Neste décimo terceiro episódio do Fronteira recebemos Laura Fernández Cordero para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Laura, companheira feminista argentina, aponta os pontos de encontro e desencontro entre a realidade argentina e a brasileira. Se por um lado as medidas de saúde adotadas no país estão contendo o aumento de infectados e mortos, por outro, as manifestações da extrema direita pela reabertura do comércio, bem como, as precárias condições de vida das classes oprimidas revelam a violência estrutural. Tal realidade se torna ainda mais gritante quando saímos do espaço público e analisamos os efeitos da Covid-19 no espaço doméstico, na acentuação da exploração do trabalho feminino como, também, no aumento da violência contra as mulheres. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos da Covid-19.
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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Laura Fernández Cordero:
Olá, como estão?
Aqui é Laura Fernández Cordero, falando desde Buenos Aires, Argentina. Gostaria de poder falar com vocês em português, que eu compreendo muito bem, mas não me animo em falar. Assim, tentarei não falar tão rápido em espanhol.
Em primeiro lugar, muito obrigado pelo convite em intercambiar como estamos vivendo esta situação nos distintos países. Sigo com muita atenção e com muita preocupação as notícias que vêm do Brasil, já víamos com muita preocupação as consequências do governo Bolsonaro mas agora ainda mais por causa da situação da pandemia.
Aqui, aparentemente, estamos um pouco melhor, pois essa pandemia não chegou no contexto do governo neoliberal de Mauricio Macri, que entre outras calamidades, precarizou desde o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e da Técnica até secretarias. Ademais, destruiu a economia, a indústria, o comércio, os índices de pobreza aumentaram, os níveis de soberania relativa que Argentina tinha em relação à sua economia voltaram aos tempos de submissão ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e o país está endividado pelos próximos cem anos.
O novo governo encontrou esse cenário e a surpresa da pandemia. Pelo menos os primeiros gestos do presidente e da sua equipe foi assumir o controle, sobretudo – isso é importante – estando assessorado por uma quantidade de especialistas em saúde que planejaram essa quarentena muito cedo e que, apesar de ainda estarmos imersos nessa situação, não diria que foi um equívoco. A quantidade de mortes é relativamente baixa, o índice de contágio é bastante controlado, apesar de haver muitas diferenças por zonas. Nesse momento, a cidade de Buenos Aires está tendo um grave problema nos bairros populares, que aqui chamamos de “villas”, porque tem graves problemas de urbanização. Ademais, recentemente sobretudo, uma das maiores villas está sem água em um momento em que a condição de poder se higienizar é fundamental para evitar o contágio, assim como evitar aglomerações. Bom, conto-lhes que a cidade de Buenos Aires (talvez vocês já saibam) hoje é governada pelo partido que levou Mauricio Macri ao poder, o PRO.
Então, é um paradoxo para quem de nós acompanhou o governo federal com o voto, mas que o horizonte político não é um governo peronista. Estamos com a sensação de alívio de sentir que há uma gestão bastante razoável. Depois de um primeiro momento onde pareceu haver um acordo político, inclusive com a oposição, em acompanhar as decisões do governo, estamos acompanhando nos dias de hoje a notícia de que vai haver uma suposta manifestação de rua em plena quarentena com pessoas que convocam protesto contra o governo e contra o que elas consideram um avanço do comunismo. Seria algo para rir senão fosse porque está acompanhado por uma série de interesses de alguns dos setores mais centrais da economia, cujos porta-vozes são os meios hegemônicos de comunicação. Eles tentam boicotar a quarentena, armar falsas polarizações entre saúde e economia, boicotam um processo lento de abertura da quarentena que nos permite seguir controlando a quantidade de contágios. Os meios hegemônicos são, sobretudo, Clarín, La Nación, Infobae, que estão operando a favor dos grandes capitais.
Enquanto isso, no governo de Alberto Fernández alguns de seus porta-vozes flertaram com a possibilidade de um imposto sobre as grandes fortunas ou imposto sobre as pessoas que lavaram dinheiro durante o governo de Macri, dinheiro que vinha claramente da sonegação. Porém, não apenas isso não está acontecendo como também há possibilidade de corte salarial. Além disso, há também um grave crescimento do desemprego e sobretudo na Argentina, onde temos 50% das pessoas trabalhando com atividade informal, as pessoas que precisam sair todo dia para buscar sua renda diária estão vivendo uma situação complicadíssima. Foi criada uma ajuda do governo para essas pessoas, assim como existem distintas atividades em vários bairros, como partilha de alimentos, distribuição de um cartão alimentar para as pessoas manterem uma alimentação básica. Bom, medidas temos muitas, mas é difícil medir o impacto que estão tendo. O certo é que o número da quantidade de mortos e de contágios nos permite ter certo otimismo.
Sobre os lares (espaços domésticos), é muito diverso. Se alguém pode se cuidar, ficar em casa, tem uma casa confortável, tem assegurado seu salário, há também pessoas que não tem nada disso. Por isso é uma situação muito variável. Certamente a pressão é grande pois, é claro, não há escolas. Assim a situação das pessoas que tem que trabalhar desde sua casa está complicada, porque tem as crianças é preciso se desdobrar para cuida-las e ademais seguir as orientações do Ministério da Educação, que implica fazer tarefas de casa.
