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Comentários sobre o livro “Por uma economia libertária” de Frédéric Antonini

(Nota da Biblioteca Terra Livre: O texto que você tem acesso foi escrito originalmente no contexto da publicação da segunda edição do livro pela edições Nada publicada em 2022. Tomamos a liberdade de adaptar o primeiro parágrafo do texto para apresentar a edição do livro recém editada agora em português. Você pode ter acesso à edição em português no site: https://livrariaterralivre.lojavirtuolpro.com/pre-venda-por-uma-economia-libertaria/p)

A Biblioteca Terra Livre e o Centro de Cultura Libertária da Amazônia acabam de relançar um pequeno livro de Frédéric Antonini, Por uma economia libertária.

Falar sobre economia libertária é um assunto delicado porque corremos o risco constante de se equilibrar entre a utopia (como gostaríamos que as coisas acontecessem) e evocar o exemplo espanhol da Guerra Civil. O autor não cai em nenhum desses dois buracos; ele não pretende oferecer um programa definitivo, mas abrir caminhos para reflexão. Mas esses são caminhos ancorados na realidade como a vivemos hoje.

“Essas propostas parecem mais do que necessárias hoje, em uma época em que o futuro está obscurecido não apenas pela deterioração das condições de vida de tantos seres humanos, mas também, e principalmente, pela lenta erosão da esperança de uma vida melhor para todos.” É hora de saber “o que realmente precisamos para substituir esse mundo destrutivo e sua economia fundamentalmente predatória”. Ao perguntar “o que realmente precisamos para substituir”, o autor quer dizer que não devemos destruir tudo?

Antonini define uma economia libertária como “aquela em que as relações, estruturas e operações humanas estão influenciadas por grandes valores e princípios que o anarquismo preza. Cinco deles são fundamentais: liberdade ou autodeterminação, igualdade, responsabilidade, cooperação social ou ajuda mútua e justiça social”.

A economia libertária não pode ser encarada senão numa sociedade global imbuída dos mesmos valores. Acrescente-se que a busca de um bem-viver para todos é impossível numa sociedade baseada na perpetuação das relações de dominação. Por procura de um bem-viver, entenda-se o fato de viver numa sociedade e numa economia cujas estruturas e cujo funcionamento permitem que todos os indivíduos desenvolvam seu potencial.

A igualdade não se limita à igualdade de direitos e deveres: é tamanha “equivalência de situações” que os membros de uma sociedade se vejam “como iguais, independentemente das diferenças de situação” – grifo meu – o que sugere que não se trata de uma igualdade espartana: essa igualdade “pressupõe também que as diferenças nas situações sejam suficientemente medidas para que não possam dar origem a diferenças que sejam percebidas como desigualdades”. Entende-se, portanto, que a economia libertária prevista por Antonini não implica uniformidade absoluta de remuneração (ou de subsídios de consumo se preferirmos falar da abolição do trabalho assalariado).

Proudhon também não pensa que uma igualdade absoluta de salários será possível, mas que será uma tendência: “Sendo as estatísticas assim definidas, as retificações não tardarão a chegar. Sem dúvida, nunca teremos igualdade absoluta, mas, através de uma série de oscilações cuja amplitude diminuirá cada vez mais, aos poucos nos aproximaremos dela, e a igualdade aproximada logo será um fato” (Teoria da propriedade).

É verdade que esse problema não se coloca para os anarquistas de inspiração kropotkiniana, para os quais cada um consumirá “conforme suas necessidades”, expressão muito vaga na medida em que necessidades são um conceito bastante subjetivo. É uma expressão sobretudo prejudicial também na medida em que as necessidades individuais representam apenas uma parte das necessidades da pessoa em comparação com as necessidades coletivas – saúde, educação, moradia, fornecimento de água, gás, eletricidade, transporte e outras de que não me lembro.

Assim, Antonini nos diz que a economia libertária se opõe a “diferenças excessivamente grandes de riqueza”, mas também a “todas as formas de enriquecimento sem causa, porque elas são um ataque direto à igualdade socioeconômica” e aos valores fundamentais do anarquismo.

Admito que quando li “diferenças excessivamente grandes de riqueza” fiquei um pouco nervoso. Antonini entende “enriquecimento sem causa” como “qualquer enriquecimento que não seja consequência do trabalho ou de pertencer à sociedade humana”. Confesso que não entendo que enriquecimento estaria ligado a “pertencer à sociedade humana”. De resto, um “enriquecimento” ligado ao trabalho evoca muito a (falsa) polêmica que opôs os coletivistas bakuninianos e os anarquistas comunistas de inspiração kropotkiniana.

Do que se trata? Ativistas da Internacional antiautoritária como Bakunin se definiram como “coletivistas” (em vez de “anarquistas”) e basearam suas políticas na ideia de que cada trabalhador seria pago de acordo com seu trabalho. Esse princípio era dirigido contra os parasitas sociais que não trabalhavam, mas alguns anarquistas fingiram entender que isso excluía todos os membros da classe trabalhadora que não trabalhavam, tais quais crianças, esposas, doentes, velhos, o que obviamente não era o caso, como expõe sem ambiguidade a leitura de Bakunin. Kropotkin e com ele os anarquistas comunistas introduziram a ideia de que todos deveriam poder consumir de acordo com suas necessidades. Kropotkin inventou a ideia desastrosa de “tirar da pilha”, que quase todo mundo interpretou como uma abundância de onde cada um poderia se servir como quisesse. Poderíamos, no máximo, imaginar tal situação num futuro muito distante, implicando um desenvolvimento muito significativo das forças produtivas e uma produtividade muito alta do trabalho. Kropotkin sem dúvidas sabia disso, já que a formulação exata cuja segunda parte a maioria dos militantes omitiu era: “tirar da pilha o que é abundante, racionar o que não é”.

