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A Raiz do problema Ecológico

Na quarta-feira, dia 28 de novembro, Jair Bolsonaro, atropelando o Itamaraty, disse que teve parte na decisão de não sediar a conferência do clima das Nações Unidas no próximo ano, a COP-25. Instituições que lidam com a questão climática no Brasil como a WWF-BR e Greenpeace, realizaram uma série de críticas, como o impedimento do crescimento econômico brasileiro diante de tal política.

Diante deste cenário, julgamos interessante resgatar o pensamento ecológico de Murray Bookchin, pensador estadunidense libertário que pensou a ecologia desde os anos 1960. Nosso objetivo, neste texto, não seria a de analisar quais são os interesses envolvidos na decisão do governo, mas de refletirmos a ecologia radical de Bookchin diante da questão ecológica.

Segundo Bookchin, a questão ecológica não é uma questão menor, pois o que está em jogo é a existência humana no planeta Terra, por isso tentará desenvolver uma análise que abordará a raiz do problema.

Para tanto, primeiro, observa como o movimento verde discute a questão ecológica, encontrando três perspectivas: a do eco-capitalismo (uma contradição em termos, segundo o autor), a primitivista e a eco-tecnocrata. A primeira, seriam àquelas das empresas, organizações transnacionais e até mesmo ONGs e fazem a crítica do desmatamento, poluição do meio ambiente etc., mas sem levar em consideração o modo de produção capitalista. A segunda visão, faz referência a uma tendência no próprio seio do anarquismo que prega uma espécie de volta ao paleolítico ou neolítico para a interrupção da destruição ambiental, entendendo que seria a industrialização o grande mal da contemporaneidade. E por fim, a terceira perspectiva coloca o uso da tecnologia como a grande salvadora da eminente catástrofe ambiental que está em curso.

Para Bookchin, todas essas três perspectivas não lidam com a raiz do problema ecológico, desviando a atenção do tema para uma certa “mentalidade tecnológica” ou para o crescimento demográfico, sendo este último apenas um problema relativo, se assim o considerarmos um problema. Para o autor, a raiz dos problemas ecológicos são decorrentes do capitalismo, sendo aqueles argumentos o que chamou de “soluções cosméticas”, que não resolveriam em nada a degradação do meio ambiente, só retardariam – e em muitos casos acirrariam – a degradação do meio ambiente.

No entanto, outro elemento que antecede até mesmo o capitalismo e que também está na raiz do problema ambiental, seria a hierarquia e a dominação, pois seria a partir da dominação do homem pelo homem que se teria originado o conceito de dominação sobre a natureza, tendo como desdobramentos a dominação do homem sobre a mulher, do jovem sobre o velho, de castas, classes, etnias, sexual e qualquer outra estratificação social.

Por isso, não haveria mudança ecológica significativa sem levar em consideração a mudança radical da sociedade, por essa razão cunhou o conceito de ecologia social. Para evitar o biocídio do planeta – destruição global do meio ambiente -, deveríamos ter uma mudança da sociedade capitalista para o que chamou de uma sociedade ecológica através da Revolução Social.

Neste ponto, Bookchin tenta explicar o que entende por uma sociedade ecológica. Evitando cair no misticismo primitivista e no fetichismo eco-tecnocrata, o autor nos diz que a sociedade ecológica é uma sociedade sem classes e não-hierárquica, portanto, sem qualquer forma de dominação. Para tanto, resgata o pensamento anarquista do geógrafo Piotr Kropotkin e dos italianos Errico Malatesta e Camilo Berneri, ecologizando o pensamento anarquista clássico de tradição iluminista.

Seguindo este caminho, Bookchin coloca a humanidade “na” natureza e não fora dela, nos falando que a humanidade possui sim um lugar diferenciado em relação à outras espécies, tendo em vista sua capacidade de pensar conceitualmente e de se comunicar simbolicamente. Portanto, o que faz a humanidade ser única em relação aos não-humanos é de ter certo grau de auto-consciência e flexibilidade de sua compreensão acerca da totalidade (entendo o conceito de totalidade, não no sentido de saber de tudo, mas de compreender a complexidade que envolve o estar no mundo, sem saber de tudo).

Assim, o conceito de humanidade de Bookchin não é aquele abstrato do iluminismo clássico, mas uma humanidade marcada pelas diferenças culturais, étnicas, etárias etc., e nesse sentido, reflete num devir ecológico e não num ser ecológico.

