bullrich. Muito dura, girando muito em torno do combate ao narcotráfico, ao fortalecimento das forças de segurança no pior dos sentidos para a sociedade. Isto é, defendeu casos ilegais de repressão, inclusive casos particulares de policiais que assassinaram supostos delinquentes pelas costas na via pública. Agora temos um modelo mais próprio dos governos kirchneristas prévios, onde se dá uma mostra de um controle político das forças de segurança. Contudo, há a intervenção dessas forças de repressão em casos de protestos populares. Nessa situação vemos intelectuais muito próximos do governo falando da polícia do cuidado de si, tentando construir a ideia de uma polícia que cuida da população e que talvez se mostre educada diante das câmeras para certos setores sociais. Mas estão se multiplicando as denúncias de repressão, algo que nunca deixou de ocorrer nos bairros populares, com detenções arbitrárias, com agressões físicas, maltratos. Há um caso de uma mulher que morreu dentro de uma delegacia que agora a autópsia teria revelado que ela sofreu de uma violência extrema, etc, etc.

Ou seja, essa situação com uma forte presença das forças de segurança na rua com a justificativa do controle da quarentena e da circulação, embora não tenhamos chegado a situações de toque de recolher ou Estados de Sítio, chegamos a esse controle que, sob a escusa de cuidar da pandemia, atenta contra determinadas liberdades de circulação. Assim, essa discussão, que também está aberta, é muito interessante e pode ser acompanhada principalmente com os organismos que denunciam os casos de violação dos direitos humanos.

De forma paralela às ações do governo, às ações estatais, eu também gostaria de falar que na sociedade, apesar do fechamento, se pode ver muitas ações solidárias de compartilhamento de alimentos, sobretudo nos bairros populares, de ajuda mútua nas compras, principalmente para as pessoas mais velhas, de divisão de trabalho para que possa ser feito em casa. Uma série de ações que nos fazem lembrar daqueles dias de 2001, que diante da crise houve um despertar da imaginação política popular que de algum modo deu respostas a essas situações. Essas ações estão muito mediadas pelas redes, como no âmbito escolar, em que se dialoga muito pelo WhatsApp. Por outro lado, também houve muitas mostras de egoísmo, de falta de empatia.

Outro gesto que esteve muito distante da solidariedade ocorreu há pouco, com um protesto feito nas casas com um panelaço contra uma medida de enviar a prisão domiciliária pessoas que já estavam no final da sua pena ou como prisões preventivas de delitos não graves, algo que se tem feito no mundo todo. Os meios hegemônicos operaram em um imaginário que já está presente na sociedade argentina, que pensa “Ah, agora vão libertar presos de crimes graves, como sequestradores”, apontaram o dedo para o movimento feminista dizendo que não estávamos protestando contra a libertação de estupradores. Bom, uma operação horrível que ainda não se terminou porque a discussão é profunda, porque se relaciona com medos e com discussões não resolvidas.

Outra discussão não resolvida que o COVID-19 tem visibilizado está vinculado ao que fazer com a população carcerária que vive em situação muito precária e que isso se faz evidente com a superlotação, a falta de higiene, a falta de saúde em uma situação que ainda não conhecemos, ou que não aconteceu em grande dimensão, que é o contágio dentro das prisões.

Então, vemos na sociedade uma série de ações solidárias e alguns gestos de falta de empatia e de mesquinhez política importantes. Creio que com isto contei a vocês um panorama. Para não me estender mais, em síntese é um momento muito triste, um momento muito desafiante, um momento onde as categorias políticas que tínhamos nos acostumado a pensar estão em xeque, um momento em que as discussões feministas em torno da violência e do trabalho doméstico ganham outro relevo e ganham em importância, um momento em que as pessoas que vivem em família se sentem desafiadas na organização e na necessidade de cumprir com todas as exigências, um momento de incerteza em que é difícil vislumbrar quais serão os passos seguintes porque o mundo está mudando, porque as relações de poder estão mudando, porque o que pensamos a respeito das vidas que importam e dos valores que organizam essas vidas estão mudando.

Assim, a sensação de estar vivendo um momento histórico e da necessidade de poder nos pensar como sociedade para além dos polos se vamos sair disso melhor ou se vamos sair pior, poder pensar que vamos sair disso e que outros serão os desafios do futuro.

