Nota:
Faleceu nessa quarta-feira, 13/04/2011, o militante anarquista e associado do Centro de Cultura Social, Virgilio Dall’Oca, aos 93 anos, na cidade de Santos-São Paulo. Virgilio participou das atividades do movimento anarquista em São Paulo desde a década de 30, juntamente com sua companheira Nair Lazarine Dall’Oca, falecida em agosto de 2010. Colaborador nas várias instâncias do movimento libertário, no CCS e na Nossa Chácara, vinha sofrendo de câncer há algum tempo. Morreu na Santa Casa de Santos e foi sepultado no cemitério de Areia Branca, também Santos. Deixa sua filha Clara, também colaboradora do movimento libertário.
Saudades dos companheiros do Centro de Cultura Social.
(Fonte: CCCS-SP)
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A Família Dall’Oca e o Anarquismo em São Paulo
Marcolino Jeremias
É muito comum dentro da historiografia do anarquismo, principalmente quando produzida por acadêmicos, o registro biográfico de militantes libertários que foram prolíferos escritores, diretores de jornais, conferencistas, autores de livros ou exímios oradores.
Por essa razão, os anarquistas que melhor desenvolveram a habilidade de falar e/ou escrever, com o passar dos anos acabaram sendo mais notados, pesquisados, e por conseqüência lógica desses estudos, tornaram-se mais conhecidos por todas as pessoas que se interessam pelo tema.
Considerando que o movimento anarquista historicamente foi formado em sua maioria por trabalhadores braçais, que em geral não puderam completar seus estudos e que em alguns casos, sequer freqüentaram a escola, sendo, portanto, forçados a formarem-se ideologicamente de forma autodidata, e que grande parte desses anarquistas vão optar exclusivamente por serem militantes de base e deixarem funções mais rebuscadas como escrever e/ou falar em público para aqueles que melhor estavam preparados.
Constatamos com facilidade que ignorar os militantes braçais do anarquismo é cometer um grande erro histórico, ao reconhecer apenas um aspecto limitado da trajetória de um movimento social formado majoritariamente por militantes de base, que em muitos momentos decisivos, vão desempenhar uma função de maior importância do que os escritores, oradores ou intelectuais do anarquismo.
Esse texto visa, justamente, resgatar um pouco dessa história renegada, tomando como exemplo a produtiva vida da família Dall’Oca que se desenvolveu em meio ao movimento anarquista na cidade de São Paulo.
Sua trajetória têm início com o nascimento de Virgilio Dall’Oca, em 26 de junho de 1917, na cidade de Ribeirão Preto, filho de Hercole Dall’Oca (italiano de Milão) e Maria Lombo (brasileira de Ribeirão Preto), um casal camponês que teve 8 filhos.
Pouco tempo depois do nascimento de Virgilio, a família mudou-se para a cidade de Araçatuba. Virgilio perdeu sua mãe com 5 anos de idade, estudou até o terceiro ano na escola rural, e foi bem cedo dedicar-se ao trabalho no campo.
O pai de Virgilio era admirador do fascismo de Mussolini e muito severo na criação de seus filhos. Tamanha era a rigidez de Hercole Dall’Oca no trato com seus filhos, que a madrasta de Virgilio, a jovem baiana Olimpia Dall’Oca, tentava impedir (algumas vezes em vão) os constantes castigos corporais. “Uma das poucas qualidades de meu pai, era o fato dele ser ateu”, nos diria anos depois, o próprio Virgilio Dall’Oca.
É nesse período difícil que ele vai conhecer a mulher que tornou-se sua companheira por toda a vida, Nair Lazarine Dall’Oca, nascida em 23 de abril de 1923, em Araçatuba, filha de Carmino Lazarine e Rosa Furlan (ambos brasileiros de Ribeirão Preto), um modesto casal que teve 7 filhos. O pai de Nair, além de marceneiro, também lecionou na escola rural, onde ela estudou durante três anos.
