Category Archives: textos

20 anos sem Carlo Giuliani

Há vinte anos Carlo Giuliani se despedia de nós. Não, não foi uma despedida. Ele foi retirado de nós. Assassinado a sangue frio, baleado, atropelado.

Hoje ele teria 43 anos. Poderia ser pai, ter sua família, seu trabalho e olhar distanciado para Gênova em 2001, não vendo nada mais que seus sonhos de juventude. Ou poderia seguir lutando por um mundo que não seja governado pelas corporações, nos ensinando o que aprendeu ao longo de décadas de luta.

Carlo poderia ter sido aquilo que ele quisesse. Mas retiraram sua vida para amedrontar, para servir de exemplo a quem quisesse questionar o poder do G8 e das demais instituições que querem reinar soberanas.

Carlo serve de exemplo, mas não para nos dar medo. Sua memória nos inspira para seguir em frente, para lembrar que sua vida e de todos aqueles e aquelas que também foram arrancados de nós não foi em vão.

Fernando Tarrida, anarquista sem mais adjetivos

No já longínquo ano de 2013 a Biblioteca Terra Livre iniciou a publicação de panfletos introdutórios sobre o anarquismo a fim de facilitar a divulgação das ideias anarquistas. Simultaneamente demos início a uma série de leituras de formação interna no coletivo. Entre os materiais lidos alguns se tornaram panfletos e foram distribuídos (impressos e online), outros, contudo, por algum descuido ou desatenção, permaneceram restritos e não chegaram a circular fora do grupo da Biblioteca.

Buscando seguir com o trabalho de difusão das ideias e práticas anarquistas, disponibilizamos a carta de Fernando Tarrida del Mármol, que a despeito dos 130 anos de sua escrita, segue como um importante documento para reflexão da prática anarquista.

Anarquia sem adjetivos, de Fernando Tarrida de Mármol

Quem foi Fernando Tarrida: o anarquista sem adjetivos?

Fernando Tarrida del Mármol (1861-1915)nasceu em Cuba, filho de ricos emigrantes de Sigtes, estudou em Barcelona e em Toulouse. A obra organizada por Miguel Íñiguez, Esboço de uma Enciclopédia do Anarquismo Espanhol, explica que ele foi um republicano federalista na sua juventude, mas logo se converteu ao anarquismo ao conhecer Anselmo Lorenzo, do qual foi amigo íntimo, e ao ler Proudhon, Bakunin e Kropotkin, ainda muito jovem. Terminou o curso de engenharia em Madri, pago por ele mesmo a partir de aulas particulares, já que sua família não via com bons olhos sua filiação às ideias ácratas. Retornou posteriormente a Barcelona e iniciou uma intensa atividade militante participando de reuniões, sendo redator da publicação Acracia e realizando diversas conferências. Dirigia a Academia Politécnica de Barcelona, quando foi preso em julho de 1896 depois dos acontecimentos de Cambios Nuevos, que iniciou o momento mais crítico de repressão contra o movimento anarquista, sendo liberado após um mês. Fugiu da Espanha e começou a militar em Paris com Charles Malato, bem como atuou na Bélgica e em Londres.

Tarrida é conhecido, principalmente, por sua teoria do anarquismo sem adjetivos, aceita amplamente no movimento; em 1890, no periódico anarquista francês La Révolte, que era dirigido por Jean Grave, houve uma polêmica, na qual uns eram a favor do mutualismo e outros do coletivismo; Tarrida enviou uma carta ao La Révolte, expondo como o movimento espanhol interpretava o desenvolvimento de uma sociedade que chega ao anarquismo: “pois não somos ninguém para designar o que outros vão fazer, eles criarão de acordo com o que lhes convir a forma de organizar suas vidas”. Esta teoria foi exposta no Segundo Concurso Socialista, celebrado em Reus, em 1889, em vários artigos do Le Révolte e em diversos folhetos; foi um exemplo de superação eficaz dos confrontos na difusão do ideal anarquista evitando todo dogma político, econômico ou religioso.