Tal transformação não viria a partir de um órgão centralizado, como o Estado, pois mediante as disputas internas dessa organização o máximo que se chega é em alguma solução cosmética, tendo em vista os interesses econômicos que faz parte do Estado. Fora esta questão, o Estado impede a participação popular, tão importante para o desenvolvimento de uma democracia direta. Muito pelo contrário, perpetua a exploração capitalista não dando o tempo necessário para a atuação política do.a trabalhador/a.

Refletindo uma alternativa, Bookchin pensa no uso da tecnologia para conceder esse tempo de “ócio criativo” tão necessário para a construção de uma maior participação das decisões políticas. Mas é importante dizer de novo e ressaltar, que não cai no fetichismo tecnocrata.

Para Bookchin, uma nova política deveria ser criada a partir da base, em um nível comunitário, um poder popular que se organiza de baixo para cima, o que chamou de confederação de municípios livres, servindo de um contrapoder de base à centralização estatal, fortalecendo os modos de vidas comunitários.

A organização da saúde na Revolução Espanhola

Em meio à crise da falta de médicos no Brasil, com a saída dos médicos cubanos do programa mais médicos, a frustração abate aqueles que são comprometidos com a causa dxs de baixo, assim como o desespero se instala no coração de quem sofre diretamente com essa política asquerosa do atual governo. Tendo em vista essa situação, pensamos como que, ao mesmo tempo, somos dependentes dos temperamentos dxs de cima e como poderíamos reverter essa situação com as nossas próprias forças. Nesse sentido, sempre é interessante lembrarmos da grande Revolução Espanhola, desta vez refletindo a maneira como a saúde foi organizada nesse grande acontecimento.

 

Fora as discussões sobre as ações do ministério da saúde encabeçada pela famosa anarquista Federica Montseny, que legalizou o aborto na península espanhola revolucionária, preferimos discorrer sobre a militância anarquista de base e como resolveram os problemas da saúde. Em outras palavras, verificar em que medida a atividade revolucionária anarcossindicalista da Confederación Nacional del Trabajo e Federación Anarquista Ibérica afetou o âmbito sanitáirio.

Antes de tudo, devemos dizer que a CNT era uma organização sindical que tinha grande desconfiança da classe médica, pois acreditavam que estes profissionais possuíam uma mentalidade burguesa e que exerciam sua profissão de forma mercadológica. Tal postura muda com o início da guerra, por conta da necessidade dessa atividade em detrimento dos doentes e feridos de guerra, mas também de civis.

 

Apesar da postura crítica da CNT à classe médica, existia em seu interior anarquistas médicos que tinham larga experiência na militância, como era o caso de Isaac Puente. As críticas que eram feitas à medicina capitalistas dos médicos anarquistas da CNT era de que as doenças e enfermidades derivavam da exploração capitalista, ou seja, das péssimas condições de trabalho e da influência da Igreja Católica nos hospitais, já que se recusavam tratar pessoas que não fossem religiosas.

Nos anos pré revolucionários, os debates sobre a saúde transitavam em todos os círculos revolucionários. No interior do movimento anarquista, os temas discutidos eram o naturalismo, o neomalthusianismo, o controle de natalidade, o aborto etc. Debates acalorados eram travados também entre socialistas e anarquistas. Os primeiros, encampavam projetos e propaganda favoráveis ao modelo de seguros sociais, amplamente combatidos pelos libertários. Estes acreditavam que o modelo das sociedades de socorros mútuos eram reformistas e não combatia o problema em sua raiz, por isso os médicos da CNT pensavam que a melhor estratégia seria a Ação Direta.

Essa abordagem ancorava-se na perspectiva de que as doenças, físicas e psicológicas, eram decorrentes da exploração e opressão da classe trabalhadora, sendo a Revolução Social o único meio para se ter uma vida saudável.

Com o início da Revolução Espanhola, logo nos primeiros meses da guerra revolucionária, a CNT abriu 5 hospitais só em Barcelona. Em Valência foram criadas diversas instalações de saúde, com policlínicas com atendimentos tanto para os civis quanto para receber os feridos da guerra. Todas as áreas da saúde foram atendidas, como a odontologia e o cuidado com a mulher. Sobre esse último aspecto, foi criado o Hopital de la Maternidad da CNT, próprio para o atendimento de mulheres grávidas, que tinham por objetivo dar um tratamento diferenciado e mais humano. Logo nos três meses de seu funcionamento atendeu mais de 90 mulheres. Foi criado assim, uma rede gigantesca com diversos agentes de saúde e instalações sanitárias pela Espanha Revolucionária.