Bom, amigos e amigas do Brasil, desejo-lhes o melhor, que isso passe e que possam deter essa loucura de governo que se instalou por aí.

Um grande abraço.

Fronteira #12 com Manuel Carballa

Neste décimo segundo episódio do Fronteira recebemos Manuel Carballa para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Manuel, companheiro da Alter ediciones, aborda os impactos políticos, sanitários e econômicos do coronavírus em território uruguaio, destacando a violência policial nos bairros periféricos de Montevidéu e a rápida precarização das condições de trabalhadores. Não fosse suficiente a crise material, a sociedade uruguaia tem vivenciado um enorme fluxo de teorias da conspiração e fake news que mobilizam o debate público. Contudo, para além das violências cotidianas, diferentes estratégias de solidariedade tem surgido contrapondo a lógica da barbárie. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos da Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Manuel Carballa:

Olá, como estão?

Vou contar um pouco da situação que estamos vivendo com o coronavírus aqui no Uruguai. No Uruguai o coronavírus chegou nos primeiros dias de março, chegou da Europa acompanhando as classes média e alta de suas viagens de prazer e negócios.

Em 13 de março, segundo dados oficiais, foram confirmados os primeiros casos e a partir daí começaram a se espalhar pelo resto do território. Desde que a emergência de saúde foi declarada, morreram 4 pessoas de Covid-19 e em pouco mais de 20 dias atingimos cerca de 400 infectados, distribuídos em 12 dos 19 departamento do Uruguai, sendo que Montevidéu é o departamento com a maior quantidade de casos. Se prevê que em meados de maio atingiremos o pico de infectados e especula-se que o inverno será difícil.

O governo declarou quarentena, embora no momento não seja uma quarentena obrigatória. Para controlar isso, a polícia realiza patrulhas terrestres e aéreas, pedindo para as pessoas reduzirem a circulação nas ruas e evitarem a aglomeração de pessoas. Dependendo dos bairros, as patrulhas e os pedidos são feitos com um megafone, isso acontece nos bairros costeiros, que são os residenciais e das classes média e alta, ou esses pedidos e as patrulhas, são feitos com perseguições de moto e cassetetes na mão, nos bairros populares.

A quarentena e o confinamento é algo que apenas as classes média e alta podem garantir. Embora muito menos do que em outros países da América Latina, uma boa parte das classes populares no Uruguai também carece de saneamento, água potável, carecem de espaço real para estar confinados e muito menos recursos e espaço para a compra massiva e armazenamento de alimentos, e produtos de necessidades básicas, como todos necessitam.

Um vez que vírus se espalhe, se não for contido adequadamente, os efeitos sobre a saúde desses setores serão, sem dúvidas, os mais preocupantes.

As fronteiras atualmente estão fechadas. As que compartilhamos com o Brasil foram as últimas devido às dificuldades de controle que tem uma fronteira terrestre muito grande.

Desde que a emergência de saúde foi decretada, os centros educacionais foram fechados, sem data clara para o retorno às aulas. A educação é claramente afetada e os professores improvisam o que podem, e como podem, com educação a distância. No nível superior, a Universidade da República fechou as portas durante todo o primeiro semestre e os cursos não poderão ser presenciais. Igualmente, nos outros centros de estudos, a universidade e os docentes, estão improvisando com educação a distância.

A exigência de não circular pelas ruas ataca fortemente a população que vive da informalidade. Isso está acontecendo aqui, como em todo a América Latina. Esta crise também tem um forte impacto nas questões trabalhistas e está afetando cada vez mais setores. Em nosso caso, uma faixa cada vez maior de trabalhadores está sendo enviada para o seguro-desemprego. Para que tenham uma ideia, apenas nos primeiros três dias de abril, cerca de 20.000 pedidos de amparo para os trabalhadores sem seguros.

Um exemplo do conflito entre quarentena e trabalho, dentre os muitos que poderiam enumerar, é claramente expresso com as famílias de pescadores artesanais localizados no interior do país, que o governo não está permitindo que saiam para pescar, e eles dependem totalmente dessa atividade para viver e levar o dia a dia.

