Fronteira #9 com José Solano

Neste nono episódio do Fronteira recebemos José Solano para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep José, companheiro do coletivo A de Libertad, analisa os impactos do coronavírus na Costa Rica e suas consequências para as diferentes classes sociais. Se por um lado as medidas governamentais protegem as elites e os empresários, por outro expõe a classe trabalhadora a uma situação de risco ainda maior. São as ações de solidariedade, organizadas principalmente por grupos anarquistas que se contrapõe a frieza econômica do Estado costarricense. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos do Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de José Solano:

Olá amigas e amigos, dos territórios que nos escutam.

Meu nome é José Solano, falo desde o território dominado pelo Estado da Costa Rica.

Para mim é um prazer poder compartilhar com vocês algumas das reflexões que se podem fazer a partir do coronavírus, do COVID-19, que atualmente está afetando em nível mundial, e que este país e sua população não é uma exceção.

No dia de hoje já são mais de 400 infectados, 2 mortos e mais de 10 pessoas recuperadas. É o se diz, por enquanto, os dados oficiais que controla o governo da república.

É importante dizer que o tratamento dado a esta doença, foi, ao menos na Costa Rica, de uma importante contenção por parte de todo o sistema de saúde, que na Costa Rica segue sendo público, de caráter universal, ao menos no papel, na prática as vezes isso não é cumprido, mas que é sustentado através de um serviço solidário, que surgiu na década de 40 do século passado. Portanto, como um sistema médico como tal, é um sistema de medicina interna que é sumamente avançado, que permitiu que a população, em geral, tenha uma expectativa de vida que é próxima dos 80 anos. Mas que durante as últimas políticas capitalistas e liberais, dos últimos 30 anos, tem colapsado o sistema de segurança social, e portanto, houve uma piora substancial do serviço, principalmente dos serviços de emergência e de saúde externa, que é como se chama, que tem filas absurdas para as consultas médicas para pessoas, inclusive aquelas com doenças terminais, que podem durar 5 anos para ressonâncias magnéticas, ultrassons, etc.

Apesar disso, o sistema, ou melhor, toda a equipe médica e de saúde, do sistema hospitalar, realmente tem trabalhado duro nesta tarefa. Eles são aqueles que colocam seus corpos frente a pandemia que se vive agora.

As medidas do governo, por outro lado, incrementaram seus níveis de autoritarismo que ao longo dos últimos anos tem crescido na Costa Rica, mas que agora, neste contexto de crise sanitária, que estamos vivendo, estão colocando a prova todo este aparato de repressão de uma maneira muito mais efetiva e, perigosamente, também, é muito legitimada pela mesma população que vê como medidas necessárias os excessos, os abusos, do poder que estão sendo cometidos neste momento.

No dia de hoje, por exemplo, na quarentena, foram suspensas todas as aulas, tanto da educação primária, secundária, como a superior. Tanto no nível público quanto no privado. A maioria dos negócios estão ou fechados ou com jornadas reduzidas ou tendo que receber menor quantidade de clientes, segundo cada caso.

Estas ações se por um lado tem afetado um importante setor da produção nacional, principalmente o pequeno e médio produtor, algumas outras empresas, as grandes, estão se beneficiando com esta epidemia. Poderíamos falar não só das grandes cadeias de supermercado transnacionais como Walmart, mas também este grande empresariado costarricense que foi beneficiado com o acesso a certos serviços essenciais, que hoje são demandados pelo sistema hospitalar, por exemplo, farmacológico, de saneamento, limpeza, etc., estes serviços foram amplamente beneficiados. E alguns produtores de alimentos.

Por outro lado, este mesmo empresariado, reunidos através de Câmaras industriais, pressionaram o governo para que este formule políticas que lhes beneficie, que lhes alivie a carga durante o período que estamos passando, mas, ao mesmo tempo, estas empresas transferem para seus trabalhadores e trabalhadoras todo o peso econômico da pandemia. Então temos, por exemplo, faz uma semana que foi aprovada na Costa Rica, uma lei para reduzir a jornada trabalhista, o que significa que as jornadas podem ser reduzidas até 50%, e, portanto, os salários também caem na mesma proporção. E, em alguns casos, dependendo do quanto for – supostamente – afetada a empresa, poderia também reduzir em 75% as jornadas de trabalho. Isso significa que pagariam apenas 25% dos salários, em um momento em que se faz mais necessário o acesso ao salário, enquanto se está em casa, ou se deixa tudo, com muito mais razão, para que as pessoas possam assumir suas necessidades básicas e de suas famílias. Então, vemos como o empresariado transfere o custo desta crise sanitária aos empregados e empregadas de seus centros de trabalho.