Fernando Tarrida foi descrito como um homem simples e inteligente; de ideias relacionadas às de Kropotkin, introduziu na Espanha o conceito de “apoio mútuo” antes que fosse traduzida a obra de mesmo título e teve a aspiração de dar fundamento racional e científico às questões sociais. A confiança de Tarrida na ciência para resolver os problemas sociais se mostra na seguinte reflexão apresentada em La Revista Blanca em 1904 (publicação em que ele, depois de seu exílio em Londres, teria uma seção fixa sobre questões científicas): “Qualquer matemático riria daquele que pretender dar valores a uma função algébrica (…). E sem embargo isso é o que faz todo legislador ou inventor de dogmas políticos, econômicos ou sociais. Ditar uma lei para a coletividade ou função, com objetivo de que os indivíduos de dita coletividade, isto é, as variáveis, ajam de tal modo que é, não somente um ato tirânico, senão também uma heresia matemática. Igualmente como querer eliminar um mal social, função de uma porção de variáveis, sem dar a elas os valores que reduziriam a zero sua função: por exemplo, querer eliminar por meio de leis, o roubo, a usura ou o assassinato, funções inseparáveis de uma porção de circunstâncias variáveis que ninguém ignora, sem modificar estas circunstâncias”.

Esta breve biografia foi traduzida e adaptada a partir do texto de Jose María Fernández Paniagua, publicado no periódico anarquista Tierra y libertad n. 280 (Outubro de 2011). A tradução foi de Giulianna Miguel e a revisão e adaptação de a.s.

Não há tempo para paciência: Fascismo, clima e capitalismo, por Mark Bray

Image: La Rote Art

Estamos vivendo em tempos sinistros. Toda semana algo novo: assassinatos de supremacistas brancos em Kentucky e Pittsburgh; a contínua ascensão da extrema direita na Europa; Os ataques de Trump aos direitos dos transgêneros; a eleição do aspirante a tirano Jair Bolsonaro à presidência brasileira; o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas informa que a catástrofe climática provavelmente ocorrerá em apenas 20 anos. Qual é a próxima novidade?

Em um momento em que devemos nos unir globalmente para reorganizar nosso modo de vida para evitar um desastre climático, muitas partes do mundo estão se voltando para a direita, rejeitando o internacionalismo e demonizando comunidades marginalizadas. Como chegamos aqui? Como podemos escapar da aniquilação?

Raízes sobrepostas do fascismo e da catástrofe climática

Para responder a essas perguntas é crucial entendermos como a ascensão da extrema direita e a iminência de uma catástrofe climática são ameaças relacionadas. Obviamente, a extrema direita promove políticas e perspectivas que destroem o planeta. Atualmente, o governo Trump está trabalhando duro para revogar as políticas de proteção ambiental de Obama. O presidente filipino, Rodrigo Duterte, levantou uma moratória à exploração de mineração enquanto pressionava uma mudança constitucional que aumentaria a exploração multinacional dos recursos das Filipinas. O recém-eleito presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, está preparado para permitir que o agronegócio reine livremente reduzindo a floresta Amazônica.

Mais fundamentalmente, forças fascistas e de extrema-direita promovem o ultra-nacionalismo e xenofobia que impedem a tarefa essencial de colocar os interesses do planeta e de todos os seus habitantes sobre os de qualquer grupo. O nacionalismo alimentou não apenas a oposição à União Européia, mas também uma rejeição ao Acordo de Paris e uma ampla recusa climática entre os partidos de extrema direita europeus como UKIP, Front National e Democratas da Suécia. A ameaça da catástrofe climática é muito mais iminente e flagrante no sul global, e a supremacia branca claramente desencoraja a preocupação com a maior parte do mundo. Os chamados “ecofascistas”, adotam o conceito de bio-regionalismo para avançar em suas políticas genocidas, mas seus pontos de vista não têm influência significativa na política de extrema direita atual e sua solução “ambiental” não é digna de um engajamento racional.