De fato, Antonini se volta à questão (quase insolúvel no estado atual dos debates no movimento libertário) da remuneração do trabalho numa sociedade libertária, rejeitando o ponto de vista dogmático segundo o qual “todo mundo tem a mesma remuneração que um trabalhador”. Ele considera a possibilidade de diferenças de renda, desde que não levem à “dominação lucrativa”. O problema que levanta é muito real, porque nos debates públicos somos frequentemente confrontados com questões como: “Mas, então, um trabalhador e um cirurgião serão pagos da mesma forma?” O militante que responde sim a essa pergunta é inevitavelmente taxado de irrealista e deixa de ser levado a sério. No entanto, há razões que justificam uma resposta positiva a essa questão, desde que se considere a aplicação desse princípio com o tempo. Levará muito, muito tempo para alcançar esse patamar.

E é Bakunin quem fornece a resposta.

Sobre as pessoas que estudam e fazem trabalho intelectual, ele diz que “o trabalho intelectual é um trabalho acolhedor que traz em si sua recompensa e não necessita de nenhuma outra remuneração”. Também acrescenta isto:

“Acontece muitas vezes de um operário muito inteligente ser forçado a se calar diante de um tolo erudito que o vence não pela inteligência, que ele não tem, mas pela educação, da qual o operário é privado, e que o tolo foi capaz de receber, porque, enquanto sua estupidez se desenvolvia cientificamente nas escolas, o trabalho do operário o vestia, abrigava-o, alimentava-o e lhe fornecia todas as coisas, professores e livros, necessárias para sua instrução.” (A instrução integral)

Sem chegar a dizer que as pessoas que estudam são tolas (bem, nem todas), Bakunin nos explica que “enquanto alguns estudam, outros trabalham para produzir os objetos necessários à vida”, primeiro para si mesmos e depois também para as pessoas que se dedicaram “exclusivamente ao trabalho intelectual”, porque o trabalho destas últimas “expande o espírito humano”.

A ideia que surge disso é que uma economia libertária seria uma economia na qual todas as atividades humanas seriam consideradas como integradas em um todo solidário e que, se diferenças de renda pudessem ser previstas, elas não deveriam levar à “dominação lucrativa”. A igualdade não hierárquica de renda é uma meta teoricamente desejável, mas a ideia é tão contrária a preconceitos arraigados na população que provavelmente levará gerações para ser realmente implementada.

Acrescentaria, com Antonini, que acumular dinheiro ou qualquer outra forma de símbolo de riqueza em um regime que aboliu a propriedade privada dos meios de produção não faria muito sentido. O problema é que Antonini não abole, estritamente falando, a propriedade dos meios de produção…

Justamente o capítulo sobre a propriedade é um dos mais interessantes deste pequeno livro: de início, Antonini nos diz que “a sociedade libertária reconhece a existência da propriedade privada”, mas dentro de limites por ela considerados aceitáveis. Em outras palavras, é a “sociedade”, portanto as “pessoas” (cidadãos? trabalhadores?) que definirão aonde não podemos ir em termos de propriedade. O autor acredita ser necessário esclarecer que, “em primeiro lugar, é claro que todos são livres para possuir bens pessoais”. Nem preciso dizer, mas talvez seja necessário: não gostaria que minha escova de dentes fosse coletivizada.

O restante do texto revela uma influência claramente proudhoniana, como todo o folheto. De fato, “a sociedade e a economia libertárias não rejeitam a propriedade privada dos meios de produção não naturais, ou seja, o capital criado pelo homem que permite a atividade produtiva regular. Portanto, elas aceitam a existência de empresas privadas”.

Antonini, porém, ressalta que a “propriedade produtiva” não constitui um conjunto de direitos tão amplo quanto nas sociedades capitalistas. Fora a propriedade pessoal, o autor distingue entre propriedade produtiva e propriedade imobiliária. Esses dois tipos estarão livres de uma série de exageros. Entende-se que as pessoas poderão manter a propriedade de suas casas, mas o que não é dito é: poderão adquirir a propriedade de uma casa?

Muito proudhoniano, Antonini se levanta contra os abusos de propriedade. Segundo ele, “o principal abuso da propriedade (…) é que ela pode dar origem a uma remuneração por si mesma, ou seja, em razão de sua mera posse”. Não está formulado de forma muito clara, acredito eu, mas está entendido que não é permitido obter renda com aluguel de imóveis.

Muitas vezes as coisas são ditas de forma indireta, o que torna a proposta pouco compreensível. Um exemplo:

“Entretanto, o fato de a propriedade não ter fins lucrativos não significa que não haja renda proveniente de sua propriedade, empréstimo ou transferência. A possível perda de valor e a renúncia de uso podem, sob certas condições, ser compensadas. Por exemplo, é concebível que a renda não gasta representada pela poupança possa ser remunerada de forma a manter seu poder de compra.”

Quando a propriedade do imóvel permite que se obtenha rendimentos através de seu “empréstimo”, para mim isso se chama “aluguel”. Da mesma forma, quando a renda é derivada por meio de sua “transferência”, isso se chama venda. Na sociedade libertária de Antonini, eu poderia simplesmente alugar ou vender meu apartamento ou casa.

Além disso, não entendo o que significa “perda de valor” ou “renúncia de uso” de um bem. Se meu apartamento “perder valor” (incêndio? inundação?), as causas devem ser determinadas e possivelmente o seguro deve ser solicitado ou possivelmente outra forma de indenização utilizada pela sociedade. Se eu “renuncio ao uso” do meu apartamento, é porque o doei e não há necessidade de indenização ou porque o vendi e o produto da venda é em si uma indenização.

Por fim, Antonini considera a possibilidade de remunerar a poupança das pessoas para manter seu poder de compra – e supomos que o que tem em mente são pequenos poupadores, não os que se envolvem em grandes especulações financeiras. Além disso, manter o poder de compra de uma categoria da população, poupadores (e outros?) significa inflação, portanto dinheiro. Nesses poucos aspectos, é perigoso que o autor se desvie significativamente da abordagem libertária, ou então seria necessário que ele esclarecesse bastante seu pensamento.