O governo está implementando um fundo para avaliar as diferentes situações e responder aos efeitos da crise produzida pelo coronavírus. Parte deste fundo é formado de uma porcentagem da renda de funcionários públicos com salários mais altos. Esta medida que afeta cargos políticos de confiança de assessoria também envolve outros trabalhadores e representantes sindicais. Justamente, alguns destes últimos, que desfrutam de salários 11 vezes superiores ao salário mínimo nacional, se opuseram à medida, que, de qualquer forma, será implementada nestes dias.

Obviamente, a dimensão da crise social e econômica que a pandemia nos deixará ainda não está clara e as consequências que estas deixarão talvez sejam muito mais importantes do que aquelas que deixará o problema de saúde.

Nesse período, surgiram várias expressões de solidariedade diante da situação, temos comedores populares nos bairros, alguns bares que se organizam com seus trabalhadores para oferecer pratos de comida à população mais vulnerável, algumas lojas e livrarias que oferecem apoios semelhantes. Também mães e pais de escolas de período integral se organizam para garantir um prato de comida, que antes era oferecido pela própria escola e, também, organizações sociais que coletam doações de vários tipos para distribuir às populações mais vulneráveis.

Apesar de que, já começou a acontecer que algumas destas ações solidárias, justamente os comedores populares, começaram a receberam desaprovação do governo, devido aos riscos à saúde, por conta do acúmulo de pessoas.

Por outro lado, o confinamento está agravando a situação de violência doméstica e, nessa situação, já foram registradas muitas denúncias. E também são as mulheres que, na maioria dos casos, encontram no confinamento maior vulnerabilidade e exposição a essas situações de violência.

Por outro lado, de diferentes setores, se começam a escutar exigências ao governo para que este forneça informações mais detalhadas e que divulgue, todos os dias, sobre o que está acontecendo.

Junto a isso, o que tem se visto é fluxo de desinformação que cresce dia a dia, a quantidade de notícias falsas é cada vez maior, e um pouco também por este motivo, cresce a confusão e o medo. A população, em geral, é perturbada, confusa, cética, entediada, raivosa, faminta, violenta, frustrada, ansiosa e oprimida.

Esta rede crescente de desinformação que inunda as redes sociais digitais consegue confunde ainda mais esta situação. E, por outro lado, tem um conjunto cada vez maior de pessoas precisa acreditar em teorias da conspiração para explicar os fenômenos com os quais estamos lidando, da mesma forma que precisávamos explicar nos tempos antigos relâmpagos e tempestades como expressões dos deuses, agora temos a necessidade de justificar esses fenômenos como resultado de conspirações. Parecem que estamos constituindo a nova religião politeísta da modernidade.

Enfim, é uma situação de crise de saúde, econômica, social e ecológica de muita complexidade e com muitas incertezas, mas também devemos assumir que a responsabilidade de cuidar de si tem um senso de solidariedade social.

Um dos efeitos principais do coronavírus é a paralisia dos vínculos. A consequência dessa pandemia parece ser a sociedade atomizada. Portanto, a luta que travaremos residirá em transformar as consequências dessa atomização; como poderemos transformar esta paralisia em lentidão; como oferecer soluções de decrescimento contra o mito do progresso e de vida mediada pela tecnologia; como transformar o confinamento em espaço-tempo de reflexão criativa; nesta quarentena que se realizam cuidados conscientes e solidários; à diminuição do consumo em benefício ecológico e diminuição consciente do consumo.

Se essa sociedade atomizada, que nos é apresentada por medidas de isolamento, se instalar como o modo de vida saudável, será mais difícil afrontar e enfrentar o ajuste econômico, que cairá, cedo ou tarde, sobre os setores populares.

Não teremos, portanto, a capacidade de fazer ouvir nossas vozes, mesmo se nos oferecerem ferramentas digitais para simular que estamos conectados, mas socialmente distantes.

O desafio que temos, nesta crise, é como fortalecer os laços solidários, como construir estas novas resistências, como cuidar-nos coletivamente e ter em mente que não devemos confundir a repressão e a violência dos Estados com os cuidados com a saúde.

Lhes dou um grande abraço.

Saúde.

