Category Archives: Traduções

Fernando Tarrida, anarquista sem mais adjetivos

No já longínquo ano de 2013 a Biblioteca Terra Livre iniciou a publicação de panfletos introdutórios sobre o anarquismo a fim de facilitar a divulgação das ideias anarquistas. Simultaneamente demos início a uma série de leituras de formação interna no coletivo. Entre os materiais lidos alguns se tornaram panfletos e foram distribuídos (impressos e online), outros, contudo, por algum descuido ou desatenção, permaneceram restritos e não chegaram a circular fora do grupo da Biblioteca.

Buscando seguir com o trabalho de difusão das ideias e práticas anarquistas, disponibilizamos a carta de Fernando Tarrida del Mármol, que a despeito dos 130 anos de sua escrita, segue como um importante documento para reflexão da prática anarquista.

Anarquia sem adjetivos, de Fernando Tarrida de Mármol

Quem foi Fernando Tarrida: o anarquista sem adjetivos?

Fernando Tarrida del Mármol (1861-1915)nasceu em Cuba, filho de ricos emigrantes de Sigtes, estudou em Barcelona e em Toulouse. A obra organizada por Miguel Íñiguez, Esboço de uma Enciclopédia do Anarquismo Espanhol, explica que ele foi um republicano federalista na sua juventude, mas logo se converteu ao anarquismo ao conhecer Anselmo Lorenzo, do qual foi amigo íntimo, e ao ler Proudhon, Bakunin e Kropotkin, ainda muito jovem. Terminou o curso de engenharia em Madri, pago por ele mesmo a partir de aulas particulares, já que sua família não via com bons olhos sua filiação às ideias ácratas. Retornou posteriormente a Barcelona e iniciou uma intensa atividade militante participando de reuniões, sendo redator da publicação Acracia e realizando diversas conferências. Dirigia a Academia Politécnica de Barcelona, quando foi preso em julho de 1896 depois dos acontecimentos de Cambios Nuevos, que iniciou o momento mais crítico de repressão contra o movimento anarquista, sendo liberado após um mês. Fugiu da Espanha e começou a militar em Paris com Charles Malato, bem como atuou na Bélgica e em Londres.

Tarrida é conhecido, principalmente, por sua teoria do anarquismo sem adjetivos, aceita amplamente no movimento; em 1890, no periódico anarquista francês La Révolte, que era dirigido por Jean Grave, houve uma polêmica, na qual uns eram a favor do mutualismo e outros do coletivismo; Tarrida enviou uma carta ao La Révolte, expondo como o movimento espanhol interpretava o desenvolvimento de uma sociedade que chega ao anarquismo: “pois não somos ninguém para designar o que outros vão fazer, eles criarão de acordo com o que lhes convir a forma de organizar suas vidas”. Esta teoria foi exposta no Segundo Concurso Socialista, celebrado em Reus, em 1889, em vários artigos do Le Révolte e em diversos folhetos; foi um exemplo de superação eficaz dos confrontos na difusão do ideal anarquista evitando todo dogma político, econômico ou religioso.

Fernando Tarrida foi descrito como um homem simples e inteligente; de ideias relacionadas às de Kropotkin, introduziu na Espanha o conceito de “apoio mútuo” antes que fosse traduzida a obra de mesmo título e teve a aspiração de dar fundamento racional e científico às questões sociais. A confiança de Tarrida na ciência para resolver os problemas sociais se mostra na seguinte reflexão apresentada em La Revista Blanca em 1904 (publicação em que ele, depois de seu exílio em Londres, teria uma seção fixa sobre questões científicas): “Qualquer matemático riria daquele que pretender dar valores a uma função algébrica (…). E sem embargo isso é o que faz todo legislador ou inventor de dogmas políticos, econômicos ou sociais. Ditar uma lei para a coletividade ou função, com objetivo de que os indivíduos de dita coletividade, isto é, as variáveis, ajam de tal modo que é, não somente um ato tirânico, senão também uma heresia matemática. Igualmente como querer eliminar um mal social, função de uma porção de variáveis, sem dar a elas os valores que reduziriam a zero sua função: por exemplo, querer eliminar por meio de leis, o roubo, a usura ou o assassinato, funções inseparáveis de uma porção de circunstâncias variáveis que ninguém ignora, sem modificar estas circunstâncias”.