Mas nossa análise não pode parar por aqui. Governos centristas e até nominalmente “esquerdistas” adotam políticas anti-ambientais. Os principais signatários do Acordo de Paris não estão no ritmo de alcançar as metas do acordo, e mesmo que fossem, seria tarde demais. Não, as raízes dessas crises se estendem muito mais profundamente.

Devemos reconhecer que a crise climática e o ressurgimento da extrema direita são dois dos sintomas mais agudos do nosso fracasso em abolir o capitalismo.

Um sistema capitalista que prioriza o lucro e o crescimento perpétuo sobre tudo e todos é o inimigo mortal das aspirações globais por uma economia sustentável que satisfaça as necessidades e não as carteiras de ações. O “capitalismo verde” foi apresentado como um compromisso que poderia permitir à humanidade manter o planeta e devorá-lo também. Porém, dados científicos mostram que ajustes incrementais dos padrões de poluição e proibição de canudos de plástico não podem compensar a destruição causada pelas 100 empresas que produzem 71% das emissões globais. Com muita freqüência, os esforços para reduzir a poluição (ou estabelecer condições de trabalho decentes) são prejudicados pela capacidade das finanças multinacionais de se oporem às leis locais ou de não investir em países ou regiões que desafiam sua lucratividade.

A crise capitalista, a concorrência e a escassez fabricada também fornecem combustível essencial para o crescimento da política fascista e da extrema direita – especialmente quando não há alternativa viável da esquerda. Os primeiros movimentos fascistas e nazistas cresceram explorando a insegurança econômica durante a Grande Depressão, enquanto a esquerda se dividiu. Na década de 1970, a Frente Nacional fascista se aproveitou da turbulência econômica no Reino Unido e, mais recentemente, o surgimento de partidos como o fascista Golden Dawn na Grécia deveu muito à crise financeira de 2008. Em parte, Bolsonaro chegou à vitória aproveitando o desencantamento popular decorrente da “pior recessão desde o retorno da democracia”.

Em tempos de crise, podemos olhar para fora em solidariedade ou nos voltar para dentro com medo reacionário e xenófobo. O fascismo e a política da extrema direita aproveitam e promovem temores de diferenças e ansiedades sobre o desemprego e a ruína financeira quando as alternativas deixadas vacilam. Quando, tanto na Grécia como no Brasil, partidos políticos declaradamente socialistas adotaram medidas brutais de austeridade, abriram a porta para a extrema direita. Nos Estados Unidos, Trump conseguiu capitalizar a oposição às políticas de livre comércio que se tornaram a marca registrada do Partido Democrata. Num contexto de ansiedade econômica, Hillary Clinton prometeu “colocar muitos mineiros de carvão” fora do trabalho – se isso fosse do interesse de salvar o planeta – contribuiu para a capacidade da extrema direita gerar apoio à Trump, aproveitando o antagonismo entre a classe trabalhadora de subsistência e sustentabilidade ecológica que o capitalismo promove.

Alteração do sistema, não de “civilidade”

Mesmo os estados assistenciais do norte da Europa, que conseguiram evitar a austeridade severa, não conseguiram impedir a ascensão da extrema direita. Em parte, isso decorre da ascensão do chauvinismo do bem-estar social – a crença de que o bem-estar é benéfico, mas não deve ser estendido aos “forasteiros” – o que demonstra as limitações da “social-democracia em um país” quando essa riqueza ainda é produzida pela exploração da recursos e mão-de-obra do sul global.

