O futuro dos nossos filhos – Élisée Reclus

Neste 12 de outubro, dia das crianças, seguimos todos – crianças, jovens e adultos – sem ter motivos para celebrar. Seguimos, ano após ano, reproduzindo dogmas e instituições que, longe de nos apoiar na construção de uma sociedade mais livre, nos escraviza e limita a cada passo. Retira ao primeiro instante a possibilidade da menor autonomia dentro da escola (como é o caso do projeto Escola sem Partido), pune os jovens que se organizam e fazem frente a esta violência (como nas perseguições às estudantes que ocuparam as escolas entre 2015 e 2016) e espanca professores por reivindicarem melhores condições de trabalho (como as seguidas repressões as manifestações e greves dos professores ocorridas em 2015 por todo o Brasil). Talvez seja hora, ou mesmo já tenhamos passado da hora, de nos atentar mais cuidadosamente a proposta de Reclus: “Se se deseja educar uma geração livre, é mister começar por destruir as prisões chamadas colégios e liceus!” E assim talvez, sobre os escombros dessa educação que por gerações e gerações nos sujeitou e aprisionou, possamos enfim começar a construir uma educação para e em liberdade!

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O presente artigo de Élisée Reclus foi publicado originalmente no jornal anarquista La Société Nouvelle, n° CXIV, em junho de 1894. A presente tradução foi transcrita e adaptada a partir da Revista Amanhã, uma revista popular de orientação racional, publicada em Lisboa (Portugal). O número 4 da revista, publicado em 15 de julho de 1909, é dedicado a Élisée Reclus, em lembrança aos 4 anos do falecimento do geógrafo anarquista. A revista está disponível para download AQUI.

O FUTURO DOS NOSSOS FILHOS

I

Muito egoístas somos! Nos nossos sonhos de revolução, nunca pensamos senão em nós próprios. Expomos as queixas das classes trabalhadoras, sobretudo as dos homens, que são os mais fortes; reivindicamos para eles o direito aos instrumentos de trabalho e ao produto íntegro da sua atividade; exigimos que se lhes faça justiça. Principiando a compreender que somos o número e a inteligência, sentimos nascer dentro em nós o desejo de proceder e, na semiconsciência da nossa força, preparamo-nos para a próxima revolução.
Se nos sentíssemos os mais debeis, covardes como somos na maioria, mendigaríamos ainda a migalha que cai da mesa dos reis.
Acima do homem feito, por mais desgraçado que seja, está a criança. Este ser débil não tem direitos e depende do capricho benévolo ou cruel. Nada o protege contra a estupidez, a indiferença ou a perversidade dos que se arvoraram em seus amos. Quem lançará, pois, em seu favor, o grito de liberdade?
Na sociedade atual, toda a autoridade é exercida de amo para escravo, seguindo uma lei lógica.
Deus reina nas alturas, imperando por cima dos céus e delegando seus poderes na terra ao mais forte, sacerdote ou rei, Hildebrand ou Bismarck.
Debaixo estão os sátrapas de toda a espécie, governadores e subgovernadores, generais e capitães, chefes e subchefes, presidentes e vice presidentes, todos dobrando a espinha perante o superior, todos inchando de orgulho o peito ante os seus súditos; por um lado a adoração, por outro o desprezo; aqui o mando, acolá a obediência.
Depois de Jacó, não se achou nada melhor; a sociedade não é outra coisa mais do que uma série de degraus que baixam de deus ao escravo e continuam descendo até aos infernos. Os infernos, os abismos de tormentos, não são senão o simbolo do que têm que sofrer os vencidos e os débeis.
E entre esses débeis figuram as crianças, que são os grandes burros de carga.
Peço aos homens sinceros que se recordem dos tempos da sua meninice. Ou foram uns desgraçados, ou, se foram mimados, se lhes foram fáceis as primeiras lutas da vida, viram, pelo menos, sofrer os seus pequenos camaradas, e com sofrimentos irremediáveis, contra os quais era inútil toda a rebelião. Que podiam fazer contra as violências, as burlas e os insultos dos grandes?
Nada, senão calcar pouco a pouco no fundo do coração um tesouro de vingança que, ao serem maiores, gastaram, talvez, maltratando outras crianças mais pequenas.
Além disso, por mais ternos que sejam os pais, por muito que se sacrifiquem pela felicidade dos seus filhos, hão de sofrer, por sua vez, as condições que lhes cria a sociedade em que vivem e submeter igualmente a elas os seus descendentes. Sabido é até que ponto estas condições são duras para o pobre.
É preciso que o filho do trabalhador entre muito novo para a fábrica, que se torne muito cedo o escravo da máquina formidável que teve a lã e malha o ferro. Não só tem que obedecer aos patrões, aos contramestres, aos numerosos operários, como também se acha escravizado à rodagem da máquina formidável, cujos movimentos há de observar para regular os seus próprios.
Não se pertence: todo o seu gesto se converte num simples mecanismo, toda a sombra do que poderia ser o pensamento, não é para ele mais do que um acompanhamento da obra do monstro impelido pelo vapor.
E, assim, chega ao estado de homem, se é que a fadiga, a miséria, a anemia não puseram um rápido termo à sua desgraçada mocidade.
Enfermo de corpo, pobre de inteligência, sem ideias morais, que pode ele ser e quais as suas alegrias? Grosseiras, brutais sensações, que não o desperta um momento senão para deixá-lo cair de novo, mais entorpecido ainda, mais incapaz de escapar à sua escravidão.
E os legisladores, não obstante, ocupam-se, de vez em quando, de regular “o trabalho das crianças nas fábricas!…”
E em conformidade com estas leis – que se tem a audácia de exaltar como maravilhas da humanidade – nenhum patrão tem o direito de fazer trabalhar a criança mais de doze horas e a privá-la do sono da noite, “salvo em casos excepcionais”. A exceção, porém, como se sabe, converte-se sempre em regra.
O mesmo é dizer que é permitido envenenar, mas só em pequenas doses, como assassinar, mas à força de pequenos golpes.