 

 

Fronteira #11 com Sílvio Gallo

Neste décimo primeiro episódio do Fronteira recebemos Sílvio Gallo para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Sílvio, professor de filosofia da educação da Unicamp, aborda as ações de Estado na gestão da vida (biopolítica) e da morte (necropolítica) da população, refletindo sobre as desigualdades e violências que estamos enfrentando neste contexto de coronavírus, bem como, aponta a solidariedade como forma de ação dos de baixo na reconstrução da existência e criação de um novo horizonte político. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos da Covid-19.

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Fronteira #10 com Slavia Maggio

Neste décimo episódio do Fronteira recebemos Slavia Maggio para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Slavia, companheira da editorial Eleuterio, aborda as ações nefastas praticadas no território chileno pelo governo de Piñera em conjunto com a classe empresarial. As medidas políticas de precificar a saúde e transformar esta em um bem escasso, bem como os ataques aos trabalhadores, com a suspensão do pagamento dos salários, demonstram o desprezo e ódio que a elite chilena tem pelo povo daquele território. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos do Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Slavia Maggio:

Boa tarde amigos do Antinomia e Biblioteca Terra Livre.

Quem fala é Slavia, desde o Chile para contar a situação que a um mês nos encontramos desde que a epidemia se estendeu por este território.

A situação local não é muito distinta da do Brasil, já que ambos governos tiveram a mesma atitude em negar o que ocorre e priorizar os interesses dos empresários, ao invés de se preocupar com a vida das pessoas.

Aqui, desde o início, não houve nenhuma medida de controle sobre o ricos, que trouxeram o vírus de suas viagens para o exterior e os propagaram desde os bairros altos ao resto da cidade.

Em 18 de março, quando já haviam, mais ou menos, 250 pessoas contagiadas, foi declarado um estado de exceção constitucional, uma medida que na realidade não teve muito sentido, já que não decretou uma quarentena para toda a população, mas apenas para os bairros do centro de Santiago e nos bairros das classes altas.

Contudo, este estado de exceção foi a antessala, para que quatro dias depois, fosse anunciado um novo toque de recolher. Lembremos que como resposta aos revoltas sociais de outubro, do dia 18 de outubro passado, a primeira medida de Piñera foi estabelecer o toque de recolher, onde os militares saíram às ruas, e cometeram uma série de abusos que, inclusive, significaram a morte de várias pessoas, em circunstâncias muito estranhas, como pessoas baleadas que apareceram em supermercados queimados, entre outros casos, que até o dia de hoje, seguem em completa impunidade.

Por isso que a medida repressiva faz sentido em meio a uma crise sanitária, pois o único que interessa a classe política é manter o controle mediante ao amedrontamento da população. O toque de recolher ainda permanece vigente.

Em respeito a saúde, o custo do exame de detecção da doença foi o primeiro a ganhou um preço quando começaram a chegar os primeiros casos. Em nenhum momento se considerou que deveria ser gratuito e massivo, assim, qualquer pessoa que acha que pode estar contagiada tem que pagar tanto o teste como a consulta de urgência. Que o exame seja pago, é o reflexo da desigualdade ao acesso de um direito básico, como a saúde, e a isso temos que acrescentar que o resultado dos testes estão demorando, em alguns casos, mais de cinco dias.

O que demonstra o colapso que está se produzindo no sistema de saúde, onde, inclusive pessoas que já morreram e que logo depois de seu falecimento foi realizado o teste, assim, não podemos confiar nas cifras que está informando o governo.

Além disso, o governo está fazendo desta pandemia um negócio, deixando em evidência o profundo nexo que existe entre o empresariado e o governo, o qual fica explicito com a decisão de alugar um espaço privado, chamado espaço Riesco, que é utilizado para eventos internacionais de grande porte. Este espaço, que poderia ter sido colocado a disposição para as pessoas sem nenhum custo, vai ser alugado pelo estado diariamente, por uma quantia que é incompreensível, se pensamos na falta de insumos que existe nos hospitais e no sistema público de saúde no Chile. Que, em meio a uma emergência, se destine recursos públicos a uma família de elite, dona deste espaço, comprova qual é a prioridade do governo.

Como este, são vários os exemplos que se podem dar.