Mas como os médicos da CNT-FAI organizaram essa rede? Assim como nas fábricas e no campo, foram realizadas as chamadas coletivizações, onde o primeiro passo era expropriar os locais e os materiais para as novas instalações e pô-los à serviço da população. Os prédios utilizados poderiam ser antigos hospitais ou qualquer prédio que service para a atividade e que estivesse desocupado. Os profissionais religiosos que já trabalhavam nos antigos hospitais eram retirados e colocados outros laicos. A direção era desfeita e em seu lugar eram colocados delegados técnicos e civis escolhidos em assembleia, estes compunham o Comitê Administrativo Diretor, que estava articulado à CNT e UGT. Os serviços médicos estavam articulados em vinte departamentos voltados para o atendimento de civis e quatro para os feridos da guerra.

Estas unidades de saúde eram coordenadas dela Controle Sanitário, sendo que sua atribuição era a de controle da afiliação de profissionais da saúde da CNT, prover materiais médicos e alimentos para os hospitais e clínicas, centralizar a alta e a saída de doentes e feridos e organizar o controle da contabilidade. Os responsáveis pelo Controle Sanitário eram um médico da CNT, um médico local e um engenheiro assessor.

O comitê sanitário estava articulado ao Comitê de Saúde Popular, que existia em cada uma das províncias e no caso de Valência, seus delegados eram escolhidos pelo Comitê Executivo, que possuíam estreita relação com a CNT. O Controle Sanitário estava também articulado à Delegação Sanitária Regional do País Valenciano, que tinha por objetivo coordenar os serviços de saúde nas três províncias de Valência sem ferir a autonomia dos comitês de saúde. Estes comitês, dentre outras responsabilidades, recolhiam dados das condições de saúde da população de cada uma das províncias.

A experiência na área da saúde de inspiração anarquista começou a perder força no final do ano de 1937, quando o governo da esquerda republicana começou a receber auxílio da URSS. Com esse auxílio, o até então inexpressivo Partido Comunista espanhol ganhou força e dá início ao processo de centralização e militarização do governo. O argumento do PCE, Partido Socialista espanhol e dos republicanos era a de que a guerra deveria ser vencida para que depois se fizesse a revolução, o que foi duramente combatido pelos anarquistas da CNT-FAI e pelos comunistas do Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM, estes diziam que a guerra e a revolução deveriam ocorrer simultaneamente. Com essa discórdia no interior da frente antifascista, os anarquistas e os militantes do POUM sofrem diversos boicotes por parte do governo (PCE, PSE e esquerda republicana), como a falta de abastecimento de alimentos, armas e munições nas frentes de batalha. Com isso, ocorreu uma guerra dentro da guerra, mas agora travada entre anarquistas e POUM contra o governo. Assim, a Revolução foi traída em nome da “vitória” contra o fascismo.

Para saber mais sobre a organização dos médicos anarquistas na Revolução Espanhola, leia o texto Anarcossindicalismo y sanidad en la retaguardia y en la frente. Los casos de Valência y de la Columna de Hierro durante la Guerra Civil española, de Xavier Garcia Ferrandis. Nele vocês vão encontrar uma extensa bibliografia sobre o tema.

O papel do Estado no Golpe, Ditadura e implementação do Neoliberalismo no Chile

No dia 23 de novembro, recebemos no Centro de Cultura Social de São Paulo a companheira Aline Maciel para conversar sobre o Golpe, Ditadura e Neoliberalismo no Chile de Pinochet. A atividade contou com a participação de um público pequeno, mas muito interessado e participativo.

Aline começou fazendo um relato do processo histórico anterior ao golpe, realçando os avanços de diversas lutas sociais, como os cordões industriais, vinculando tanto uma luta territorial quanto sindical. Com o acirramento dessas lutas – tendo em vista a criação do Poder Popular que foi apoiado pelo Partido Socialista, mas que também fugia do controle do próprio partido e do Estado -, a vitória eleitoral de Salvador Allende e o medo do Chile se tornar uma nova Cuba o golpe foi dado, encabeçado por setores conservadores da sociedade civil, militares e governo dos EUA.