Uma análise muito diferente, foi oferecida recentemente por especialistas e políticos centristas nos EUA ao argumentarem que a raiz subjacente das ameaças à nossa sociedade surgiram do crescimento do “extremismo” às custas da “moderação”. Quando Cesar Sayoc enviou bombas para figuras do Partido Democrata, Chuck Schumer ecoou os infames comentários de “ambos os lados” de Trump argumentando que “atos desprezíveis de violência e assédio estão sendo realizados por radicais em todo o espectro político”. Para Rachel Maddow, “separatistas porto-riquenhos” e a KKK são simplesmente “grupos extremistas violentos”. A política de internar crianças migrantes em campos de concentração gerou menos um debate público sobre o racismo institucional do que sobre a “civilidade” daqueles que confrontaram os arquitetos da política. Certamente, esse argumento implícito – de que nenhuma política é cada vez mais hedionda do que a “incivilidade” de quem viola o decoro comum ao protestá-lo – abre caminho para o autoritarismo ascendente, enquanto reduz o escopo da resistência.

O discurso centrista abstraiu a supremacia branca e o anti-semitismo em “ódio”, despolitizou o fascismo e o antifascismo ao caricaturizá-los como imagens invertidas do “extremismo” e ignorou o que deveria ser uma das notícias mais importantes: a destruição iminente do planeta .

Os debates sobre reforma X revolução travam a esquerda por gerações. Mas agora estamos dentro de um prazo. O menor mal-estar entre os políticos capitalistas pode ter alguma justificativa ao passar cinco minutos votando no dia das eleições, mas não temos tempo para que seja uma perspectiva estratégica orientadora. Precisamos organizar movimentos para construir o poder popular e fechar as indústrias que ameaçam nossa existência.

O fascismo é ascendente. O mundo está pegando fogo. Não é hora de ser paciente. Se não abolirmos o capitalismo, o capitalismo nos abolirá.

Esta peça foi publicada originalmente pela TruthOut sob o título “Como o capitalismo ataca a extrema-direita e a catástrofe climática”. Se você gostou deste artigo, recomendamos o artigo relacionado “De Pittsburgh ao Brasil: anti-semitismo e violência fascista”.

Mark Bray é um historiador de direitos humanos, terrorismo e política na Europa moderna. Ele é o autor de Antifa: O Manual Antifascista, Traduzindo Anarquia: O Anarquismo de Ocupar Wall Street, e o co-editor da Educação Anarquista e da Escola Moderna: Um leitor de Francisco Ferrer.

Tradução a partir do texto original disponível no site do Black Rose Anarchist Federation

Genocídio e Etnocídio dos povos originários na Ditadura Civil-Militar brasileira

Nos dias 10 e 17 de novembro, a Biblioteca Terra Livre realizou duas atividades na Biblioteca Menotti Del Picchia, localizada no bairro do limão, perto da favela do Agreste. Nestas atividades discutimos como o Estado brasileiro aplicou uma política de genocídio (extermínio físico de um povo) e etnocídio (destruição cultural de um povo) contra os povos originários  e como vigiou e reprimiu os movimentos negros, nos anos de 1964 a 1985.

O intuito deste pequeno texto é compartilhar alguns pontos e discussões que fizemos nesses dias tão bacanas.

Antes de falar exatamente sobre os temas, é bom começar contextualizando o período tanto no âmbito internacional quanto doméstico. No pós segunda guerra, o mundo vivia sob a Guerra Fria, onde havia intensa polarização entre dois blocos: o capitalista, liderado pelos EUA e o soviético, liderado pela URSS – escolhemos nomear como “soviético” este último bloco, pois segundo nosso ponto de vista e de muitos outros, como por exemplo Maurício Tragtenberg, o que havia na URSS não era socialismo, mas capitalismo de Estado.

Esta polarização acabava se refletindo em todos os níveis. Na América Latina, em 1959 ocorreu a Revolução Cubana e a posterior crise dos mísseis em 1962. No Chile, temos a eleição do médico e político marxista Salvador Allende em 1970. Percebemos, assim, um claro avanço das ideias socialistas e nacional-progressistas no continente sul americano, mas que também teve seus reveses. Somente no ano de 1954, Guatemala e Paraguai se tornam uma ditadura. 1962, foi a vez da Argentina; em 1964, Brasil e Bolívia; a vez da República Dominicana, em 1965, Peru em 1968 e por fim, Uruguai e Chile – com o golpe em Allende – em 1973.