Isso gera um impacto nos lares em muitos sentidos. Já faz tempo que as companheiras feministas vem agitando a politização do trabalho doméstico, de poder pensa-lo como um trabalho enorme e não remunerado e, como em muitas outras circunstâncias, o COVID-19 veio a mostrar aquilo que talvez não estivesse tão visível, que era a enorme quantidade de trabalho doméstico e de cuidado que sobretudo as mulheres fazem e que contribui para a economia de maneira indireta e sem que elas recebam muito em troca. Hoje a atividade do trabalho doméstico remunerado não está permitida e é cada vez mais visível o que significa essa unidade produtiva que é o lar. E, como sabemos, há uma diminuição na quantidade de delitos cometidos na via pública, mas há uma manutenção muito grave dos índices de feminicídios que não tem caído durante a quarentena. Ademais, também não tem caído outros delitos que se cometem no seio do lar, sobretudo abusos infantis, a violência de gênero que o atual contexto dificulta tanto a denúncia como a intervenção, mostrando-se como um dos temas mais preocupantes.
Outro tema que se tornou visível é o das forças de segurança. Estamos vindo de um paradigma do governo anterior, marcado pela gestão da ministra Patricia Bullrich. Muito dura, girando muito em torno do combate ao narcotráfico, ao fortalecimento das forças de segurança no pior dos sentidos para a sociedade. Isto é, defendeu casos ilegais de repressão, inclusive casos particulares de policiais que assassinaram supostos delinquentes pelas costas na via pública. Agora temos um modelo mais próprio dos governos kirchneristas prévios, onde se dá uma mostra de um controle político das forças de segurança. Contudo, há a intervenção dessas forças de repressão em casos de protestos populares. Nessa situação vemos intelectuais muito próximos do governo falando da polícia do cuidado de si, tentando construir a ideia de uma polícia que cuida da população e que talvez se mostre educada diante das câmeras para certos setores sociais. Mas estão se multiplicando as denúncias de repressão, algo que nunca deixou de ocorrer nos bairros populares, com detenções arbitrárias, com agressões físicas, maltratos. Há um caso de uma mulher que morreu dentro de uma delegacia que agora a autópsia teria revelado que ela sofreu de uma violência extrema, etc, etc.
Ou seja, essa situação com uma forte presença das forças de segurança na rua com a justificativa do controle da quarentena e da circulação, embora não tenhamos chegado a situações de toque de recolher ou Estados de Sítio, chegamos a esse controle que, sob a escusa de cuidar da pandemia, atenta contra determinadas liberdades de circulação. Assim, essa discussão, que também está aberta, é muito interessante e pode ser acompanhada principalmente com os organismos que denunciam os casos de violação dos direitos humanos.
De forma paralela às ações do governo, às ações estatais, eu também gostaria de falar que na sociedade, apesar do fechamento, se pode ver muitas ações solidárias de compartilhamento de alimentos, sobretudo nos bairros populares, de ajuda mútua nas compras, principalmente para as pessoas mais velhas, de divisão de trabalho para que possa ser feito em casa. Uma série de ações que nos fazem lembrar daqueles dias de 2001, que diante da crise houve um despertar da imaginação política popular que de algum modo deu respostas a essas situações. Essas ações estão muito mediadas pelas redes, como no âmbito escolar, em que se dialoga muito pelo WhatsApp. Por outro lado, também houve muitas mostras de egoísmo, de falta de empatia.
Outro gesto que esteve muito distante da solidariedade ocorreu há pouco, com um protesto feito nas casas com um panelaço contra uma medida de enviar a prisão domiciliária pessoas que já estavam no final da sua pena ou como prisões preventivas de delitos não graves, algo que se tem feito no mundo todo. Os meios hegemônicos operaram em um imaginário que já está presente na sociedade argentina, que pensa “Ah, agora vão libertar presos de crimes graves, como sequestradores”, apontaram o dedo para o movimento feminista dizendo que não estávamos protestando contra a libertação de estupradores. Bom, uma operação horrível que ainda não se terminou porque a discussão é profunda, porque se relaciona com medos e com discussões não resolvidas.
Outra discussão não resolvida que o COVID-19 tem visibilizado está vinculado ao que fazer com a população carcerária que vive em situação muito precária e que isso se faz evidente com a superlotação, a falta de higiene, a falta de saúde em uma situação que ainda não conhecemos, ou que não aconteceu em grande dimensão, que é o contágio dentro das prisões.
Então, vemos na sociedade uma série de ações solidárias e alguns gestos de falta de empatia e de mesquinhez política importantes. Creio que com isto contei a vocês um panorama. Para não me estender mais, em síntese é um momento muito triste, um momento muito desafiante, um momento onde as categorias políticas que tínhamos nos acostumado a pensar estão em xeque, um momento em que as discussões feministas em torno da violência e do trabalho doméstico ganham outro relevo e ganham em importância, um momento em que as pessoas que vivem em família se sentem desafiadas na organização e na necessidade de cumprir com todas as exigências, um momento de incerteza em que é difícil vislumbrar quais serão os passos seguintes porque o mundo está mudando, porque as relações de poder estão mudando, porque o que pensamos a respeito das vidas que importam e dos valores que organizam essas vidas estão mudando.
Assim, a sensação de estar vivendo um momento histórico e da necessidade de poder nos pensar como sociedade para além dos polos se vamos sair disso melhor ou se vamos sair pior, poder pensar que vamos sair disso e que outros serão os desafios do futuro.
Bom, amigos e amigas do Brasil, desejo-lhes o melhor, que isso passe e que possam deter essa loucura de governo que se instalou por aí.
Um grande abraço.