Com Pinochet no poder de Estado, várias foram as mudanças ocorridas no Chile, tal como o desmantelamento dos direitos trabalhistas, privatizações, censura, perseguições e torturas. O Chile se torna um laboratório para a implementação do neoliberalismo defendido pelos Chicago boys e os reflexos dessas medidas são sentidas até hoje, como o sistema previdenciário chileno – o trabalhador que contribuiu de forma integral recebe apenas 30% ou quando ajudado pelo Estado, no máximo, 45% do total, isso pq a previdência no Chile é gerenciada por um grupo administrador que especula o dinheiro do trabalhador e lucra muito com isso, modelo que aliás querem implementar aqui no Brasil.

Muito mais elementos foram trazidos pela companheira, mas dessa apresentação queria fazer duas reflexões. Primeiro, o neoliberalismo têm como discurso a criação de um Estado Mínimo, que não intervém ou intervém o menos possível na economia. Muito bem, mas pelo que foi discutido as medidas neoliberais só foram possíveis ser implementadas mediante o fortalecimento do próprio Estado, de um Estado interventor no sentido de reprimir os setores ingovernáveis e interventor para se criar uma sociedade submissa, para que se aceite a precarização da vida, o que o filósofo camaronês Mbembe chamou de o devir-negro, onde todo o conjunto da sociedade passa a se tornar a figura do negro escravizado do colonialismo.

A segunda reflexão que gostaria de compartilhar é o papel do Estado ainda quando ele era controlado por Salvador Allende. O presidente marxista eleito, apoiador dos cordões industriais e da construção do Poder Popular, momentos antes do golpe, foi alertado pelos trabalhadores dos cordões que o golpe estava por vir e que deveria-se armar a população para que isso fosse evitado. Allende, confiando na via chilena – transição pacífica para o Socialismo – e ainda muito contaminado de uma perspectiva etapista da história, decidiu não escutar essa fração mais radicalizada da base. Obviamente que não podemos afirmar que por conta desse motivo o golpe foi vitorioso, pois existem muito mais outros elementos em jogo, mas de entender a dinâmica do poder de Estado, mesmo sendo ele socialista ou minimamente progressista.

Partindo de um ponto de vista anarquista, toda forma de poder estatal pressupõe uma hierarquia onde as decisões são tomadas por uma classe política, de cima para baixo. Quando Allende foi eleito a população transferiu sua capacidade instituinte, o que acabou por instituir sua força de emancipação enclausurando-a nas mãos de alguns poucos. Se Allende tivesse escutado as bases, certamente a história teria sido outro…

Enfim… a conversa foi muito boa e a Biblioteca Terra Livre e o Centro de Cultua Social de São Paulo, vão realizar ainda mais eventos até o fim desse ano. Segue os eventos abaixo e estão todxs convidadxs!!!!

Organização e Resistência

Corpo Negro e Periférico: vidas nuas e necropolítica

História da escravidão no Brasil e Luta Antirracista

A história dos Cursinhos Livres de São Paulo: A construção de uma pedagogia da Ação Direta

Vitor Ahagon[1]

As reflexões que aqui compartilho são frutos de muitos debates com companheiros e companheiras do movimento anarquista, dos grupos de estudos Anarquismo e Educação da Biblioteca Terra Livre e das minhas experiências nos Cursinhos Livres de São Paulo. Agradeço à todas as pessoas que puderam partilhar um pouco de suas perspectivas e espero conseguir dar conta desse projeto em educação libertária tão bonito e pujante e que inspire a criação de novas iniciativas.

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Desde os anos 1990, com a maior oferta de vagas às Universidade, cresceu o número de cursinho populares em todas as cidades do Brasil e a Rede de Cursinhos Livres de São Paulo, se inserem dentro desta história de cursinhos populares, comunitários e, também, da mais recente trajetória dos cursinhos ditos “livres”. O primeiro cursinho livre surgiu na Lapa a partir do encontro de alguns militantes do espaço autônomo Casa Mafalda – que hoje já não existe mais em detrimento da falta de verba – e companheiras/os do bachillerato popular da Argentina. Se inspirando nas/os companheiras/os da Argentina, na educação anarquista (Escuela Moderna de Francisco Ferrer y Guardia e Escolas Modernas n.1 e 2 de SP) e nas experiências acumuladas por mais de duas décadas do Cursinho da Psico, nasceu o Cursinho Livre da Lapa (CLL) em 2015.

