Fronteira #8 com Raúl Zibechi

Neste oitavo episódio do Fronteira recebemos Raúl Zibechi para conversar sobre os impactos da Covid-19. Neste ep Zibechi analisa os impactos do coronavírus no contexto latino-americano a partir de dois pontos centrais: os efeitos político e sanitários da pandemia. Destacando a fragilidade dos sistemas de saúde; as condições precárias de habitação, e; a ampliação do aparato repressivo de Estado, seja ele em sua forma policial ou militar. O Fronteira é aperiódico, e existe enquanto enfrentarmos os efeitos sociais e políticos do Covid-19.

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Abaixo a transcrição e tradução da fala de Raúl Zibechi:

Boa tarde a todos e todas!

A situação do coronavírus na América Latina, eu diria que é, uma situação de uma epidemia que recentemente está chegando. Está em suas primeiras fases, e, portanto, é muito difícil avaliar onde estará o pico desta epidemia. Alguns dizem que, uma vez que tendo chego em meados de março na maioria dos países, ocorrerá o pico em meados de maio, pelo menos é o que se prevê na Argentina, e mais precisamente em Buenos Aires. Ou seja, ainda temos um mês e meio pela frente, que será bem longo, porque temos na América Latina e concretamente na América do Sul a particularidade de que a epidemia chega no mesmo momento em que começará o outono e se aproxima o inverno. E tudo indica que, apesar de não termos certeza, o inverno pode agravar esta situação.

Vamos ver agora quais os efeitos que esta epidemia teve nas últimas duas ou três semanas. Ela teve dois grandes efeitos, um político e outro sanitário. Os governos tomaram medidas bastantes drásticas, particularmente os da América Central, bem como Equador, Peru, Chile, Colômbia e Argentina, de fechamento total das fronteiras, quarentena obrigatória, com estado de sítio e toque de recolher em alguns lugares.

Creio que esta rigidez em comparação com alguns países da Europa do norte, como Suécia, Alemanha, Holanda, Dinamarca, que mantém uma boa parte de suas atividades, penso que isso se deve em grande parte ao fato dos sistemas sanitários da América Latina serem muito mais frágeis e quanto maiores as fragilidades, dá a impressão, de que maior é a necessidade de conter o vírus em suas primeiras etapas. Antes mesmo do vírus chegar em El Salvador já se aplicam medidas muito drásticas, de fechamento de mercados, impedindo a circulação das pessoas, para evitar assim que o colapso dos sistemas sanitários chegue logo, como já está ocorrendo em Guayaquil, por exemplo, onde aparecem cadáveres nas ruas, porque não apenas o sistema sanitário está saturado, como também a capacidade de cremar ou enterrar os corpos, ou até mesmo de recolhê-los.

Penso que Guayaquil é nesse momento o lugar mais complicado, mais difícil, além de ser o lugar em que a crise social e sanitária foi experimentada antes.

Então essa é uma primeira aproximação.

Em segundo lugar eu diria que em alguns países avançou muito rapidamente, como Equador e Chile, com a particularidade que ambos tem mais ou menos a mesma população e a mesma quantidade de infectados, uns três mil e tantos, mas no Equador o número de mortos se multiplicam por sete em comparação ao Chile. Isso é importante.

O Brasil está experimentando um crescimento muito grande, cerca de mil casos diários em média ao longo dos últimos dias, elevando os números, que em breve superará os 10.000 infectados, está atualmente em 8.000 ou 9.000.

E a Argentina é outro lugar onde foi decretada uma quarentena drástica, não tem pessoas circulando nas ruas, mas, por sua vez conseguiram conter a pandemia, tendo cerca de 1.000 infectado, não chegando a 40 o número de mortos. Significa que conseguiram por enquanto esse controle.

A América Latina tem uma particularidade que não tem em outros países. Em primeiro lugar onde a pandemia chega mais, e tem uma grande parte da população que vive em favelas, cantegriles, villa miseria, em situações muito precárias, e, além disso, uma porcentagem muito alta, que pode superar os 50% em vários países, de pessoas que vivem da informalidade.

Então, conversando com companheiros favelados do Brasil nesses dias, eles me diziam – o que também é possível estender a outros países -, que “já temos dengue, mais de 3 milhões de casos em toda a região, já temos a precariedade do trabalho, precariedade sanitária, lugares onde não há água”, a recomendação de fique em suas casas e lavem as mãos, é uma recomendação que muito poucos podem cumprir, primeiro porque não há água, não há saneamento, ou são precários. E, além disso, as moradias são muito precárias, com teto de chapas, por onde passa água quando chove, é o que comentam os companheiros das villas miseria na Argentina. Então permanecer fechados em casa é praticamente impossível. Essa é uma recomendação para as classes médias. Os setores mais pobres vivem em 8 ou 10 em uma moradia pequena, não há espaço para cada um, não há computador para cada um.