Entretanto, no ano de 1932, por causa dos maus tratos, Virgilio Dall’Oca, então com 15 anos de idade, rebela-se contra o seu pai e foge para morar na casa de sua tia, na cidade de Marília.
Logo em seguida, começa a trabalhar na estrada de ferro Santos-Jundiaí e muda-se para a casa de seus tios Aída e Nicola D’Albenzio, já na cidade de São Paulo.
Nicola D’Albenzio, então ativo militante anarquista da Federação Operária de São Paulo (F.O.S.P.), aos poucos desperta o interesse do jovem Virgilio Dall’Oca pelas idéias libertárias.
A primeira vez que Virgilio Dall’Oca teve contato com outros anarquistas, foi quando ele foi levado pelo seu tio, para conhecer a redação do jornal A Plebe, e lá chegando encontrou o célebre militante Gusmão Soler, com quem pode reforçar suas convicções ácratas. Desde então, Virgilio começou a colaborar com o jornal, inclusive, organizando as páginas de A Plebe, quando ela chegava da gráfica.
Nesse mesmo ano de 1936, Virgilio Dall’Oca conheceu o Centro de Cultura Social de São Paulo, com sede na avenida Rangel Pestana, nº 251 (antiga Ladeira do Carmo, nº 9), que na época contava com muitos freqüentadores, entre eles: Edgard Leuenroth, Germinal Leuenroth, Pedro Catallo, Rodolpho Fellipe, João Rojo, Benedito Romano, Nicola D’Albenzio, Fernando Navarro, Antonio Gomes Gonzales, José Passaro, Paulo Partido, Nair Partido, Justino Salguero, Julieta Salguero, Lucca Gabriel, Lourdes Martin Gabriel, Amor Salguero, Antonio Passos, Antonio Raya Piedrabuena, Cecílio Dias Lopes, Maria Valverde Dias, Nena Valverde, José Valverde Dias, José Pazarini, Luis Chandre, Joaquim Antonio, Alfredo Chaves, Sebastião Gomes, Salvador Arrebola, Eduardo Peralta, Alexandre Pinto, Roque Branco, Manoel Turbilhano, Antonio Martinez, José Oliva Castillo, Cleopatra Boreli e seu companheiro, Martins e Mariasinha(1) (que chegou a ser Tesoureira do Centro de Cultura Social), além dos muitos espanhóis que viriam para São Paulo, após a implantação da ditadura de Franco na Espanha.
Após 4 anos morando com seus tios, Virgilio voltou para Araçatuba para casar-se com Nair, e ambos mudaram-se para São Paulo, para viverem juntamente com Aída e Nicola D’Albenzio. Virgilio chegou a trabalhar como servente de pedreiro, cobrador de ônibus, motorista de caminhão e, por fim, taxista. Nair trabalhou como costureira, por conta própria. A difícil condição econômica do casal, não os impediu de contribuir financeiramente em inúmeras campanhas de solidariedade, como por exemplo, no apoio aos refugiados anarquistas durante o final da guerra civil espanhola (1939), organizado pelos anarquistas brasileiros respondendo ao apelo do jornal Tierra y Libertad.
Após a implantação do estado novo em novembro de 1937, o Centro de Cultura Social foi obrigado a fechar sua sede. Os anarquistas que desde o início da ditadura de Getúlio Vargas, vinham disputando o espaço nos sindicatos com os reformistas, perdem seu principal refúgio.
É neste contexto social, que um grupo de anarquistas, em sua maioria vegetarianos e naturistas, vai desenvolver um projeto de construção de uma chácara na cidade de Itaim, no interior do estado de São Paulo, que marcará um período completamente novo na trajetória do anarquismo brasileiro.
O grupo de voluntários anarquistas que comprou o terreno e que principiou o trabalho da construção da Nossa Chácara era composto inicialmente por: Germinal Leuenroth, Nicola D’Albenzio, Virgilio Dall’Oca, Justino Salguero, Salvador Arrebola, Antônio Castro, João Rojo, Benedito Romano, José Oliva Castillo, Roque Branco, Antônio Valverde, Cecílio Dias Lopes e Lucca Gabriel. Sempre acompanhado de seus familiares.