No mesmo ano, explodem por toda São Paulo, e depois em todo Brasil, as ocupações das escolas públicas contra a reforma do Ensino Médio do (des)governador Geraldo Alckmin, do PSDB. A partir dessas mobilizações, um grupo de estudantes secundaristas e educadores/as fundaram o Cursinho Livre da Sul – Ariba lxs que luchan (CLS-ALL), seguindo princípios muito próximos do CLL.

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No fim do ano de 2015, alguns educadores/as do CLL e militantes do espaço cultural Mané Garrincha se encontraram para discutir a possibilidade de fundarem um outro cursinho livre. Deste encontro, no começo do ano de 2016, nasceu o Cursinho Livre da Sé (CLS), funcionando no espaço Mané Garrincha.

No meio do ano de 2016, militantes que residiam na zona leste de São Paulo e alguns educadores/as dos outros CLs, resolveram fundar um cursinho livre intensivo para o ENEM, suprindo a necessidade da região. Desta vontade, nasceu o Cursinho Livre da Penha (CLP), porém, esta experiência durou pouco, tendo em vista que funcionava na garagem cedida por alguns companheiros que participavam do projeto e que se mudaram no fim daquele mesmo ano.

No começo do ano de 2017, militantes que residiam na Zona Norte de São Paulo, inspirados em toda essa história e experiências, fundam o CLN e que segue em funcionamento. E no ano de 2018, estudantes do CLS, por conta da dificuldade em pagar o transporte público e da distância fundaram o Cursinho Livre Cláudia Silva Ferreira (CLCSF), na zona Oeste de São Paulo.

A concepção dos Cursinhos Livres

Hoje, poucos são os jovens que saem das escolas públicas e conseguem ter acesso ao ensino superior gratuito. Diferente de outras realidades, quem mora na periferia além de precisar trabalhar para ajudar no sustento de casa, precisam se deslocar por grandes distâncias para ter acesso aos conteúdos que são cobrados no vestibular. Além disso, as mensalidades são muito caras dificultando ainda mais que estes jovens entrem para a universidade.

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É dentro deste contexto e com o objetivo de democratizar o acesso à universidade que surgiram os Cursinhos Livre. Partindo do princípio da autonomia política e pedagógica os CLs se empenham em construir um ambiente em que estudantes e educadores/as consigam experimentar uma vivência em pedagogia libertária e anticapitalista, estabelecendo relações de horizontalidade, solidariedade e liberdade responsável. Para isso, pensam que o trabalho coletivo, com outros coletivos e cursinhos, é fundamental. Por isso, buscam sempre realizar atividades, debates, conversas e discussões com companheiras/os de luta.

Dos princípios dos Cursinhos Livres

Os CLs fundamentam-se em oito princípios estruturantes que servem de orientação para a prática em aula e também durante a gestão das atividades, o primeiro de seus princípios é a  Autonomia política, econômica e pedagógica. Por autonomia, os CLs entendem que os objetivos dos cursinhos devem ser independentes e contrários às ideologias conservadoras e a manobras políticas, assim, não aceitam submeter os princípios e objetivos dos Cursinhos a interferências externas do ponto de vista político, pedagógico e econômico.

O Anticapitalismo, como segundo princípio considera que o capitalismo como sistema ideológico, político e econômico busca explorar e dominar a classe trabalhadora reproduzindo as desigualdades. Por isso, colocando-se contra sua lógica de organização da sociedade e em favor do fortalecimento das lutas anti-sistêmicas, não baseando suas ações em relações monetárias e na lógica da meritocracia.

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O terceiro princípio é o da Horizontalidade, buscando construir relações livres de hierarquia onde as tomadas de decisões sejam feitas pelas pessoas envolvidas no processo, sejam elas estudantes ou professoras/es.

A Valorização dos grupos socialmente marginalizados é o quarto princípio dos Cursinhos Livres. A partir dele, os CLs não aceitam posturas negativas e discriminatórias, em especial contra mulheres, pessoas negras homossexuais e pessoas trans, se comprometendo a valorizar sua história, cultura, saberes e lutas.