Antonini nos diz que a transferência de propriedade não pode dar origem ao enriquecimento e que a “transferência sujeita a pagamento” (a venda, em suma) de um bem por seu proprietário “em nenhuma circunstância poderá exceder o valor da compensação pela renúncia de uso”, ou seja, o valor de sua aquisição e os custos incorridos durante a compra.

Proudhon abordou todas essas questões durante a Revolução de 1848. Em resumo, ele imaginou uma espécie de acordo entre inquilinos e proprietários: os inquilinos pagariam aluguel aos proprietários até que os valores pagos correspondessem ao valor da moradia; depois disso, a moradia se tornaria propriedade do inquilino. Em outras palavras, os aluguéis não constituíam uma renda indefinida em benefício do proprietário.

Uma vez que os inquilinos pagavam aos proprietários o valor da moradia, elas eram municipalizadas e a sua manutenção devolvida à cidade – em outras palavras, o inquilino pagava sua moradia ao proprietário, em benefício da municipalidade… Se fosse necessário trabalho, eram convocadas “empresas de trabalhadores”, uma espécie de associação de trabalhadores da construção.

Antonini, por sua vez, introduz a noção de “obrigação de uso”: “a ausência de uso a longo prazo de uma propriedade transferida resulta na extinção da propriedade pessoal da propriedade”. Trata-se, obviamente, das inúmeras moradias vagas que proprietários não ocupam muitas vezes durante anos. “A propriedade é então transferida para a empresa”, declara Antonini, acrescentando que tais sistemas já existem em muitos países.

Um “programa de transição”?

Na sociedade libertária, como Antonini a vê, há um “pluralismo produtivo”. Aqui, novamente, encontramos vestígios de Proudhon (intencionais ou não). A economia libertária é “essencialmente pluralista”, admite “a diversidade de formas de produção, distribuição e consumo, desde que respeitem os valores e princípios fundamentais do anarquismo”. Em outras palavras, coexistirão organizações produtivas com e sem proprietários, mas também com fins comerciais e não comerciais. Aqui esperamos que o autor nos explique como tudo isso respeita “os valores e princípios fundamentais do anarquismo”…

Ao contrário da crença popular, Proudhon não era um defensor fanático dos pequenos negócios. Ele simplesmente dizia que proprietários de pequenas oficinas industriais que empregavam um ou dois funcionários que não viviam muito diferente de seus chefes eram caracterizados por uma fraca divisão de trabalho e que seriam varridos pela evolução do sistema industrial.

Segundo Antonini, haverá três tipos de empresas:

  • Empresas coletivas, detidas e geridas por seus próprios trabalhadores.
  • Empresas coletivas de interesse público, nas quais a “sociedade” é representada por meio de diferentes agentes: consumidores, moradores, etc., ou “instituições que emanam da sociedade como um todo”.
  • Empresas individuais: na economia de empresa individual, trata-se de um negócio de propriedade e administrado por um único proprietário. Se uma empresa unipessoal emprega mais de um trabalhador, ela é considerada uma empresa coletiva.

Vamos fazer uma observação: a expressão “a sociedade” aparece com bastante frequência e devo dizer que é bastante irritante. Lemos que a remuneração será limitada “pela sociedade” (p. 12). Que esta ou aquela decisão será tomada por “instituições que emanam da sociedade como um todo” (p. 49). Que esta ou aquela outra escolha será definida “por padrão pela sociedade” (p. 49). Que o piso da remuneração é “limitado pela sociedade”. “A sociedade determina o nível do subsídio social…” (p. 58). E por aí vai.

O que é “a sociedade”? Poderíamos dizer que é o Estado. Ou a federação de comunas. Entendemos que é uma organização global que “fiscaliza” todas as instituições que participam da autogestão da sociedade. Mas o que seria interessante é saber do que é feita essa instituição e como ela está organizada.

“A economia libertária é, portanto, uma economia autogerenciável em uma sociedade autogerenciável”, diz o autor; Quanto às orientações globais, “macroeconômicas”, diriam, elas são determinadas num “nível mais social”. O que é esse “nível social”? É com certeza uma escolha se manter numa formulação vaga. É interessante ver que essas orientações globais (“escolhas econômicas e não econômicas”) serão “impostas a todas ou em partes das organizações produtivas”.

Vamos relembrar algo que é com frequência ignorado no movimento anarquista: Proudhon e Bakunin eram a favor da descentralização em questões políticas e da centralização em questões econômicas. Em outras palavras, a descentralização da tomada de decisão relativos às grandes direções da sociedade e a centralização dos métodos de implementação das decisões tomadas.

Segundo Antonini, as “organizações produtivas”, ou seja, as empresas, terão relações com a “sociedade” baseadas no federalismo e na subsidiariedade. Em resumo, as empresas terão autonomia de atuação dentro dos limites de suas atribuições. A “empresa” só intervirá para estabelecer um quadro geral e definir as diretrizes ou quando as decisões a tomar ultrapassarem a competência das empresas em questão. Tudo isto é perfeitamente “ortodoxo”, mas há um problema quando o autor diz que “as organizações produtivas são livres para organizar seus relacionamentos da forma que considerarem melhor: livres para competir ou cooperar, de forma justa e não dominante”. Parece difícil imaginar um sistema econômico no qual as empresas serão capazes de competir ou cooperar. Também parece difícil imaginar um sistema no qual as empresas serão capazes de competir “de forma justa” em que “a concorrência e a cooperação se misturam”.