“Quem derrubou a casa velha, trabalhou a terra, construiu e pagou a Nossa Chácara, foi esse grupo inicial. Posteriormente, outros membros do Centro de Cultura Social e um grupo novo de anarquistas que estava surgindo na Vila Bertioga, em São Paulo, também juntaram-se à iniciativa”, nos conta o próprio Virgilio Dall’Oca, acompanhado de sua esposa Nair, provavelmente as únicas pessoas vivas que pertenceram ao grupo pioneiro de Nossa Chácara.
A Sociedade Naturista Amigos da Nossa Chácara, foi registrada em 9 de novembro de 1939, e mesmo após a reabertura do Centro de Cultura Social em 9 de julho de 1945, a Nossa Chácara continuou sendo palco (além de inúmeras confraternizações) de congressos libertários nacionais e reuniões clandestinas, que foram essenciais e possibilitaram a reorganização do movimento anarquista brasileiro, que havia passado pelo difícil período repressivo da ditadura Vargas.
Virgilio Dall’Oca e o grupo pioneiro da Nossa Chácara, além das doações financeiras, prestaram inúmeras contribuições em trabalho pesado e sofrido, que tornaram-se de valor incalculável devido aos benefícios coletivos que proporcionaram. Com a mesma importância, Aída D’Albenzio e Nair Dall’Oca, muitas vezes, foram as principais responsáveis pela alimentação de todos que freqüentavam a Nossa Chácara.
Virgilio também chegou a trabalhar como taxista no Rio de Janeiro durante 4 meses, enquanto sua família continuou em São Paulo. Durante esse período boa parte do tempo, Virgilio ficou hospedado na casa da família Bottino, em Niterói, e fez contato com muitos anarquistas que viviam no Rio de Janeiro. Quando Virgilio retornou, a família fixou residência em São Paulo.
Quando surgiram os jornais “O Libertário” (outubro de 1960) e “Dealbar” (setembro de 1965), apesar de não escrever artigos, Virgilio contribuiu financeiramente para ambos e ainda colaborava na distribuição: “Nos dias 1º de maio e outras datas, a gente soltava os volantes. Eu mesmo entreguei, nos domingos, quando era mais moço e casado também. Eu os enfiava por debaixo das portas lá na avenida Celso Garcia, cada um fazia sua parte porque divulgava a nossa idéia. O nosso jornal era diferente do jornal burguês, o nosso jornal a gente tinha que dar, compreende? Era assim, eu distribuia…. Acredito que graças a essa turma que fazia isso, é que depois apareceu esse pessoal de hoje”, nos conta Virgilio, que também foi um dos cotistas da Editora Mundo Livre do Rio de Janeiro(2), que chegou a publicar os seguintes livros anarquistas: “O Retrato da Ditadura Portuguesa” de Edgar Rodrigues (1962), “A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos” de José Oiticica (2ª Edição – 1963), “Anarquismo – Roteiro de Libertação Social” de Edgard Leuenroth (1963), “O Humanismo Libertário e a Ciência Moderna” de Pedro Kropotkine (1964) e “Erros e Contradições do Marxismo” de Varlan Tcherkesoff (1964).
Após a implantação da ditadura militar no dia 1º de abril de 1964, a Sociedade Naturista Amigos da Nossa Chácara, resolveu vender sua propriedade no Itaim, para comprar um sítio, em Mogi das Cruzes, que seria mais apropriado para a continuação do projeto libertário. A campanha pró-compra do sítio foi iniciada em 28 de agosto e 1965, e foi concluída em 31 de dezembro de 1966. Na lista de pessoas que contribuiram financeiramente para a compra do Nosso Sítio, consta os nomes de Virgilio Dall’Oca e sua filha Clara Dall’Oca(3).