O Conhecimento crítico também é parte de seus princípios, entendendo que o contato com opiniões diversas, desde que elas não violem os princípios do Cursinho, enriquecem as discussões e constrói seres humanos mais críticos. Se comprometem, assim, a problematizar as verdades preestabelecidas, tanto no que diz respeito ao conhecimento requerido no vestibular, quanto ao papel convencional de educadoras/es em sua relação com estudantes.

No que tange a sua forma de organização social, o sexto princípio é o do Federalismo, ou seja, a descentralização do poder. Nos CLs se constrói uma forma de organização que busca a autonomia dos indivíduos nas áreas[2], das áreas no Cursinho e do Cursinho em relação à outros Cursinhos, não havendo, assim, a centralização de poder na posse de um, de pouco ou de muitas pessoas, mas sim um poder que esteja com o indivíduo e o coletivo, ao mesmo tempo. Valorizam também a participação ativa de educadores/as nas atividades do cursinho através de uma gestão coletiva.

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Em minha opinião, o sétimo princípio dos CLs é o que os diferencia de todos os outros cursinhos populares ou comentários, este é o da Ação direta. Os CLs entendem que a história nos mostra que as autoridades, sejam elas públicas, privadas ou religiosas, não têm e não tiveram o menor interesse em fornecer às classes populares uma educação crítica e que desse acesso às universidades. Por isso, criaram, coletivamente, suas próprias formas de organização e os meios pedagógicos para garantir esse acesso, sem esperar ações de intermediários ou representantes. Segundo os Cursinhos Livres “Ninguém melhor que a periferia que por tanto tempo foi esquecida para traduzir tão bem isso em poucas palavras: é nóis por nóis.”

E por fim, e não menos importante, o oitavo princípio é o do Apoio mútuo. Pautando as ações do Cursinhos e de estudantes e educadoras/es na cooperação e na solidariedade entre os indivíduos que se associam livremente para lutarem pela sua liberdade. Os CLs consideram o apoio mútuo antagônico à competição, que é a base da moral capitalista.

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Forma de organização

Boa parte da estrutura dos CLs de SP, vieram dos acúmulos que o Cursinho da Psico põe em prática até hoje. Para entendermos melhor como funciona, tomemos como exemplo o CLN e vejamos como foi construída sua organização. Até 2017, o CLN funcionava em dois lugares, no Centro Cultural da Juventude, de terça à sexta-feira das 19h às 22h, e na EMEF Prof Gilberto Dupas as segunda das 19h às 22h e aos sábados das 10h às 14h. Existia, em média, cerca de 15 a 20 estudantes, sendo em sua maioria mulheres, negras e da periferia, somando a esse número cerca de 20 educadores/as de todas as áreas: matemática, língua portuguesa, redação, química, física, biologia, geografia, história, língua inglesa, orientação vocacional[3], linguagens[4] e política[5].A organização se dava através de comissões. Estas comissões poderiam ter caráter permanente ou temporário, dependendo da sua função. Delas poderiam participar qualquer pessoa que fizesse parte do projeto, desde educadores/as até estudantes. Naquele ano existiam 4 comissões: Comunicação, Mediação pedagógica, Articulação Política e Finanças. As comissões serviam para fazer andar as decisões que haviam sido deliberadas em assembleia geral, onde todas as pessoas podiam participar, estudantes e educadores/as. Na assembleia, as decisões eram tiradas em consenso, com muita discussão.

Até 2017, como o CLN estava funcionando no CCJ e na EMEF G.Dupas, não pagavam o aluguel, já os materiais que eram usados em sala de aula foram fornecidos pelos próprios educadores/as. No entanto, existia no horizonte dos educadores/as do Cursinho Livre ter seu próprio espaço aumentando a autonomia e potência do projeto.

Naquele momento, ainda não tinham seu próprio material didático, por isso as aulas eram feitas pelos próprios educadores/as, utilizando as referências que cada um possuía. Porem, estava em seus horizontes criar o próprio material. Neste sentido, duas propostas estavam sendo encaminhadas: a primeira delas foi concretizada, a de fazer um podcast do CLN, aliando os conhecimentos aprendidos e a habilidade de criar ferramentas de propagação desse conhecimento; a segunda, e que ainda está em andamento, seria um material impresso com os conteúdos em formato de fanzine.