Proudhon disse: “A concorrência é a força vital que anima o ser coletivo: destruí-la, se tal suposição pudesse ser feita, seria matar a sociedade.” Contudo, ele esclarece isso: “A concorrência deixada por conta própria e privada da direção de um princípio superior e eficaz é apenas um movimento vago, uma oscilação sem propósito do poder industrial, eternamente jogado entre esses dois extremos igualmente desastrosos” (Sistema de contradições econômicas). Antonini parece, portanto, estar em perfeita ortodoxia proudhoniana, o que não significa que sejamos obrigados a seguir Proudhon nessa questão. O perigo é que, uma vez introduzida a competição controlada, ela rapidamente se torne incontrolável.

Vamos deixar de lado a produção e se concentrar na distribuição. Os produtores associados ou individuais são livres para escolher o método de distribuição dos seus produtos, “ou seja, como os usuários acessam seus produtos”.

Em uma economia libertária, os modos de distribuição mais sociais serão valorizados. O objetivo de Antonini é alcançar uma sociedade capaz de “criar uma adesão livre e generalizada ao trabalho livre e voluntário”, o que eliminaria os custos materiais e permitiria o fornecimento livre e gratuito de produtos. Até chegarmos a esse ponto, no entanto, os “produtores organizados” terão que “optar por formas mais econômicas de distribuição” para “recuperar os custos de produção”.

Aqui, estamos perto do “tirar da pilha” de Kropotkin. Contudo, mesmo que o trabalho fosse livre e voluntário (o que implica que as pessoas pudessem ter acesso gratuito aos produtos necessários à sua subsistência), esse trabalho seria muitas vezes feito com máquinas e produtos extraídos do solo, vegetais ou minerais, o que necessariamente envolve custos de produção.

Ainda faltam alguns capítulos sobre a questão dos preços, do dinheiro e das trocas com as economias de dominação. Este último capítulo nos revela a intenção do autor em seu pequeno livro. Se uma sociedade libertária quiser se estabelecer o mais amplamente possível, ela terá que decidir se mantém relações com “partes do mundo que ainda não são libertárias”.

Este capítulo ignora o fato de que as chamadas economias de “dominação” provavelmente não estarão dispostas a se envolver com uma sociedade libertária ou em transição para o socialismo libertário. É muito mais provável que lhe sejam hostis e lutem contra esse projeto de emancipação.

Em resumo, as condições das trocas que serão estabelecidas terão que respeitar uma série de critérios sociais e éticos. De fato, o livro Por uma economia libertária lança as bases para pensar em determinar um verdadeiro programa de transição. Antonini nos mostra em diversos momentos que as propostas que faz muitas vezes já são aplicadas no sistema atual, mesmo que de forma atenuada.

Por exemplo, quando o autor diz que numa sociedade libertária a “propriedade autogerenciada de empresas” não é cambiável num mercado, ele especifica que ainda hoje os títulos de propriedade das cooperativas não são livremente negociáveis. Falando em crédito, ele ressalta que o financiamento coletivo está em alta e que a economia libertária manteria essas modalidades. Sobre os mercados financeiros, ele nos informa que sua ausência ou quase ausência já existiria em larga escala – mais uma vez encontramos Proudhon. Aqui, entretanto, Antonini se encontra em contradição com o que ele disse sobre a revalorização do poder de compra da poupança…

Antonini explica sua abordagem quase no fim de seu texto, em uma passagem que me parece a mais interessante da obra:

“A economia libertária não é uma criação ex nihilo. As sementes da economia e da sociedade libertária podem ser encontradas inteiramente na economia e na sociedade de hoje. Não há necessidade de pensar em nada rebuscado: quase tudo já está lá, na realidade e em potencial. Quase tudo está aberto ao escrutínio e ao desenvolvimento.” (p. 71)

Não há dúvida de que esta declaração chocará muitos os libertários mais radicais (ou dogmáticos). No entanto, é perfeitamente consistente com a história europeia e levanta a questão da transição entre o regime capitalista e uma sociedade livre da exploração. Ao contrário da crença popular, pensadores como Proudhon, Bakunin e Cornelissen disseram a mesma coisa: ninguém passa de um regime para outro num passe de mágica. Bakunin diz simplesmente que essa transição não deve ocorrer sob o domínio do Estado.

* * * * * *

Há uns anos, após um congresso da Federação Anarquista, alguns camaradas decidiram se reunir para discutir o desenvolvimento do que foi designado como “Programa Mínimo de Base” ou “PMB”. Infelizmente, a ideia logo fracassou, apesar de um começo muito promissor. A origem dessa iniciativa foi a constatação de que a propaganda anarquista parte de uma visão (nem sempre muito clara) do objetivo (maximalista) a ser alcançado, sem que o processo para alcançá-lo seja mencionado, o que de fato anula toda credibilidade do discurso anarquista. Houve pelo menos um precedente para um “programa de transição”, o da CGT-SR nas décadas de 1920 e 1930.

Talvez o livro de Antonini pudesse servir de ponto de partida para retomar esse projeto.

René Berthier

tradução: Daniel Falkemback

20 anos sem Carlo Giuliani

Há vinte anos Carlo Giuliani se despedia de nós. Não, não foi uma despedida. Ele foi retirado de nós. Assassinado a sangue frio, baleado, atropelado.

Hoje ele teria 43 anos. Poderia ser pai, ter sua família, seu trabalho e olhar distanciado para Gênova em 2001, não vendo nada mais que seus sonhos de juventude. Ou poderia seguir lutando por um mundo que não seja governado pelas corporações, nos ensinando o que aprendeu ao longo de décadas de luta.

Carlo poderia ter sido aquilo que ele quisesse. Mas retiraram sua vida para amedrontar, para servir de exemplo a quem quisesse questionar o poder do G8 e das demais instituições que querem reinar soberanas.

Carlo serve de exemplo, mas não para nos dar medo. Sua memória nos inspira para seguir em frente, para lembrar que sua vida e de todos aqueles e aquelas que também foram arrancados de nós não foi em vão.

