Desde o dia 27 de abril o Grupo de Estudios José Domingo Gómez Rojas vem publicando textos em homenagem a trabalhadoras e trabalhadores do mundo todo por conta do 1º de maio. Os trabalhos apresentados possuem o nome de “Lecturas para el día del trabajador“, nos quais trazem ao debate textos de anarquistas que por muitas vezes nos são “ilustres desconhecidos”, como é o caso de Marques Cabinza, Manuel Gonzáles Prada, Emilio Lopez Arango. Mas também trazem a lume textos de anarquistas mais conhecidos, como o de Ricardo Mella e Rudolf Rocker, sendo o artigo deste último o que traduzimos e que socializamos com todos.
Esperamos que nossos companheiros continuem em sua incansável obra de divulgação e desenvolvimento do ideal anarquista em terras andinas, e esperamos também poder contribuir com nossos esforços nessa empreitada.
LEITURAS POR E PARA O DIA DO TRABALHADOR: “SOCIEDADE E CLASSE”, POR RUDOLF ROCKER.[1]
Continuamos nossas leituras por e para as e os trabalhadores do mundo inteiro. Nesta ocasião apresentamos um escrito de Rudolf Rocker, reconhecido teórico do anarquismo (recordando-nos de seu memorável “Nacionalismo e Cultura”) e insistente lutador da causa sindical. Cercado de anarquistas tais quais Gustav Landauer, Augustín Souchy e Max Nettlau, Rudolf Rocker cumpriu papel fundamental na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) em 1922, experiência da qual existe um destacado registro filmográfico do Congresso Extraordinário da AIT celebrado em 1931 em Madrid, onde aparece nosso autor intervindo, com suas palavras, ante 600.000 trabalhadores de distintas delegações:
Admirador de Nestor Makhno e personagem influente do movimento operário judeu da Alemanha, Rocker, segundo consta em sua biografia, conheceu em sua agitada vida de agitador social, Élisée Reclus, Piotr Kropotkin, Louise Michel, entre outros.
A leitura que citamos hoje, que leva por título “Sociedade e Classe”, nos entrega uma visão crítica do conceito de “classe”, desprendendo-o da permanente suspeita ante os “essencialismos”, as “verdades absolutas” e os dogmas mortos. Neste sentido, é que Rocker assinalará os defeitos dos conceitos coletivos e das generalizações, sustentando que
o pensamento e a ação do homem, não são somente o resultado de sua incorporação a uma classe. Esta submetida a todas as influências sociais imagináveis e, sem dúvida, também depende, em parte, de certas disposições inatas que encontram a expressão mais variada sob a ação do ambiente social circundante.
Uma interessante leitura para avivar as visões críticas do anarquismo e compreender, com ele, a amplitude de seu ideário.
Grupo de Estudios José Domingo Gómez Rojas
SOCIEDADE E CLASSE
Rudolf Rocker
O período que se inicia após a última guerra mundial, que hoje têm conduzido a uma nova catástrofe de incalculável alcance, não só têm descartado uma série de instituições políticas e sociais, mas também deu novo rumo ao pensamento, e leva hoje, na consciência de muitos, o que alguns haviam reconhecido há muito tempo. Não só se têm produzido uma modificação no pensamento das camadas burguesas da sociedade, como também se têm visto tal mudança no campo do socialismo. A grande maioria dos socialistas que acreditam em Marx, e na missão histórica do proletariado, mantiveram a crença marxista que “de todas as classes que lutam hoje contra a burguesia, só o proletariado é a classe realmente revolucionária”, encontram-se frente a fenômenos que não se podem explicar com argumentos puramente econômicos. Era muito cômodo ver no proletariado o herdeiro da sociedade burguesa e acreditar que isso obedecia a férreas leis históricas, tão inflexíveis como as leis que regem o universo.
Este é o defeito inevitável de todos os conceitos coletivos e das generalizações arbitrárias. Mas o pensamento e a ação dos homens não são apenas resultado de sua incorporação a uma classe. Está submetido a todas as influências sociais imagináveis e, sem dúvida, também depende, em parte, de certas disposições inatas que encontram a expressão mais variada sob a ação do ambiente social circundante. Seis filhos engendrados pelo mesmo pai proletário, dados a luz pela mesma mãe proletária e crescidos no mesmo ambiente proletário, seguem, no desenvolvimento de sua vida ulterior, os caminhos mais divergentes e são atraídos por toda sorte de aspirações sociais, ou são reticentes a qualquer sentimento social. Um chega ao campo hitleriano, o outro se torna comunista, socialista, reacionário, revolucionário, livre pensador ou anticlerical. Por que ocorre isso? Não o sabemos, e tampouco os melhores ensaios de explicação são capazes de descobrir absolutamente o desenvolvimento do indivíduo.
Se o pensamento da evolução possui um sentido, só se pode consistir no fato que todo fenômeno leva em si as leis de sua formação gradual, leis que se ajustam a condições externas do ambiente social e natural. Já o fato singular de que a fé na “missão histórica do proletariado”, a ideia mesma do socialismo, não nasceu do cérebro dos proletários, senão foram inventadas por descendentes de outras classes sociais e foram apresentadas às classes trabalhadoras como um condimento preparado para o consumo, deveria soar algo criticamente.