Esta perspectiva empresarial também vai ficar clara, quando um dos empresários que gere os fundos de aposentadorias, entre outros dos negócios que tem, disse em uma entrevistas abro aspas : “Não podemos seguir parando a economia, devemos assumir o risco e isso significa que vai morrer gente.”

Isto explica que até o dia de hoje, apesar de haver 94 mortos, o que é um número alto, se consideramos que a população é de somente 18 milhões de habitantes, e que as cifras, apesar de estarem aumentando, a classe política decidiu que não haverá quarentena total, e que inclusive estão retirando as quarentenas nos territórios. Então já se estabeleceu que as pessoas na verdade não tem maior importância.

Outro tema que também está complicado é a situação trabalhista, porque o Ministério do Trabalho estabeleceu uma norma, sob o nome de Lei de Proteção do Emprego, no qual permite que os empregadores suspenda o pagamento dos salários dos trabalhadores pelos meses em que durar a crise sanitária, sem com isso terminar os contratos trabalhistas. Em alguns casos as pessoas podem ficar 3 meses sem receber salários. Isto permitiu que grandes multinacionais e empresas deixem sem salários mais de dois mil trabalhadores durante os próximos meses, além das demissões em massa que estão ocorrendo ao longo desta última semana.

Esta é a situação particular dos trabalhadores formais, que correspondem a 60% da mão de obra do país. Mas sobram 40% das pessoas sem contrato, uma parte importante na completa informalidade, que em sua maioria vai deixar de ter qualquer entrada de recursos nos próximos meses, sem nenhum tipo de ajuda além de um bônus, que na verdade não dá para nada.

Então esse é o cenário crítico, em que os trabalhadores estão com mais medo de perder seus trabalhos ou fontes de renda, do que se contagiar pelo vírus. O que é bastante preocupante.

Então, diante de todas estas situações, a crise demonstrou que todas as mesmas demandas que foram levantadas em 18 de outubro, a precária situação da saúde no Chile, o roubo descarado dos fundos de aposentadoria, que já neste contexto tiveram perdas milionárias para os trabalhadores, e nenhuma, é claro, para a AFP [Administradora de Fondos de Pensiones]. A isto somamos a precariedade trabalhista no geral, em que além de deixar sem ganhos os trabalhadores, tem uma quantidade grande de pessoas que não tem outra fonte de renda.

Então, o mais provável é que virá uma segunda revolta social ou uma retomada deste mal estar acumulado e que está mais agudo no contexto atual que voltará a deixar claro que as pessoas não estão mais dispostas a continuar sendo deixadas de lado. E também, será fundamental, neste contexto de crise, a reativação do tecido social que começou a ser articulado a partir do 18 de outubro, para colocar em prática a ajuda mútua, já que não vai nos sobrar outra, para poder enfrentar a precária situação em que nos encontramos nós, habitantes deste território.

Finalmente, para ir terminando, vimos que o Brasil e Equador estão sentindo as consequências da pandemia, e como, na realidade, seguimos sendo colônia dos Estados Unidos e copiando sua forma de atuar, é provável que terminemos piores do que eles, já que a precariedade do sistema de saúde, a inexistência da proteção social e que estes 3 países sejam governados por empresários de direita, que somente estão cuidado do bolso de seus amigos de negócios, provavelmente o Brasil será o mais afetado, pela grande população que tem em seu território, mas as consequências no final serão as mesmas para os pobres de ambos países.

Bom, é isso que posso contar por enquanto.

Aproveito para agradecer a Biblioteca Terra Livre pelo convite para este podcast.

Lhes mando um abraço fraterno nestes tempos de incerteza.

E até a próxima!

Fronteira #9 com José Solano

Neste nono episódio do Fronteira recebemos José Solano para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep José, companheiro do coletivo A de Libertad, analisa os impactos do coronavírus na Costa Rica e suas consequências para as diferentes classes sociais. Se por um lado as medidas governamentais protegem as elites e os empresários, por outro expõe a classe trabalhadora a uma situação de risco ainda maior. São as ações de solidariedade, organizadas principalmente por grupos anarquistas que se contrapõe a frieza econômica do Estado costarricense. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos do Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de José Solano:

Olá amigas e amigos, dos territórios que nos escutam.

Meu nome é José Solano, falo desde o território dominado pelo Estado da Costa Rica.