Ontem conversei com uma amiga uruguaia, que tem dois filhos na escola, um acaba de terminar o liceu e tiraram o acesso ao computador, e seu filho menor só pode se conectar através do celular. Então fazer as tarefas e acompanhar as aulas pelo celular não é o mesmo que pelo computador. Tem casas, muitas casas, eu diria a maioria dos setores populares, que têm, se muito, um computador e a conexão da internet não é boa. Então essas recomendações tem sido problemáticas.

O segundo tema que queria abordar, brevemente, é que a primeira onda de coronavírus já está provocando uma crise política muito forte. O epicentro do colapso sanitário e social é Guayaquil, no Equador; o epicentro da crise política é o Brasil, onde temos um governo errático de Bolsonaro, um governo que se opõe ao fechamento do comércio, por exemplo, porque contrapõe a economia à saúde e os governadores em massa que se opõe à Bolsonaro e decretam medidas (que Bolsonaro não pode impedir, por que o Brasil é um Estado federal) que buscam impedir que Bolsonaro se sobreponha e reabra os mercados e o comércio. Tem ocorrido manifestações a favor da reabertura que são impulsionados por Bolsonaro, panelaços diários contra o governo e, uma atitude dos militares que estão encurralando Bolsonaro para lhe impor as medidas lógicas que, neste caso, são para priorizar a saúde.

Portanto, queria esboçar esses dois cenários: um de crise sanitária e outro cenário de crise política que marcam o que está acontecendo na região nesse momento. Para mim, acredito que nos lugares onde ainda não há crise política existe uma massiva e onipresente presença policial nas ruas. Argentina e Chile são casos muito evidentes, onde tradicionalmente a polícia tem um papel de controle da sociedade entre os setores populares, uma presença massiva contra os jovens, contra os adolescentes, presença muito repressiva e é isso que está ocorrendo agora.

Então, temos que ver a sociedade em seus diferentes níveis: o 10, 15% mais rico; as classes médias; e os setores populares. Cada um está sofrendo a pandemia de uma maneira muito distinta.

Minha impressão é que está avançando muito fortemente a militarização, que já vinha acontecendo na América Latina, Venezuela é um caso evidente, Nicarágua também. Mas estamos avançando nisso. No Chile, a forma do governo de Piñera de combater, de reverter as massivas manifestações de revolta social que se iniciaram a partir de outubro tem sido por meio de uma presença massiva dos carabineros [um tipo de polícia presente no Chile], estado de sítio, reforço do papel dos militares. Bom, e agora essa tendência de fundo que vinha se manifestando se aprofunda.

Eu creio que não há tendências novas, mas sim que podemos ver em nossa região é que com o coronavírus há uma aceleração de tendências preexistentes. Com essa aceleração temos uma crescente crise dos serviços públicos (Saúde, Educação, Saneamento) que já era evidente, mas que agora colapsam. E também uma aceleração dos tempos políticos. No Equador há uma nulidade, uma desaparição do governo de Lenin Moreno e no Brasil um isolamento crescente e um desnorteamento do governo Bolsonaro, que está sendo cada vez mais substituído por uma presença militar e dos governadores, criando um governo paralelo entre os militares e os governadores que, independente das suas tendência políticas, estão fazendo uma política mais ou menos razoável frente a essa situação.

Então, para sintetizar eu diria: a pandemia é muito preocupante por causa do deterioramento da saúde, em particular dos setores populares; e a militarização da sociedade também é muito preocupante. Estamos vendo uma situação que tem duas questões centrais: a sanitária e a repressiva. O controle militar policial das nossas sociedades é cada vez mais preocupante porque está marcando o futuro que pode permanecer depois da pandemia. Um futuro preocupante, porque a pandemia não vai terminar em três meses nem seus efeitos vão embora em um ano.

Estamos prevendo que em três meses a situação sanitária pode chegar a ser crítica e que, depois de passar esse pico e as coisas possam se encaminhar lentamente, provavelmente tenhamos uma crise econômica tremenda, com um forte retrocesso do produto interno bruto (PIB), um enriquecimento dos mais ricos e um maior empobrecimento dos mais pobres. Seguramente, como consequência, esse processo viria acompanhado por um controle policial militar forte para reprimir os protestos e as eventuais revoltas que possam ocorrer. Já vimos que o quarto trimestre de 2019 foi marcado por uma onda de revoltas sociais na região. Essa onda pode continuar e aprofundar-se quando a pandemia for suavizando-se.

Isso pode estar indicando para onde nossas sociedades estão caminhando. Acredito que é um tema que deve continuar sendo discutido nas próximas semanas. Isto é, deve ser acompanhado semana a semana e até mesmo dia a dia.

Muito obrigado.