Fernando Tarrida, anarquista sem mais adjetivos

No já longínquo ano de 2013 a Biblioteca Terra Livre iniciou a publicação de panfletos introdutórios sobre o anarquismo a fim de facilitar a divulgação das ideias anarquistas. Simultaneamente demos início a uma série de leituras de formação interna no coletivo. Entre os materiais lidos alguns se tornaram panfletos e foram distribuídos (impressos e online), outros, contudo, por algum descuido ou desatenção, permaneceram restritos e não chegaram a circular fora do grupo da Biblioteca.

Buscando seguir com o trabalho de difusão das ideias e práticas anarquistas, disponibilizamos a carta de Fernando Tarrida del Mármol, que a despeito dos 130 anos de sua escrita, segue como um importante documento para reflexão da prática anarquista.

Anarquia sem adjetivos, de Fernando Tarrida de Mármol

Quem foi Fernando Tarrida: o anarquista sem adjetivos?

Fernando Tarrida del Mármol (1861-1915)nasceu em Cuba, filho de ricos emigrantes de Sigtes, estudou em Barcelona e em Toulouse. A obra organizada por Miguel Íñiguez, Esboço de uma Enciclopédia do Anarquismo Espanhol, explica que ele foi um republicano federalista na sua juventude, mas logo se converteu ao anarquismo ao conhecer Anselmo Lorenzo, do qual foi amigo íntimo, e ao ler Proudhon, Bakunin e Kropotkin, ainda muito jovem. Terminou o curso de engenharia em Madri, pago por ele mesmo a partir de aulas particulares, já que sua família não via com bons olhos sua filiação às ideias ácratas. Retornou posteriormente a Barcelona e iniciou uma intensa atividade militante participando de reuniões, sendo redator da publicação Acracia e realizando diversas conferências. Dirigia a Academia Politécnica de Barcelona, quando foi preso em julho de 1896 depois dos acontecimentos de Cambios Nuevos, que iniciou o momento mais crítico de repressão contra o movimento anarquista, sendo liberado após um mês. Fugiu da Espanha e começou a militar em Paris com Charles Malato, bem como atuou na Bélgica e em Londres.

Tarrida é conhecido, principalmente, por sua teoria do anarquismo sem adjetivos, aceita amplamente no movimento; em 1890, no periódico anarquista francês La Révolte, que era dirigido por Jean Grave, houve uma polêmica, na qual uns eram a favor do mutualismo e outros do coletivismo; Tarrida enviou uma carta ao La Révolte, expondo como o movimento espanhol interpretava o desenvolvimento de uma sociedade que chega ao anarquismo: “pois não somos ninguém para designar o que outros vão fazer, eles criarão de acordo com o que lhes convir a forma de organizar suas vidas”. Esta teoria foi exposta no Segundo Concurso Socialista, celebrado em Reus, em 1889, em vários artigos do Le Révolte e em diversos folhetos; foi um exemplo de superação eficaz dos confrontos na difusão do ideal anarquista evitando todo dogma político, econômico ou religioso.

Fernando Tarrida foi descrito como um homem simples e inteligente; de ideias relacionadas às de Kropotkin, introduziu na Espanha o conceito de “apoio mútuo” antes que fosse traduzida a obra de mesmo título e teve a aspiração de dar fundamento racional e científico às questões sociais. A confiança de Tarrida na ciência para resolver os problemas sociais se mostra na seguinte reflexão apresentada em La Revista Blanca em 1904 (publicação em que ele, depois de seu exílio em Londres, teria uma seção fixa sobre questões científicas): “Qualquer matemático riria daquele que pretender dar valores a uma função algébrica (…). E sem embargo isso é o que faz todo legislador ou inventor de dogmas políticos, econômicos ou sociais. Ditar uma lei para a coletividade ou função, com objetivo de que os indivíduos de dita coletividade, isto é, as variáveis, ajam de tal modo que é, não somente um ato tirânico, senão também uma heresia matemática. Igualmente como querer eliminar um mal social, função de uma porção de variáveis, sem dar a elas os valores que reduziriam a zero sua função: por exemplo, querer eliminar por meio de leis, o roubo, a usura ou o assassinato, funções inseparáveis de uma porção de circunstâncias variáveis que ninguém ignora, sem modificar estas circunstâncias”.

Esta breve biografia foi traduzida e adaptada a partir do texto de Jose María Fernández Paniagua, publicado no periódico anarquista Tierra y libertad n. 280 (Outubro de 2011). A tradução foi de Giulianna Miguel e a revisão e adaptação de a.s.

Não há tempo para paciência: Fascismo, clima e capitalismo, por Mark Bray

Image: La Rote Art

Estamos vivendo em tempos sinistros. Toda semana algo novo: assassinatos de supremacistas brancos em Kentucky e Pittsburgh; a contínua ascensão da extrema direita na Europa; Os ataques de Trump aos direitos dos transgêneros; a eleição do aspirante a tirano Jair Bolsonaro à presidência brasileira; o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas informa que a catástrofe climática provavelmente ocorrerá em apenas 20 anos. Qual é a próxima novidade?

Em um momento em que devemos nos unir globalmente para reorganizar nosso modo de vida para evitar um desastre climático, muitas partes do mundo estão se voltando para a direita, rejeitando o internacionalismo e demonizando comunidades marginalizadas. Como chegamos aqui? Como podemos escapar da aniquilação?

Raízes sobrepostas do fascismo e da catástrofe climática

Para responder a essas perguntas é crucial entendermos como a ascensão da extrema direita e a iminência de uma catástrofe climática são ameaças relacionadas. Obviamente, a extrema direita promove políticas e perspectivas que destroem o planeta. Atualmente, o governo Trump está trabalhando duro para revogar as políticas de proteção ambiental de Obama. O presidente filipino, Rodrigo Duterte, levantou uma moratória à exploração de mineração enquanto pressionava uma mudança constitucional que aumentaria a exploração multinacional dos recursos das Filipinas. O recém-eleito presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, está preparado para permitir que o agronegócio reine livremente reduzindo a floresta Amazônica.