Para mim é um prazer poder compartilhar com vocês algumas das reflexões que se podem fazer a partir do coronavírus, do COVID-19, que atualmente está afetando em nível mundial, e que este país e sua população não é uma exceção.

No dia de hoje já são mais de 400 infectados, 2 mortos e mais de 10 pessoas recuperadas. É o se diz, por enquanto, os dados oficiais que controla o governo da república.

É importante dizer que o tratamento dado a esta doença, foi, ao menos na Costa Rica, de uma importante contenção por parte de todo o sistema de saúde, que na Costa Rica segue sendo público, de caráter universal, ao menos no papel, na prática as vezes isso não é cumprido, mas que é sustentado através de um serviço solidário, que surgiu na década de 40 do século passado. Portanto, como um sistema médico como tal, é um sistema de medicina interna que é sumamente avançado, que permitiu que a população, em geral, tenha uma expectativa de vida que é próxima dos 80 anos. Mas que durante as últimas políticas capitalistas e liberais, dos últimos 30 anos, tem colapsado o sistema de segurança social, e portanto, houve uma piora substancial do serviço, principalmente dos serviços de emergência e de saúde externa, que é como se chama, que tem filas absurdas para as consultas médicas para pessoas, inclusive aquelas com doenças terminais, que podem durar 5 anos para ressonâncias magnéticas, ultrassons, etc.

Apesar disso, o sistema, ou melhor, toda a equipe médica e de saúde, do sistema hospitalar, realmente tem trabalhado duro nesta tarefa. Eles são aqueles que colocam seus corpos frente a pandemia que se vive agora.

As medidas do governo, por outro lado, incrementaram seus níveis de autoritarismo que ao longo dos últimos anos tem crescido na Costa Rica, mas que agora, neste contexto de crise sanitária, que estamos vivendo, estão colocando a prova todo este aparato de repressão de uma maneira muito mais efetiva e, perigosamente, também, é muito legitimada pela mesma população que vê como medidas necessárias os excessos, os abusos, do poder que estão sendo cometidos neste momento.

No dia de hoje, por exemplo, na quarentena, foram suspensas todas as aulas, tanto da educação primária, secundária, como a superior. Tanto no nível público quanto no privado. A maioria dos negócios estão ou fechados ou com jornadas reduzidas ou tendo que receber menor quantidade de clientes, segundo cada caso.

Estas ações se por um lado tem afetado um importante setor da produção nacional, principalmente o pequeno e médio produtor, algumas outras empresas, as grandes, estão se beneficiando com esta epidemia. Poderíamos falar não só das grandes cadeias de supermercado transnacionais como Walmart, mas também este grande empresariado costarricense que foi beneficiado com o acesso a certos serviços essenciais, que hoje são demandados pelo sistema hospitalar, por exemplo, farmacológico, de saneamento, limpeza, etc., estes serviços foram amplamente beneficiados. E alguns produtores de alimentos.

Por outro lado, este mesmo empresariado, reunidos através de Câmaras industriais, pressionaram o governo para que este formule políticas que lhes beneficie, que lhes alivie a carga durante o período que estamos passando, mas, ao mesmo tempo, estas empresas transferem para seus trabalhadores e trabalhadoras todo o peso econômico da pandemia. Então temos, por exemplo, faz uma semana que foi aprovada na Costa Rica, uma lei para reduzir a jornada trabalhista, o que significa que as jornadas podem ser reduzidas até 50%, e, portanto, os salários também caem na mesma proporção. E, em alguns casos, dependendo do quanto for – supostamente – afetada a empresa, poderia também reduzir em 75% as jornadas de trabalho. Isso significa que pagariam apenas 25% dos salários, em um momento em que se faz mais necessário o acesso ao salário, enquanto se está em casa, ou se deixa tudo, com muito mais razão, para que as pessoas possam assumir suas necessidades básicas e de suas famílias. Então, vemos como o empresariado transfere o custo desta crise sanitária aos empregados e empregadas de seus centros de trabalho.