Existiam também as saídas pedagógicas, onde o objetivo seria discutir com as/os estudantes os temas que debatidos em sala de aula, tomando contato direto com o conhecimento. Assim, visitou-se o museu da resistência na estação da Luz e no CLL, foi feita uma saída de campo na praça da Sé, observando as dinâmicas que ali existiam e, inclusive, seus conflitos.

Partindo dessa mesma premissa, o do contato direto com o conhecimento, outra atividade do cursinho eram as conversas e debates que fazem com movimentos sociais e coletivos. Em uma das oportunidades, por terem tido uma discussão sobre movimentos de moradia, foi convidado a Ocupação Aqualtune, discutindo o acesso à cidade, moradia, emprego e dignidade. No mês da visibilidade lésbica, foi feita uma conversa com o coletivo brejo das flores, discutindo-se a discriminação sexual e outros temas. Em outra oportunidade, foi realizada uma oficina de podcast com o coletivo Desobediência Sonora e também uma conversa sobre encarceramento com o Coletivo Autônomo Herzer.

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Uma história inacabada…

A experiência de construção dos CLs ainda não está acabada. Apesar de não terem começado do zero, aprendendo com as experiências dos cursinhos anteriores, existem muitas situações novas e que tentam responder da melhor forma possível, seguindo sempre os seus princípios. Uma das dificuldades que enfrentam é o número reduzido de educadores/as e estudantes que tem participado das assembléias. Os/As educadores/as pensam que essa situação pode ser indicativo de duas questões: primeiro, o modo de vida capitalista nos impede de termos tempo suficiente para que possamos dispor da nossa energia num projeto onde o envolvimento é grande, por isso o trabalho que se realiza nesses espaços ganha um caráter muito mais voluntário do que militante. Em segundo lugar, o processo de construção de um projeto político que se dá de forma horizontal sempre será mais difícil de ser realizado, tendo em vista que fomos socializados, durante toda nossa vida, em estruturas hierárquicas, tais como a família, escola, trabalho, igreja, etc. As/Os educadoras/es dos CLs acreditam que construir autonomia sendo sujeitos heteronômicos é o grande desafio da contemporaneidade, pois este é um dos pilares da dominação de gênero, raça, sexualidade, religioso e de classe.

Apesar de todas as dificuldades, estudantes e educadores/as-militantes dos CLs consideram que construir um projeto pautado em seus princípios seria como tomar a vida em nossas próprias mãos. Pensam que a liberdade não se é dada, mas sim, conquistada, pelo trabalho coletivo e solidário. Neste sentido, todas as pessoas que partilham desse sonho e desses projetos, dizem juntos aos zapatistas : “A liberdade é como a manhã: alguns a esperam dormindo, porém alguns acordam e caminham na noite para alcançá-la”.

Notas:

[1] Professor de história e membro da Biblioteca Terra Livre.

[2] Chamamos de “áreas” as ditas “disciplinas” para o ensino tradicional. Assim nomeamos, tendo em vista que consideramos que o conhecimento não serve para o disciplinamento, mas sim para a emancipação.

[3] Sentimos a necessidade de chamar educadores/as que soubessem fazer uma discussão com as estudantes que não se reduzisse ao mercado de trabalho, mas que ajudasse a elucidar algumas dúvidas sobre o futuro profissional, para isso foi feito um chamado para psicicólogas/os e psicopedagogas/os. Mas não pensamos apenas esse aspecto, tomando emprestada as experiências do Cursinho Popular Transformação e a preocupação com a saúde psicológica de estudantes e educadores/as, criamos mais essa área.

[4] A área de linguagens tem como objetivo, fazer com que estudantes possam manter contato com outras formas de apreensão de mundo, não apenas pela via racional, mas também sensível. Acreditamos que essa é uma tarefa fundamental, tendo em vista o mundo coisificado do capitalismo.

[5] A área de política busca abarcar os conhecimentos de sociologia e da filosofia, mas não apenas através de discussões teóricas e conceituais, por isso, fora as discussões concernentes à esses conhecimentos, buscamos todo mês trazer um coletivo ou movimento social que esteja envolvido em alguma prática daquilo que estamos discutindo em aula. Portanto, movimento sociais e coletivos não são vistos por nós como objeto de conhecimento, mas como agentes sociais em diálogo constante com o cursinho.