Mais fundamentalmente, forças fascistas e de extrema-direita promovem o ultra-nacionalismo e xenofobia que impedem a tarefa essencial de colocar os interesses do planeta e de todos os seus habitantes sobre os de qualquer grupo. O nacionalismo alimentou não apenas a oposição à União Européia, mas também uma rejeição ao Acordo de Paris e uma ampla recusa climática entre os partidos de extrema direita europeus como UKIP, Front National e Democratas da Suécia. A ameaça da catástrofe climática é muito mais iminente e flagrante no sul global, e a supremacia branca claramente desencoraja a preocupação com a maior parte do mundo. Os chamados “ecofascistas”, adotam o conceito de bio-regionalismo para avançar em suas políticas genocidas, mas seus pontos de vista não têm influência significativa na política de extrema direita atual e sua solução “ambiental” não é digna de um engajamento racional.

Mas nossa análise não pode parar por aqui. Governos centristas e até nominalmente “esquerdistas” adotam políticas anti-ambientais. Os principais signatários do Acordo de Paris não estão no ritmo de alcançar as metas do acordo, e mesmo que fossem, seria tarde demais. Não, as raízes dessas crises se estendem muito mais profundamente.

Devemos reconhecer que a crise climática e o ressurgimento da extrema direita são dois dos sintomas mais agudos do nosso fracasso em abolir o capitalismo.

Um sistema capitalista que prioriza o lucro e o crescimento perpétuo sobre tudo e todos é o inimigo mortal das aspirações globais por uma economia sustentável que satisfaça as necessidades e não as carteiras de ações. O “capitalismo verde” foi apresentado como um compromisso que poderia permitir à humanidade manter o planeta e devorá-lo também. Porém, dados científicos mostram que ajustes incrementais dos padrões de poluição e proibição de canudos de plástico não podem compensar a destruição causada pelas 100 empresas que produzem 71% das emissões globais. Com muita freqüência, os esforços para reduzir a poluição (ou estabelecer condições de trabalho decentes) são prejudicados pela capacidade das finanças multinacionais de se oporem às leis locais ou de não investir em países ou regiões que desafiam sua lucratividade.

A crise capitalista, a concorrência e a escassez fabricada também fornecem combustível essencial para o crescimento da política fascista e da extrema direita – especialmente quando não há alternativa viável da esquerda. Os primeiros movimentos fascistas e nazistas cresceram explorando a insegurança econômica durante a Grande Depressão, enquanto a esquerda se dividiu. Na década de 1970, a Frente Nacional fascista se aproveitou da turbulência econômica no Reino Unido e, mais recentemente, o surgimento de partidos como o fascista Golden Dawn na Grécia deveu muito à crise financeira de 2008. Em parte, Bolsonaro chegou à vitória aproveitando o desencantamento popular decorrente da “pior recessão desde o retorno da democracia”.

Em tempos de crise, podemos olhar para fora em solidariedade ou nos voltar para dentro com medo reacionário e xenófobo. O fascismo e a política da extrema direita aproveitam e promovem temores de diferenças e ansiedades sobre o desemprego e a ruína financeira quando as alternativas deixadas vacilam. Quando, tanto na Grécia como no Brasil, partidos políticos declaradamente socialistas adotaram medidas brutais de austeridade, abriram a porta para a extrema direita. Nos Estados Unidos, Trump conseguiu capitalizar a oposição às políticas de livre comércio que se tornaram a marca registrada do Partido Democrata. Num contexto de ansiedade econômica, Hillary Clinton prometeu “colocar muitos mineiros de carvão” fora do trabalho – se isso fosse do interesse de salvar o planeta – contribuiu para a capacidade da extrema direita gerar apoio à Trump, aproveitando o antagonismo entre a classe trabalhadora de subsistência e sustentabilidade ecológica que o capitalismo promove.

Alteração do sistema, não de “civilidade”

Mesmo os estados assistenciais do norte da Europa, que conseguiram evitar a austeridade severa, não conseguiram impedir a ascensão da extrema direita. Em parte, isso decorre da ascensão do chauvinismo do bem-estar social – a crença de que o bem-estar é benéfico, mas não deve ser estendido aos “forasteiros” – o que demonstra as limitações da “social-democracia em um país” quando essa riqueza ainda é produzida pela exploração da recursos e mão-de-obra do sul global.

Uma análise muito diferente, foi oferecida recentemente por especialistas e políticos centristas nos EUA ao argumentarem que a raiz subjacente das ameaças à nossa sociedade surgiram do crescimento do “extremismo” às custas da “moderação”. Quando Cesar Sayoc enviou bombas para figuras do Partido Democrata, Chuck Schumer ecoou os infames comentários de “ambos os lados” de Trump argumentando que “atos desprezíveis de violência e assédio estão sendo realizados por radicais em todo o espectro político”. Para Rachel Maddow, “separatistas porto-riquenhos” e a KKK são simplesmente “grupos extremistas violentos”. A política de internar crianças migrantes em campos de concentração gerou menos um debate público sobre o racismo institucional do que sobre a “civilidade” daqueles que confrontaram os arquitetos da política. Certamente, esse argumento implícito – de que nenhuma política é cada vez mais hedionda do que a “incivilidade” de quem viola o decoro comum ao protestá-lo – abre caminho para o autoritarismo ascendente, enquanto reduz o escopo da resistência.

O discurso centrista abstraiu a supremacia branca e o anti-semitismo em “ódio”, despolitizou o fascismo e o antifascismo ao caricaturizá-los como imagens invertidas do “extremismo” e ignorou o que deveria ser uma das notícias mais importantes: a destruição iminente do planeta .