Por outro lado, também, o Estado começou a reprimir com muito mais força. Na Costa Rica não está ocorrendo toque de recolher ou estado de sítio, como está ocorrendo em outros países, porém, o governo da república, tomou uma absurda – no meu parecer – decisão de limitar o transito veicular, tanto nos transportes públicos quanto para caminhar nas vias públicas. Quero dizer que não deve reprimir mais à população ao limitar totalmente a liberdade de circulação como ocorre em um lugar em que existe o toque de recolher. Mas obriga as trabalhadoras e trabalhadores a se mobilizarem para ir a seus centros de trabalho em transporte públicos, porque os donos das empresas de transporte e mesmo o próprio Estado, encarregado do transporte ferroviário, por exemplo, reduziram as frotas de ônibus e de trens e assim, as pessoas vão muito mais aglomeradas nos veículos de transporte público e nas filas nos pontos de ônibus, o que faz com que a enfermidade possa se propagar mais. Mas se proíbe que as pessoas viagem em seus veículos a partir de certas horas, por exemplo, para a semana santa, só será liberada 12h de circulação de veículos e o restante, as 12h seguintes, a circulação está completamente proibida. Ninguém pode circular, com aplicação de multas de transito que em alguns casos são de meio salário mínimo. O que implicaria elevados custos para as pessoas trabalhadoras que se utilizem de automóveis e também, muito maior arrecadação de recursos para o Estado que, como se diz aqui na Costa Rica, “el Estado no esta sacando pelo sin sangre”, quero dizer, que está aproveitando também a conjuntura que estamos vivendo para também encher seus cofres frente a uma crise econômica e fiscal que já vinha afetando a Costa Rica a muitos anos. E que, na aprovação do plano fiscal que foi feito a alguns anos, não conseguiram aquecer a economia costarricense, mas sim, aumentou o desemprego para mais de 12% e que agora, o mais provável depois dessa crise sanitária, quando sairmos dela, vai aumentar ainda mais. Isto vai aprofundar ainda mais a crise econômica que já estamos vivendo.

E, apesar de tudo isso que estamos vivendo na Costa Rica, também existem redes de solidariedade, redes de apoio mútuo, principalmente entre o setor anarquista costarricense, que tem realizado a tarefa de, através dos meios limitados e da repressão que se vive nas ruas neste momento, para poder levar alimentos, fazendo comedores populares para garantir alimentos para as pessoas em situação de rua, que são as pessoas que estão sendo, neste momento, as mais prejudicadas, com esta crise. Primeiro porque não tem casa onde permanecer, segundo porque estão expostos a contaminação, a esta enfermidade e a muitas outras que se vive nas ruas e, que tiveram reduzido seu nível de alimentação seja pela comida que conseguiam dos negócios que antes da crise, estavam abertos e que lhes forneciam algum alimento, ou o dinheiro das pessoas que passavam e lhes davam dinheiro e que agora, ao diminuir a quantidade de pessoas que lhes dão dinheiro, eles tem menos dinheiro e tem acesso a menos alimentação. Ou ainda, mesmo dos lixos, de onde muitas vezes essas pessoas retiravam os alimentos, as empresas, especialmente as alimentícias (restaurantes, etc.) que já não estão produzindo alimentos, evidentemente, tem assim seus desperdícios reduzidos.

Então esta enfermidade tem afetado principalmente às pessoas em situação de rua neste momento. O que estamos vendo são as redes de apoio mútuo e solidariedade, de companheiros e companheiras, que decidiram agir imediatamente e começaram a garantir a alimentação a estas pessoas, ao menos enquanto a crise não for superada.

Então, em meio desta crise que é uma crise do sistema capitalista, também emergem, como acontece historicamente, estas experiências que são completamente contrastantes, contestadoras, inclusive revolucionárias, dentro da sociedade para resolver as deficiências deste sistema que é opressor, gerando espaços de autogestão, de autonomia, de liberdade e de apoio mútuo.

Então, amigos e amigas, assim está o panorama neste território dominado pelo Estado chamado Costa Rica, estamos atentos também ao que acontece em outras latitudes.

Enviamos nossos abraços solidários a todos os cantos que nos escutem e que é o momento de começar a atuar para começar a contrapor os efeitos que o sistema capitalista está tendo neste momento e nos que virão, nas próximas semanas e meses, para começar a criar projetos alternativos para a sociedade futura.

Muito obrigado!