A intensificação das disputas entre as forças progressistas e conservadoras também se deu no Brasil. Nesse contexto, percebemos um (re)crescimento da participação popular na política, tendo como exemplos as Ligas Camponesas e os movimentos estudantil e sindical. Estas tensões se tornam ainda maiores com a renúncia de Jânio Quadros do cargo da presidência. A substituição de seu vice, João Goulart – o Jango – foi marcada por muitos conflitos, como a mudança do sistema de governo de presidencialismo para parlamentarismo.

As forças conservadoras saem às ruas e se organizam. Neste grupo podemos a notar a presença de certos setores da Igreja Católica, como a Tradição Família e Propriedade (TFP), a grande imprensa, empresários e as Forças Armadas, principalmente àquelas do alto escalão. A partir dessas tensões, e com o auxílio do governo dos EUA, os militares dão o golpe em 31 de março de 1964.

Após essa introdução, o papo que batemos no dia 10 de novembro foi como a ditadura militar tratou os povos indígenas. A questão indígena na ditadura civil-militar teve alguns marcos importantes, como a substituição do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967 e a criação do Estatuto do Índio em 1973. Os objetivos da FUNAI e do estatuto era o de tutelar, integrar e proteger a população indígena, pois eram considerados pelo Estado brasileiro como “relativamente incapazes” de serem autônomos. Uma ironia sem tamanho, pois primeiro eram capazes; segundo, se alguns não fossem, o eram justamente graças a ação estatal perpetrada, insistente e permanente, em colocar a população indígena numa posição de servidão.

Nesse momento, nos perguntamos: “Mas como esse estatuto e a FUNAI tutelaram, integraram e protegeram os povos indígenas?”. A estratégia da ditadura civil-miltar brasileira seguiu dois caminhos: a interiorização e colonização dos territórios dos povos originários. Este projeto, meticulosamente arquitetado, ganhou corpo em 1970 quando o Banco Mundial destinou 40 milhões de dólares para investimentos na pecuária. Diante dessa “ajuda internacional”, o governo isentou o imposto de renda em 50% e outras facilidades à corajosos aventureiros e desbravadores, levando progresso aos mais recônditos confins do Brasil. Assim sendo, foram construídas e ampliadas rodovias que cortarão o Brasil de Norte à Sul e de Leste à Oeste, como a Transamazônica e a BR-80.

Para conseguirem colonizar o interior do Brasil, os militares buscaram implementar o plano de integração dos povos indígenas à Nação. A partir dessa assimilação, foram contabilizados mais de 8.350 indígenas mortos e/ou desaparecidos no período da ditadura civil-militar. Portanto, quando lermos ou ouvirmos da boca de certas autoridades os termos “assimilação” e “integração”, devemos entender “genocídio” e “etnocídio”.

As violências sofridas pela população indígena foram enormes. Muitos foram os agentes dessas violências, inclusive os próprios funcionários da FUNAI. As proporções dessa violência foram tão grandes que em 1977 foi criada uma comissão parlamentar para averiguar estas denúncias. A partir das investigações, ficou claro a estreita relação entre os políticos de Brasília, a FUNAI e o Esquadrão da Morte. Tanto é que o antropólogo Darcy Ribeiro chamou a atuação do Esquadrão da Morte de “genocídio terceirizado”, o que acabava por ligar os massacres indígenas às torturas de presos políticos e a matança de “desajustados” – mendigos e marginais.

Várias foram as formas de genocídio e etnocídio: ofertas de alimentos envenenados; massacres com armas de fogo; sequestros de crianças; realocação para outros territórios; retirada das terras; campos de concentração; contágios propositais de doenças como a varíola, tuberculose, gripe, sarampo etc.