Esta breve biografia foi traduzida e adaptada a partir do texto de Jose María Fernández Paniagua, publicado no periódico anarquista Tierra y libertad n. 280 (Outubro de 2011). A tradução foi de Giulianna Miguel e a revisão e adaptação de a.s.

Não há tempo para paciência: Fascismo, clima e capitalismo, por Mark Bray

Image: La Rote Art

Estamos vivendo em tempos sinistros. Toda semana algo novo: assassinatos de supremacistas brancos em Kentucky e Pittsburgh; a contínua ascensão da extrema direita na Europa; Os ataques de Trump aos direitos dos transgêneros; a eleição do aspirante a tirano Jair Bolsonaro à presidência brasileira; o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas informa que a catástrofe climática provavelmente ocorrerá em apenas 20 anos. Qual é a próxima novidade?

Em um momento em que devemos nos unir globalmente para reorganizar nosso modo de vida para evitar um desastre climático, muitas partes do mundo estão se voltando para a direita, rejeitando o internacionalismo e demonizando comunidades marginalizadas. Como chegamos aqui? Como podemos escapar da aniquilação?

Raízes sobrepostas do fascismo e da catástrofe climática

Para responder a essas perguntas é crucial entendermos como a ascensão da extrema direita e a iminência de uma catástrofe climática são ameaças relacionadas. Obviamente, a extrema direita promove políticas e perspectivas que destroem o planeta. Atualmente, o governo Trump está trabalhando duro para revogar as políticas de proteção ambiental de Obama. O presidente filipino, Rodrigo Duterte, levantou uma moratória à exploração de mineração enquanto pressionava uma mudança constitucional que aumentaria a exploração multinacional dos recursos das Filipinas. O recém-eleito presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, está preparado para permitir que o agronegócio reine livremente reduzindo a floresta Amazônica.

Mais fundamentalmente, forças fascistas e de extrema-direita promovem o ultra-nacionalismo e xenofobia que impedem a tarefa essencial de colocar os interesses do planeta e de todos os seus habitantes sobre os de qualquer grupo. O nacionalismo alimentou não apenas a oposição à União Européia, mas também uma rejeição ao Acordo de Paris e uma ampla recusa climática entre os partidos de extrema direita europeus como UKIP, Front National e Democratas da Suécia. A ameaça da catástrofe climática é muito mais iminente e flagrante no sul global, e a supremacia branca claramente desencoraja a preocupação com a maior parte do mundo. Os chamados “ecofascistas”, adotam o conceito de bio-regionalismo para avançar em suas políticas genocidas, mas seus pontos de vista não têm influência significativa na política de extrema direita atual e sua solução “ambiental” não é digna de um engajamento racional.

Mas nossa análise não pode parar por aqui. Governos centristas e até nominalmente “esquerdistas” adotam políticas anti-ambientais. Os principais signatários do Acordo de Paris não estão no ritmo de alcançar as metas do acordo, e mesmo que fossem, seria tarde demais. Não, as raízes dessas crises se estendem muito mais profundamente.

Devemos reconhecer que a crise climática e o ressurgimento da extrema direita são dois dos sintomas mais agudos do nosso fracasso em abolir o capitalismo.

Um sistema capitalista que prioriza o lucro e o crescimento perpétuo sobre tudo e todos é o inimigo mortal das aspirações globais por uma economia sustentável que satisfaça as necessidades e não as carteiras de ações. O “capitalismo verde” foi apresentado como um compromisso que poderia permitir à humanidade manter o planeta e devorá-lo também. Porém, dados científicos mostram que ajustes incrementais dos padrões de poluição e proibição de canudos de plástico não podem compensar a destruição causada pelas 100 empresas que produzem 71% das emissões globais. Com muita freqüência, os esforços para reduzir a poluição (ou estabelecer condições de trabalho decentes) são prejudicados pela capacidade das finanças multinacionais de se oporem às leis locais ou de não investir em países ou regiões que desafiam sua lucratividade.

A crise capitalista, a concorrência e a escassez fabricada também fornecem combustível essencial para o crescimento da política fascista e da extrema direita – especialmente quando não há alternativa viável da esquerda. Os primeiros movimentos fascistas e nazistas cresceram explorando a insegurança econômica durante a Grande Depressão, enquanto a esquerda se dividiu. Na década de 1970, a Frente Nacional fascista se aproveitou da turbulência econômica no Reino Unido e, mais recentemente, o surgimento de partidos como o fascista Golden Dawn na Grécia deveu muito à crise financeira de 2008. Em parte, Bolsonaro chegou à vitória aproveitando o desencantamento popular decorrente da “pior recessão desde o retorno da democracia”.