Os debates sobre reforma X revolução travam a esquerda por gerações. Mas agora estamos dentro de um prazo. O menor mal-estar entre os políticos capitalistas pode ter alguma justificativa ao passar cinco minutos votando no dia das eleições, mas não temos tempo para que seja uma perspectiva estratégica orientadora. Precisamos organizar movimentos para construir o poder popular e fechar as indústrias que ameaçam nossa existência.

O fascismo é ascendente. O mundo está pegando fogo. Não é hora de ser paciente. Se não abolirmos o capitalismo, o capitalismo nos abolirá.

Esta peça foi publicada originalmente pela TruthOut sob o título “Como o capitalismo ataca a extrema-direita e a catástrofe climática”. Se você gostou deste artigo, recomendamos o artigo relacionado “De Pittsburgh ao Brasil: anti-semitismo e violência fascista”.

Mark Bray é um historiador de direitos humanos, terrorismo e política na Europa moderna. Ele é o autor de Antifa: O Manual Antifascista, Traduzindo Anarquia: O Anarquismo de Ocupar Wall Street, e o co-editor da Educação Anarquista e da Escola Moderna: Um leitor de Francisco Ferrer.

Tradução a partir do texto original disponível no site do Black Rose Anarchist Federation

Genocídio e Etnocídio dos povos originários na Ditadura Civil-Militar brasileira

Nos dias 10 e 17 de novembro, a Biblioteca Terra Livre realizou duas atividades na Biblioteca Menotti Del Picchia, localizada no bairro do limão, perto da favela do Agreste. Nestas atividades discutimos como o Estado brasileiro aplicou uma política de genocídio (extermínio físico de um povo) e etnocídio (destruição cultural de um povo) contra os povos originários  e como vigiou e reprimiu os movimentos negros, nos anos de 1964 a 1985.

O intuito deste pequeno texto é compartilhar alguns pontos e discussões que fizemos nesses dias tão bacanas.

Antes de falar exatamente sobre os temas, é bom começar contextualizando o período tanto no âmbito internacional quanto doméstico. No pós segunda guerra, o mundo vivia sob a Guerra Fria, onde havia intensa polarização entre dois blocos: o capitalista, liderado pelos EUA e o soviético, liderado pela URSS – escolhemos nomear como “soviético” este último bloco, pois segundo nosso ponto de vista e de muitos outros, como por exemplo Maurício Tragtenberg, o que havia na URSS não era socialismo, mas capitalismo de Estado.

Esta polarização acabava se refletindo em todos os níveis. Na América Latina, em 1959 ocorreu a Revolução Cubana e a posterior crise dos mísseis em 1962. No Chile, temos a eleição do médico e político marxista Salvador Allende em 1970. Percebemos, assim, um claro avanço das ideias socialistas e nacional-progressistas no continente sul americano, mas que também teve seus reveses. Somente no ano de 1954, Guatemala e Paraguai se tornam uma ditadura. 1962, foi a vez da Argentina; em 1964, Brasil e Bolívia; a vez da República Dominicana, em 1965, Peru em 1968 e por fim, Uruguai e Chile – com o golpe em Allende – em 1973.

A intensificação das disputas entre as forças progressistas e conservadoras também se deu no Brasil. Nesse contexto, percebemos um (re)crescimento da participação popular na política, tendo como exemplos as Ligas Camponesas e os movimentos estudantil e sindical. Estas tensões se tornam ainda maiores com a renúncia de Jânio Quadros do cargo da presidência. A substituição de seu vice, João Goulart – o Jango – foi marcada por muitos conflitos, como a mudança do sistema de governo de presidencialismo para parlamentarismo.

As forças conservadoras saem às ruas e se organizam. Neste grupo podemos a notar a presença de certos setores da Igreja Católica, como a Tradição Família e Propriedade (TFP), a grande imprensa, empresários e as Forças Armadas, principalmente àquelas do alto escalão. A partir dessas tensões, e com o auxílio do governo dos EUA, os militares dão o golpe em 31 de março de 1964.

Após essa introdução, o papo que batemos no dia 10 de novembro foi como a ditadura militar tratou os povos indígenas. A questão indígena na ditadura civil-militar teve alguns marcos importantes, como a substituição do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967 e a criação do Estatuto do Índio em 1973. Os objetivos da FUNAI e do estatuto era o de tutelar, integrar e proteger a população indígena, pois eram considerados pelo Estado brasileiro como “relativamente incapazes” de serem autônomos. Uma ironia sem tamanho, pois primeiro eram capazes; segundo, se alguns não fossem, o eram justamente graças a ação estatal perpetrada, insistente e permanente, em colocar a população indígena numa posição de servidão.

Nesse momento, nos perguntamos: “Mas como esse estatuto e a FUNAI tutelaram, integraram e protegeram os povos indígenas?”. A estratégia da ditadura civil-miltar brasileira seguiu dois caminhos: a interiorização e colonização dos territórios dos povos originários. Este projeto, meticulosamente arquitetado, ganhou corpo em 1970 quando o Banco Mundial destinou 40 milhões de dólares para investimentos na pecuária. Diante dessa “ajuda internacional”, o governo isentou o imposto de renda em 50% e outras facilidades à corajosos aventureiros e desbravadores, levando progresso aos mais recônditos confins do Brasil. Assim sendo, foram construídas e ampliadas rodovias que cortarão o Brasil de Norte à Sul e de Leste à Oeste, como a Transamazônica e a BR-80.

Para conseguirem colonizar o interior do Brasil, os militares buscaram implementar o plano de integração dos povos indígenas à Nação. A partir dessa assimilação, foram contabilizados mais de 8.350 indígenas mortos e/ou desaparecidos no período da ditadura civil-militar. Portanto, quando lermos ou ouvirmos da boca de certas autoridades os termos “assimilação” e “integração”, devemos entender “genocídio” e “etnocídio”.