Por outro lado, também, o Estado começou a reprimir com muito mais força. Na Costa Rica não está ocorrendo toque de recolher ou estado de sítio, como está ocorrendo em outros países, porém, o governo da república, tomou uma absurda – no meu parecer – decisão de limitar o transito veicular, tanto nos transportes públicos quanto para caminhar nas vias públicas. Quero dizer que não deve reprimir mais à população ao limitar totalmente a liberdade de circulação como ocorre em um lugar em que existe o toque de recolher. Mas obriga as trabalhadoras e trabalhadores a se mobilizarem para ir a seus centros de trabalho em transporte públicos, porque os donos das empresas de transporte e mesmo o próprio Estado, encarregado do transporte ferroviário, por exemplo, reduziram as frotas de ônibus e de trens e assim, as pessoas vão muito mais aglomeradas nos veículos de transporte público e nas filas nos pontos de ônibus, o que faz com que a enfermidade possa se propagar mais. Mas se proíbe que as pessoas viagem em seus veículos a partir de certas horas, por exemplo, para a semana santa, só será liberada 12h de circulação de veículos e o restante, as 12h seguintes, a circulação está completamente proibida. Ninguém pode circular, com aplicação de multas de transito que em alguns casos são de meio salário mínimo. O que implicaria elevados custos para as pessoas trabalhadoras que se utilizem de automóveis e também, muito maior arrecadação de recursos para o Estado que, como se diz aqui na Costa Rica, “el Estado no esta sacando pelo sin sangre”, quero dizer, que está aproveitando também a conjuntura que estamos vivendo para também encher seus cofres frente a uma crise econômica e fiscal que já vinha afetando a Costa Rica a muitos anos. E que, na aprovação do plano fiscal que foi feito a alguns anos, não conseguiram aquecer a economia costarricense, mas sim, aumentou o desemprego para mais de 12% e que agora, o mais provável depois dessa crise sanitária, quando sairmos dela, vai aumentar ainda mais. Isto vai aprofundar ainda mais a crise econômica que já estamos vivendo.

E, apesar de tudo isso que estamos vivendo na Costa Rica, também existem redes de solidariedade, redes de apoio mútuo, principalmente entre o setor anarquista costarricense, que tem realizado a tarefa de, através dos meios limitados e da repressão que se vive nas ruas neste momento, para poder levar alimentos, fazendo comedores populares para garantir alimentos para as pessoas em situação de rua, que são as pessoas que estão sendo, neste momento, as mais prejudicadas, com esta crise. Primeiro porque não tem casa onde permanecer, segundo porque estão expostos a contaminação, a esta enfermidade e a muitas outras que se vive nas ruas e, que tiveram reduzido seu nível de alimentação seja pela comida que conseguiam dos negócios que antes da crise, estavam abertos e que lhes forneciam algum alimento, ou o dinheiro das pessoas que passavam e lhes davam dinheiro e que agora, ao diminuir a quantidade de pessoas que lhes dão dinheiro, eles tem menos dinheiro e tem acesso a menos alimentação. Ou ainda, mesmo dos lixos, de onde muitas vezes essas pessoas retiravam os alimentos, as empresas, especialmente as alimentícias (restaurantes, etc.) que já não estão produzindo alimentos, evidentemente, tem assim seus desperdícios reduzidos.

Então esta enfermidade tem afetado principalmente às pessoas em situação de rua neste momento. O que estamos vendo são as redes de apoio mútuo e solidariedade, de companheiros e companheiras, que decidiram agir imediatamente e começaram a garantir a alimentação a estas pessoas, ao menos enquanto a crise não for superada.

Então, em meio desta crise que é uma crise do sistema capitalista, também emergem, como acontece historicamente, estas experiências que são completamente contrastantes, contestadoras, inclusive revolucionárias, dentro da sociedade para resolver as deficiências deste sistema que é opressor, gerando espaços de autogestão, de autonomia, de liberdade e de apoio mútuo.

Então, amigos e amigas, assim está o panorama neste território dominado pelo Estado chamado Costa Rica, estamos atentos também ao que acontece em outras latitudes.

Enviamos nossos abraços solidários a todos os cantos que nos escutem e que é o momento de começar a atuar para começar a contrapor os efeitos que o sistema capitalista está tendo neste momento e nos que virão, nas próximas semanas e meses, para começar a criar projetos alternativos para a sociedade futura.

Muito obrigado!