Quase nenhum dos grandes precursores e animadores do pensamento socialista surgiram do campo proletário. Com exceção de P.J.Proudhon, E. Dietzgen, H. George e alguns outros, os representantes espirituais do socialismo de todas as matrizes têm surgido de outras camadas sociais. Ch. Fourier, H. Saint-Simon, E. Cabet, A. Bazard, C. Pecqueur, L. Blanc, E. Buret, Ph. Buchez, P. Leroux, Flora Tristan, A. Blanqui, J. de Collins, W. Godwin, R. Owen, W. M. Thompson, J. Gray, M. Hess, K. Grün, K. Marx, F. Engels, F. Lasalle, K. Rodbertus, E. Düring, M. Bakunin, A. Herzen, N. Chernichevsky, P. Lavroff, Pi y Margall, F. Garrido, C. Pisacane, E. Reclús, P. Kropotkin, A. R. Wallace, M. Fluerschein, W. Morris, N Hyndman, F. Domela Nieuwenhuis, K. Kautsky, F. Tarrida del Mármol, F. Mehring, Th. Hertka, G. Landauer, J. Jaurés, Rosa Luxemburg, H. Cunow, G. Plekhanof, N. Lenín e muitos outros, não eram membros da classe trabalhadora.
Não foram as leis da “física econômica” as que levaram esses homens e mulheres ao campo do socialismo, senão principalmente motivos éticos, embora alguns outros fatores possam ter tido influência. Seu sentimento de justiça se rebelou contra as condições sociais de seu tempo e deu a seu pensamento uma orientação determinada.
E, por outro lado, vemos que homens como Noske, Hitler, Stalin e Mussolini, que sugiram das mais baixas camadas sociais, se elevaram a categoria dos piores inimigos de um movimento operário independente e se converteu em veículos conscientes de uma reação social cuja significação para o futuro próximo da história humana não se pode calcular, todavia.
Se você puder provar que pertencer a uma determinada classe influi tão fortemente no pensamento e no sentimento do homem que lhe distingue, por toda sua essência, dos membros das outras classes sociais e o leva a uma direção completamente determinada, então se poderia dizer, talvez, de “necessidade” e “missão histórica”. Mas como não é assim, por essa senda não se chega mais que a perigosos sofismas que transformam o pensamento vivente em um dogma morto, incapaz de outro desenvolvimento. O que hoje se pode classificar como “conteúdo social” de uma classe, como “psicologia” de uma razão ou “espírito” de uma nação, é sempre resultado de um trabalho mental individual que se atribui logo, arbitrariamente, como suposta “lei de sua vida”, a da classe, a da razão e da nação. No melhor dos casos, não passa de uma engenhosa especulação. Mas, na maioria das vezes, trabalha como uma fatalidade, pois não estimula nosso pensamento, senão o condena a uma infecunda paralisia.
A classe é somente um conceito sociológico que possui para nós a mesma significação que a divisão da natureza orgânica, para o homem de ciência, em diversas espécies. É um fragmento da sociedade, como a espécie é um fragmento da natureza. Atribuir-lhe uma “missão histórica” é incorrer em um jogo especulativo de nosso pensamento e não têm maior valor que se um naturalista quisesse falar de uma missão de crocodilos, dos macacos ou dos cachorros. Não é a classe, senão a sociedade em que vivemos, e da qual a classe não é mais que uma parte, a que influi continuamente até o mais profundo de nossa existência espiritual. Toda a nossa cultura, arte, ciência, filosofia, religião, etc. é um fenômeno social, não um fenômeno de classe, e se impõe a cada um de nós, qualquer que seja a camada social a que pertençamos.
A Alemanha não nos tem dado um exemplo clássico sobre esse aspecto? Há, todavia, esta hora bobos que não querem ver no movimento hitleriano mais que uma rebelião de uma pequena burguesia, afirmação absurda, privada de todo fundamento. A instituição do Terceiro Reich contribuiu com homens de todas as classes sociais e não menos a grande massa do proletariado alemão. Em 1924 Hitler recebeu nas eleições 1.900.000 votos; dez anos mais tarde, em 1934, essa cifra alcançou 13.732.000. O exército marrom de Hitler não se compunha somente de pequenos burgueses e intelectuais, senão, principalmente, de trabalhadores alemães que, apesar de sua origem proletária, foram tão subjugados pelas idéias do fascismo como as outras camadas sociais.
Se você quer combater, eficazmente, a barbárie geral que ameaça nossa cultura, terá que renunciar mais que um dogma morto, e jogar na pilha de lixo mais de uma “verdade absoluta”.
Fonte: “Sociedad y clase”, do livro La segunda guerra mundial : Interprestaciones y ensayos de un hombre libre, por Rudolf Rocker. Buenos Aires . Editorial Americalee, 1943. Páginas 21-24.
[1] Texto traduzido a partir do site do Grupo de Estudios José Domingo Rojas
(http://grupogomezrojas.org).