Em tempos de crise, podemos olhar para fora em solidariedade ou nos voltar para dentro com medo reacionário e xenófobo. O fascismo e a política da extrema direita aproveitam e promovem temores de diferenças e ansiedades sobre o desemprego e a ruína financeira quando as alternativas deixadas vacilam. Quando, tanto na Grécia como no Brasil, partidos políticos declaradamente socialistas adotaram medidas brutais de austeridade, abriram a porta para a extrema direita. Nos Estados Unidos, Trump conseguiu capitalizar a oposição às políticas de livre comércio que se tornaram a marca registrada do Partido Democrata. Num contexto de ansiedade econômica, Hillary Clinton prometeu “colocar muitos mineiros de carvão” fora do trabalho – se isso fosse do interesse de salvar o planeta – contribuiu para a capacidade da extrema direita gerar apoio à Trump, aproveitando o antagonismo entre a classe trabalhadora de subsistência e sustentabilidade ecológica que o capitalismo promove.

Alteração do sistema, não de “civilidade”

Mesmo os estados assistenciais do norte da Europa, que conseguiram evitar a austeridade severa, não conseguiram impedir a ascensão da extrema direita. Em parte, isso decorre da ascensão do chauvinismo do bem-estar social – a crença de que o bem-estar é benéfico, mas não deve ser estendido aos “forasteiros” – o que demonstra as limitações da “social-democracia em um país” quando essa riqueza ainda é produzida pela exploração da recursos e mão-de-obra do sul global.

Uma análise muito diferente, foi oferecida recentemente por especialistas e políticos centristas nos EUA ao argumentarem que a raiz subjacente das ameaças à nossa sociedade surgiram do crescimento do “extremismo” às custas da “moderação”. Quando Cesar Sayoc enviou bombas para figuras do Partido Democrata, Chuck Schumer ecoou os infames comentários de “ambos os lados” de Trump argumentando que “atos desprezíveis de violência e assédio estão sendo realizados por radicais em todo o espectro político”. Para Rachel Maddow, “separatistas porto-riquenhos” e a KKK são simplesmente “grupos extremistas violentos”. A política de internar crianças migrantes em campos de concentração gerou menos um debate público sobre o racismo institucional do que sobre a “civilidade” daqueles que confrontaram os arquitetos da política. Certamente, esse argumento implícito – de que nenhuma política é cada vez mais hedionda do que a “incivilidade” de quem viola o decoro comum ao protestá-lo – abre caminho para o autoritarismo ascendente, enquanto reduz o escopo da resistência.

O discurso centrista abstraiu a supremacia branca e o anti-semitismo em “ódio”, despolitizou o fascismo e o antifascismo ao caricaturizá-los como imagens invertidas do “extremismo” e ignorou o que deveria ser uma das notícias mais importantes: a destruição iminente do planeta .

Os debates sobre reforma X revolução travam a esquerda por gerações. Mas agora estamos dentro de um prazo. O menor mal-estar entre os políticos capitalistas pode ter alguma justificativa ao passar cinco minutos votando no dia das eleições, mas não temos tempo para que seja uma perspectiva estratégica orientadora. Precisamos organizar movimentos para construir o poder popular e fechar as indústrias que ameaçam nossa existência.

O fascismo é ascendente. O mundo está pegando fogo. Não é hora de ser paciente. Se não abolirmos o capitalismo, o capitalismo nos abolirá.

Esta peça foi publicada originalmente pela TruthOut sob o título “Como o capitalismo ataca a extrema-direita e a catástrofe climática”. Se você gostou deste artigo, recomendamos o artigo relacionado “De Pittsburgh ao Brasil: anti-semitismo e violência fascista”.

Mark Bray é um historiador de direitos humanos, terrorismo e política na Europa moderna. Ele é o autor de Antifa: O Manual Antifascista, Traduzindo Anarquia: O Anarquismo de Ocupar Wall Street, e o co-editor da Educação Anarquista e da Escola Moderna: Um leitor de Francisco Ferrer.

Tradução a partir do texto original disponível no site do Black Rose Anarchist Federation