II

Mas admitamos que amanhã o trabalho das crianças nas fábricas seja proibido; cheguemos mesmo a supor que os pais recebam uma pensão do Estado, a troco do pequeno salário que o patrão daria à crianças.
No futuro, a escola estaria aberta e a educação seria completa para todos, tanto para o filho do pobre como para o do rico.
Agora que a escola é laica, a formula religiosa foi substituída por uma formula gramatical, as sentenças latinas incompreensíveis foram substituídas por palavras do nosso idioma, que não são mais claras.
Pouco importa que a criança compreenda ou não; é necessário que decore um formulário qualquer escrito de antemão.
Depois do absurdo alfabeto que lhe faz pronunciar as palavras de maneira diferente do modo como as escreve(*), e que acostuma previamente a todas as tolices que lhe são ensinadas, veem as regras gramaticais que recita de memória, em seguida as bárbaras nomenclaturas a que dão o nome de geografia, e ainda por cima o relato de crimes reais conhecidos com o nome de história.
E como pode, mais tarde, a criatura – ainda a melhor dotada – desembaraçar o seu cérebro de todas estas coisas que lhe fizeram encasquetar à força, umas vezes à custa de um trabalho excessivo, outras até com a ajuda do chicote?
Além disso, não têm essas escolas a sua escravidão: horas de aulas e grades nas janelas?
Se se deseja educar uma geração livre, é mister começar por destruir as prisões chamadas colégios e liceus!
Socialistas! Pensemos no futuro dos nossos filhos mais do que na melhoria da nossa situação.
Nós – não o esqueçamos – pertencemos mais ao mundo do passado, do que à sociedade do futuro. Em virtude da nossa educação, das nossas velhas ideias, de resquícios de preconceitos, somos ainda inimigos da nossa própria causa; o sinal da cadeia, traze-mo-lo ainda marcado no pescoço.
Tratemos de preservar os nossos filhos da triste educação que recebemos; aprendamos a educá-los de modo que se desenvolvam na mais perfeita saúde física e moral; saibamos fazer deles homens como nós quiséramos ser.
Não esqueçamos nunca que o ideal de uma sociedade se realiza sempre.
A sociedade burguesa atual, representada completamente pelo Estado, fez, por meio da educação, precisamente o que queria fazer.
E como? Que faz o Estado das crianças sem família que toma a seu cargo?
Sabemos muito bem. Recolhe-as em hospícios onde, mal alimentadas e mal tratadas, sucumbem na sua maior parte. Das restantes toma conta e educa-as para fazer delas soldados, carcereiros e policiais.
Eis ai a sua obra! E a sociedade, por ele representada, está plenamente satisfeita com ela.
Quanto a nós, quando chegar a nossa vez, que chegará sem dúvida, quando possamos atuar e fazer o que quisermos, o nosso principal objeto será preservar os nossos filhos de todas as misérias que sofremos.
Tenhamos a firme resolução de fazer deles homens livres – nós, que ainda não temos da liberdade senão uma vaga esperança.

Élisée Reclus

(*) Reclus refere-se à língua francesa, na qual, como se sabe, as palavras não se lêem como se escrevem, tal como sucede na língua portuguesa. (N.T.)