No mesmo ano da formação da comissão parlamentar, foi realizado um relatório sobre a violência contra a população indígena nos anos anteriores à ditadura civil-militar, ainda quando os povos indígenas eram “tutelados e protegidos” pelo SPI. O relatório, com mais de 7.000 páginas, foi elaborado pelo procurador Jader Figueiredo.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que o Relatório Figueiredo havia sido destruído em um incêndio, mas foi encontrado no museu do índio, no Rio de Janeiro. Foi realizado um processo de restauro do documento e nele podemos ler páginas e mais páginas que relatam casos brutais de violência sofridas pelas populações indígenas. O filho do procurador, Jader Figueiredo Junior, nos conta que quando o pai chegou à uma aldeia “encontrou a mulher amarrada entre duas estacas pelos pés, de cabeça para baixo, partida longitudinalmente ao meio por piques de facão.” Estes massacres foram realizados por latifundiários e pelos próprios funcionários do SPI. Para as pessoas que tiverem estômago, o Relatório Figueiredo foi digitalizado e pode ser encontrado aqui.

Jader Figueiredo Correa, após ter elaborado o relatório, morreu misteriosamente num acidente de ônibus aos 53 anos de idade.

Mas aí veio a pergunta: “porque os povos originários foram tão brutalmente massacrados?” O indígena era – e continua sendo – visto como um empecilho ao desenvolvimento econômico do Brasil. Portanto, um entrave ao crescimento do Poder Nacional, sendo, desse modo, um obstáculo e um perigo à Segurança Nacional.

A Doutrina de Segurança Nacional era balizada a partir do binômio: desenvolvimento e segurança. Portanto, a população indígena, segundo a perspectiva dos militares – mas também de civis – deveria ser integrada à Nação e aquelas que recusassem a assimilação, deveriam ser exterminadas.

Qualquer forma de denúncia das violências sofridas por essas populações eram tidas como um risco à segurança, por isso, os povos indígenas foram tidos como “fatores adversos”, ou seja, elementos que punham em risco a segurança do país e, portanto, do progresso – lembra do lema, ordem e progresso?!

Tal ponto de vista, parte do que os militares entendiam como “guerra psicológica adversa”, termo elaborado no Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967 no artigo 3, parágrafo 2, que nos diz: emprêgo da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.

Como os povos originários eram tidos como “fatores adversos”, foi necessário um projeto político com a finalidade de “pacificar” os indígenas. Um dos elementos deste projeto, foi a criação de campos de concentração, como o Reformatório Agrícola Krenak. O campo de concentração Krenak, foi criado em 1969 no Estado de Minas Gerais, no município de Resplendor. O reformatório estava sob s tutela da Polícia Militar em parceria com a FUNAI. Segundo o discurso da ditadura, o local serviria para a reeducação e formação técnica de indígenas que violassem as leis de sua própria comunidade.

No entanto, muitos dos que foram encaminhados pela própria FUNAI para o campo de concentração Krenak, haviam cometidos delitos muito leves e que poderiam ser resolvidos facilmente através diálogo. Outros ainda, foram encaminhados para o reformatório como uma das formas de retirar as terras dos indígenas.

Segundo André Campos, o reformatório agrícola Krenak aplicava o que chamou de “pedagogia da tortura”, onde os indígenas eram açoitados, arrastados por cavalos, queimados por dentro ao serem obrigados a tomar, alternadamente, leite fervendo e água gelada e trabalho escravo.

Neste sentido, podemos dizer que o período da ditadura civil-militar foi a atualização do colonialismo brasileiro. A postura do poder frente aos povos originários, desde os primórdios com jesuítas e bandeirantes, foi a tentativa de genocídio e etnocídio. No entanto, tal projeto de extermínio, físico e cultural, não logrou sucesso, pois os indígenas resistiram ao período colonial, resistiram à ditadura militar e continuam resistindo até hoje ao neoliberalismo e aos Estados Amplo e Restrito.