As violências sofridas pela população indígena foram enormes. Muitos foram os agentes dessas violências, inclusive os próprios funcionários da FUNAI. As proporções dessa violência foram tão grandes que em 1977 foi criada uma comissão parlamentar para averiguar estas denúncias. A partir das investigações, ficou claro a estreita relação entre os políticos de Brasília, a FUNAI e o Esquadrão da Morte. Tanto é que o antropólogo Darcy Ribeiro chamou a atuação do Esquadrão da Morte de “genocídio terceirizado”, o que acabava por ligar os massacres indígenas às torturas de presos políticos e a matança de “desajustados” – mendigos e marginais.

Várias foram as formas de genocídio e etnocídio: ofertas de alimentos envenenados; massacres com armas de fogo; sequestros de crianças; realocação para outros territórios; retirada das terras; campos de concentração; contágios propositais de doenças como a varíola, tuberculose, gripe, sarampo etc.

No mesmo ano da formação da comissão parlamentar, foi realizado um relatório sobre a violência contra a população indígena nos anos anteriores à ditadura civil-militar, ainda quando os povos indígenas eram “tutelados e protegidos” pelo SPI. O relatório, com mais de 7.000 páginas, foi elaborado pelo procurador Jader Figueiredo.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que o Relatório Figueiredo havia sido destruído em um incêndio, mas foi encontrado no museu do índio, no Rio de Janeiro. Foi realizado um processo de restauro do documento e nele podemos ler páginas e mais páginas que relatam casos brutais de violência sofridas pelas populações indígenas. O filho do procurador, Jader Figueiredo Junior, nos conta que quando o pai chegou à uma aldeia “encontrou a mulher amarrada entre duas estacas pelos pés, de cabeça para baixo, partida longitudinalmente ao meio por piques de facão.” Estes massacres foram realizados por latifundiários e pelos próprios funcionários do SPI. Para as pessoas que tiverem estômago, o Relatório Figueiredo foi digitalizado e pode ser encontrado aqui.

Jader Figueiredo Correa, após ter elaborado o relatório, morreu misteriosamente num acidente de ônibus aos 53 anos de idade.

Mas aí veio a pergunta: “porque os povos originários foram tão brutalmente massacrados?” O indígena era – e continua sendo – visto como um empecilho ao desenvolvimento econômico do Brasil. Portanto, um entrave ao crescimento do Poder Nacional, sendo, desse modo, um obstáculo e um perigo à Segurança Nacional.

A Doutrina de Segurança Nacional era balizada a partir do binômio: desenvolvimento e segurança. Portanto, a população indígena, segundo a perspectiva dos militares – mas também de civis – deveria ser integrada à Nação e aquelas que recusassem a assimilação, deveriam ser exterminadas.

Qualquer forma de denúncia das violências sofridas por essas populações eram tidas como um risco à segurança, por isso, os povos indígenas foram tidos como “fatores adversos”, ou seja, elementos que punham em risco a segurança do país e, portanto, do progresso – lembra do lema, ordem e progresso?!

Tal ponto de vista, parte do que os militares entendiam como “guerra psicológica adversa”, termo elaborado no Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967 no artigo 3, parágrafo 2, que nos diz: emprêgo da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.

Como os povos originários eram tidos como “fatores adversos”, foi necessário um projeto político com a finalidade de “pacificar” os indígenas. Um dos elementos deste projeto, foi a criação de campos de concentração, como o Reformatório Agrícola Krenak. O campo de concentração Krenak, foi criado em 1969 no Estado de Minas Gerais, no município de Resplendor. O reformatório estava sob s tutela da Polícia Militar em parceria com a FUNAI. Segundo o discurso da ditadura, o local serviria para a reeducação e formação técnica de indígenas que violassem as leis de sua própria comunidade.

No entanto, muitos dos que foram encaminhados pela própria FUNAI para o campo de concentração Krenak, haviam cometidos delitos muito leves e que poderiam ser resolvidos facilmente através diálogo. Outros ainda, foram encaminhados para o reformatório como uma das formas de retirar as terras dos indígenas.

Segundo André Campos, o reformatório agrícola Krenak aplicava o que chamou de “pedagogia da tortura”, onde os indígenas eram açoitados, arrastados por cavalos, queimados por dentro ao serem obrigados a tomar, alternadamente, leite fervendo e água gelada e trabalho escravo.

Neste sentido, podemos dizer que o período da ditadura civil-militar foi a atualização do colonialismo brasileiro. A postura do poder frente aos povos originários, desde os primórdios com jesuítas e bandeirantes, foi a tentativa de genocídio e etnocídio. No entanto, tal projeto de extermínio, físico e cultural, não logrou sucesso, pois os indígenas resistiram ao período colonial, resistiram à ditadura militar e continuam resistindo até hoje ao neoliberalismo e aos Estados Amplo e Restrito.

Porém, as atualizações coloniais continuam a atacar os povos originários. Em 20 de julho de 2017 foi oficializado o Marco Temporal pelo governo Michel Temer. A tese do marco temporal foi retirada da Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012, ainda no governo Dilma Roussef, do artigo 1º em seu primeiro condicionante, que diz: “o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar”.

Com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas e de anular demarcações já realizadas, o Marco Temporal é a atualização neoliberal do colonialismo brasileiro em relação aos povos indígenas e quilombolas. Este cenário se torna ainda mais dramático com a posse do cargo à presidência da República de Jair Messias Bolsonaro, que por diversas vezes já declarou que não realizará demarcação nenhuma, ficando claro que seu objetivo é entregar as terras indígenas ao latifúndio, à mineração e a outros setores econômicos, uma vez que, agora, a terra não é indígena, mas pertence à União, sendo que o indígena possui o usufruto da terra, podendo ser retirado esse “benefício” caso seja de interesse da Nação.

Os povos originários, uma vez mais, são vistos como o entrave ao progresso, um fator adverso. E a resistência, que certamente terá, dos povos originários, poderão ser consideradas uma guerra psicológica adversa, atualizada às novas condições do capitalismo global ultra-conservador.