Clara Dall’Oca , além da contribuição financeira, também colaborou com o movimento anarquista, sendo um elemento produtivo na correspondência dos jovens anarquistas de São Paulo, durante o período de 1961 à 1964(4), e principalmente, fazendo parte do “Laboratório de Ensaios” do Centro de Cultura Social, grupo dramático que recebeu comentários eloqüentes do Jornal da Tarde, Diário Popular, City News, A Gazeta, Shopping News, Canal 2 de Televisão, Última Hora, Folha de São Paulo, e outros veículos de publicidade comercial.
Entre as peças que Clara Dall’Oca encenou constam-se “Como Rola Uma Vida” (1966), de Pedro Catallo, que além de Clara Dall’Oca contava com os seguintes atores: Faria Magalhães, Helena Nunes, Ailso Braz Corrêa, Milton Netto Moreno e Cesário Melantonio Neto, com a direção de Cuberos Neto. Salientando que essas peças anarquistas e contestadoras foram representadas durante a ditadura militar, que empregava como prática comum a repressão e a censura, inclusive no meio artístico e teatral.
Em dezembro de 1968, é promulgado o ato institucional nº 5, e o Centro de Cultura Social que já vinha passando por inúmeros problemas internos e financeiros, resolve no início do ano seguinte, encerrar suas atividades, inclusive, por uma questão de segurança. O perigo pressuposto pelos anarquistas paulistas, será corroborado durante os dias 8 e 21 de outubro de 1969, quando o Centro de Estudos Professor José Oiticica (C.E.P.J.O.), dos anarquistas do Rio de Janeiro, foi invadido e assaltado pelos militares da aeronáutica e seus membros foram processados, presos e alguns, inclusive, torturados fisicamente.
Virgilio relembra esses dias difíceis: “Depois da invasão do Centro de Estudos do Rio de Janeiro, os companheiros do Centro de Cultura Social pediram para eu queimar os papéis que podiam comprometer. À noite, eu e a Nair queimamos aos poucos, para não chamar a atenção dos vizinhos: balancetes, listas de sócios contribuintes e outros documentos que possuíam os nomes dos colaboradores em geral”.
Durante esse período, os militantes paulistas se organizaram e arrecadaram dinheiro anonimamente (por precaução), para ajudar nos custos do processo militar instaurado contra os anarquistas do Rio de Janeiro que durou até 1972. Foi uma grande demonstração de solidariedade militante, e a família Dall’Oca estava presente para contribuir com a campanha.
Após ter morado alguns anos em Itanhaem, a família Dall’Oca fixou residência na cidade de Santos, onde vive até hoje.
No dia 10 de dezembro de 2005, Virgilio Dall’Oca participou juntamente com os companheiros Francisco Cuberos, Edgar Rodrigues e Manuel Ramos de um debate no Centro de Cultura Social, onde foi possível tomar conhecimento de um pouco da trajetória militante da família Dall’Oca e legitimar o maior exemplo que eles contribuiram para a prática do anarquismo: a ação direta!
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(1) Lista elaborada por Virgilio e Nair Dall’Oca. Posteriormente, acrescentaram os nomes dos seguintes freqüentadores do Centro de Cultura Social de São Paulo: Antonio Ruiz, Antonio Padilha, Antonio Passio, Cristobal Alba, Miguel Morales, José Loureiro, Vicente Algarate, Roberto Schol, José Estevo Lemos, Hermano Mezzetti, José Morales, Eurico Pinto, Francisco Rodrigues, Helio Barrios, Rafael Vitali, Reinaldo Fellippeli, Fernando Navarro e João Alberich.
(2) Segundo carta de Ideal Peres para Pedro Catallo, datada de 19 de dezembro de 1964, contendo uma lista de contribuintes da Editora Mundo Livre. Arquivo do Centro de Cultura Social de São Paulo, gentilmente cedido por Givanildo Oliveira Avelino.
(3) Balanço com data de 31 de dezembro de 1966, assinado pelo então tesoureiro Jaime Cubero, e publicado integralmente no livro “O Ressurgir do Anarquismo (1962-1980)” de Edgar Rodrigues, Editora Achiamé, Rio de Janeiro, 1993, páginas 91 à 94.
(4) Edgar Rodrigues, obra supracitada, página 66.