Porém, as atualizações coloniais continuam a atacar os povos originários. Em 20 de julho de 2017 foi oficializado o Marco Temporal pelo governo Michel Temer. A tese do marco temporal foi retirada da Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012, ainda no governo Dilma Roussef, do artigo 1º em seu primeiro condicionante, que diz: “o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar”.

Com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas e de anular demarcações já realizadas, o Marco Temporal é a atualização neoliberal do colonialismo brasileiro em relação aos povos indígenas e quilombolas. Este cenário se torna ainda mais dramático com a posse do cargo à presidência da República de Jair Messias Bolsonaro, que por diversas vezes já declarou que não realizará demarcação nenhuma, ficando claro que seu objetivo é entregar as terras indígenas ao latifúndio, à mineração e a outros setores econômicos, uma vez que, agora, a terra não é indígena, mas pertence à União, sendo que o indígena possui o usufruto da terra, podendo ser retirado esse “benefício” caso seja de interesse da Nação.

Os povos originários, uma vez mais, são vistos como o entrave ao progresso, um fator adverso. E a resistência, que certamente terá, dos povos originários, poderão ser consideradas uma guerra psicológica adversa, atualizada às novas condições do capitalismo global ultra-conservador.

Diálogos entre a Organização Indígena e Anarquista

No último dia 30 de novembro, a Biblioteca Terra Livre recebeu o militante e antropólogo Guilherme para discutirmos sobre as diversas facetas do federalismo e os possíveis diálogos entre a forma de organização indígena e anarquista.

A atividade ocorreu no Centro de Cultura Social de São Paulo, numa noite chuvosa, mas bastante proveitosa. O evento contou com a participação de um público bastante participativo e que exigiu do debatedor um aprofundamento bastante profícuo.

Guilherme começou nossa conversa fazendo um resgate das diferentes formas de Federalismo, desde o estadunidense, passando ao brasileiro e chegando ao anarquista e indígena. Para tanto, recorreu a um resgate histórico das formas de implementação de cada um destes, inclusive das diferentes perspectivas acerca da organização.

Para Guilherme, o que distinguiria o federalismo estatal do federalismo anarquista e indígena seria que o estatal, apesar de promover uma descentralização política, não elimina a propriedade privada, elemento fundante da desigualdade social.

Fora a questão econômica, a desigualdade social sendo fruto da propriedade privada, também tem sua origem no racismo, derivado do passado colonial e da escravidão. Resgatando os escritos do geógrafo anarquista Élisée Reclus, Guilherme nos lembrou como o anarquista foi um dos poucos pensadores que abordou tal questão em seus escritos e como que entendeu que as lutas pela libertação foram fundamentais para a formação da resistência nesse território. Reclus nomeou essas lutas de guerras de raças, onde as populações indígena e negra travaram uma guerra contra as elites locais brancas pela sua liberdade, como foi o caso da Cabanagem.

Apesar de pontuar esse aspecto importante de Reclus, Guilherme faz outro apontamento fundamental. Reclus, acreditava que para a diminuição, até mesmo o fim do racismo, a miscigenação das raças seria um elemento substancial para o seu fim. Resgatando a crítica do movimento negro contra a Democracia Racial, Guilherme fez a crítica do anarquista Reclus, mostrando os perigos de tal postura.

Foi debatido também a forma como os anarquistas entendem o Federalismo. Resgatando os pensamento de Pierre Joseph Proudhon, Guilherme nos disse que a proposta de organização federalista anarquista propõe uma descentralização do poder político, portanto, das tomadas de decisões e a mutualidade da economia. Segundo René Berthier em seu livro Do Federalismo, editado pela Editora Imaginário e traduzido por Plínio A.Coelho, devemos entender o mutualismo econômico como a livre associação dos produtores em posse dos meios de produção e que estejam articulados a partir de contratos livremente aceitos e que podem ser revogados a qualquer momento mediante a necessidade das partes envolvidas.

A coesão desses grupos é assegurado pelo autogoverno em mutualidade com outros grupos, de se auto-proteger de elementos externos e da tirania interna, focando em suas necessidades locais.

No nível econômico, o federalismo seria o mesmo que a auto-organização dos produtores ao evitar que ocorra uma nova centralização do poder. Portanto, Estado e auto-organização são elementos antinômicos, onde a descentralização não significa dispersão, muito pelo contrário. Seria um sistema integrado de gestão cujos os fluxos não partem de um centro para a periferia, mas que da periferia se espalhariam e até se encontrar num centro.

Para que a descentralização do poder político seja realizada, seria necessário a centralização da economia, com uma unidade no sistema de pesos e medidas, moeda etc., viabilizando a troca entre as associações de produtores. Porém, nem todas as decisões poderiam ser tomadas a partir das localidades, sendo necessário uma instância superior que possa resolver um dado problema. Para isso, o federalismo proudhoniano parte do princípio da subsidiariedade ascendente, ou seja, quando a base não consegue resolver determinado ponto, tal questão sobe a um nível superior. No entanto, este nível superior está subordinado à base e não o inverso.

Trazendo a forma de organização indígena, Guilherme nos apresentou alguns elementos possíveis de diálogo entre anarquistas e povos indígenas. Primeiro, como os indígenas (no caso o povo xavante, do qual estabeleceu contato direto), rechaça qualquer tipo de autoridade – entendendo o princípio de autoridade na relação de mando e obediência. Para o povo xavante, as lideranças não possuem voz de comando, muito pelo contrário, elas estão subordinadas à coletividade. Não possuem o poder de mando/obediência, e o que é pior, devem ser ainda mais generosas que outros indivíduos do coletivo.

E aqui chegamos num ponto bem interessante. Para o povo xavante, o que separa os seres humanos de outros não-humanos é a generosidade. Por isso, quanto mais poder tiver, mais generoso a liderança deve ser, o que impede a noção de acumulação de riquezas, base da economia capitalista desde de sua fase primitiva. Obviamente que existem vantagens em estar num lugar de liderança tal como a honra, o respeito etc., mas estar nesse lugar também é estar numa posição de poder ser cobrado pela coletividade a todo momento.

Um terceiro aspecto interessante, é de que que todo xavante é também um guerreiro, mas que aprendem a lutar para garantir a sua liberdade. Tal perspectiva é diametralmente oposto a um soldado, que tem como dever obedecer seus superiores. Portanto, o uso da violência está intimamente ligada à noção de auto-defesa pessoal e da comunidade em que faz parte.

Explicando todas essas perspectivas, Guilherme nos alertou que o povo xavante não usam o termo política para designar sua forma de organização social. Se tal termo fosse traduzido para o português, teria mais ou menos o significado de intriga. Política, tal como o “branco” as faz, está impregnada de conflitos e jogos de poder, o que não habita o universo cosmopolítico do povo xavante.

Utilizando o termo cosmopolítica, Guilherme nos explicou como que para os indígenas existem elementos que não transitam numa perspetiva anarquista, por exemplo. Pois o lugar do sagrado é fundamental para entendermos as relações sociais que alicerçam a coletividade. Uma delas seria a figura do “pacificador”, que pode realizar um ritual para o fim de uma guerra ou acalmar os ânimos de uma família quando alguém morre misteriosa, pois sempre existe a dúvida de enfeitiçamento. Neste sentido, os anarquistas tem muito a aprender com os povos indígenas, não no sentido de dar metafísica aos seus argumentos e pensamentos, mas de entender essa dinâmica subjetiva que está para além de nossa capacidade racional de compreensão da totalidade.

A relação entre os movimentos indígena e o anarquista ainda são muito insipientes, quase nulas no Brasil. Mas existem iniciativas muito interessantes na América do Norte, como é o caso da Indigenous Anarchist Federation e que podem entrar em contato pelo Twitter.

Para ter mais informações sobre o tema, podem achar os textos de Guilherme no academia.edu clicando aqui.