LIVROS, CACHUPA E ANARQUISMO

LIVROS, CACHUPA E ANARQUISMO:
Um relato de V Feira do Livro Anarquista de Lisboa – 25 a 27 de maio de 2012

por Rodrigo Rosa
Biblioteca Terra Livre

O evento começou timidamente na sexta-feira à tarde, com poucas bancas e um público ainda reduzido em algumas atividades. Ao longo dos dias mais gente foi chegando e se interessando pelos livros expostos e materiais de várias partes do mundo. No domingo as atividades estavam cheias e o movimento aumentou bastante, resultando que, ao longo dos 3 dias centenas de pessoas passaram pelo pátio do belíssimo edifício da Academia de Belas Artes de Lisboa para comprovar que os anarquistas seguem vivo e ativos à margem do Rio Tejo.

Em termos de expositores, além da Biblioteca Terra Livre (São Paulo), havia postos dos grupos organizadores, o Centro de Cultura Libertária (CCL – Almada) e a Biblioteca e Observatório dos Estragos da Sociedade Globalizada (BOESG). Ainda de Portugal estavam presentes, por exemplo, a AIT-Seção Portuguesa, Livraria Letra Livre, Tertúlia Liberdade, as revistas Coice de Mula e Alambique, Raividições, entre outras distribuidoras e iniciativas. O CIRA Marselha (França) marcou presença também, assim como grupos e publicações espanholas como Vacaciones en Polonia, El Rapto, Libreria Bakakai, Rechazo Distro e Eztabaida Gune Antiautoritarioa. A Agência de Notícias Anarquistas (ANA) estava representada por uma companheira de Lisboa que fez um ótima apresentação sobre a situação na Grécia. Havia companheiros da Inglaterra, Itália, Holanda…

Não foi possível acompanhar todas atividades pois era necessário cuidar da banca da Biblioteca, adquirir mais materiais para o nosso acervo e estabelecer contatos com os grupos que estavam presentes, uma oportunidade única de conhecer pessoalmente projetos que estão longe, geograficamente, de nós, mas muitas vezes próximos nos objetivos e práticas. Por isso relatamos apenas algumas das palestras, nas quais pudemos estar presentes.

Todos que assistiram a interessante apresentação sobre autogestão feita por uma companheira romena que vive em Portugal teve a chance de refletir sobre questões conceituais e, também, sobre duas experiências históricas ocorridas em diferentes contextos: as coletivizações durante a Revolução Espanhola e as tomadas de fábricas na Argentina no início deste século. Também foi exibido um documentário muito interessante sobre o movimento argentino:

http://www.youtube.com/watch?v=3Y8qdvLURRs

Nele aparece a experiência do MTD La Matanza que constituíram um espaço num bairro pobre e periférico que tivemos o prazer de visitar anos atrás. Lá houve uma oficina de costura, uma padaria e uma escola.

A palestra foi uma ótima introdução ao tema, muito bem construída, que suscitou um rico debate entre o público presente sobre os rumos e possibilidades da autogestão econômica, política e social. Foi uma das melhores atividades da Feira.

Houve, ao longo dois dias, diversas apresentações de livros e periódicos: o número especial da Alambique sobre o povo cigano; o Boletim Anarco-Sindicalista da AIT, que mantém acesa a chama do anarquismo no seio do movimento operário; a belíssima e intrigante revista Vacaciones en Polonia; a tradução de um artigo de Alex Trocchi que analisa os movimentos na Grécia de um ponto de vista polêmico que gerou muito debate…

Nós, da Biblioteca, apresentamos o livro Escritos sobre Educação e Geografia com textos de Reclus e Kropotkin para um público interessado em conhecer as atividades que tocamos em São Paulo. Resultado: vendemos muitos livros, inclusive da nossa co-edição com a editora Negras Tormentas sobre a vida de Reclus. Também doamos um exemplar de cada para as bibliotecas do CCL e da BOESG para aqueles que querem ter acesso ao livro e não querem ou não podem comprar os livros.

O público das palestras e debates variou tanto de perfil, como em números, que girou em torno de uma dezena e cerca de 100 pessoas em alguns momentos. Algumas atividades aconteceram no pátio da faculdade sob um sol que não dava trégua. Outras no auditório, em salas de aula ou nas escadarias do belo e antigo edifício histórico no bairro do Chiado.

Aconteceu uma festa no sábado à noite para relaxarmos e confraternizarmos um pouco. Bate-papo, novas amizades, projetos futuros e bom astral. Mas vale destacar o menu da festa. Foi servido um prato típico africano, a Cachupa, que é uma espécie de feijoada com mais ingredientes (vegetais, já que era uma versão vegana da receita original). É bem diferente e realmente uma delícia.

Entre uma cachupa e uma sangria, uma cerveja e muitas rodas de amigos e companheiros rolou um show de hip hop luso, cantado em português e em crioulo cabo-verdiano, com letras bem politizadas. As apresentações de Xoto (Setúbal), Boss (Mentis Afro) e MTB Family foram bem legais. Vale a pena sacar como anda a cena rap em Portugal.

Nesse ambiente, com um espaço à céu aberto em frente ao Bar Buda, foi possível conversar mais informalmente com muita gente, conhecer um pouco mais a cidade, os hábitos e costumes dos portugueses.

No domingo. dia 27/05, o Cineclube Terra Livre apresentou, para um grande e compenetrado público, os filmes da Cooperativa Cinema do Povo que produziu filmes com temática anarquista de maneira autogestionária na década de 1910 na França. Falamos sobre o grupo, sua história, principais membros e objetivos, bem como comentamos os roteiros e curiosidades sobre cada filme.

Um debate sobre decrescimento encerrou com chave de ouro a extensa e interessante programação da Feira do Livro Anarquista de Lisboa. Estava cheio de gente, sendo provavelmente a atividade que mais atraiu público. Talvez por ocasião da suposta “crise” que vive a Europa (que não é crise, é capitalismo!) o tema da economia é um dos mais discutidos na esquerda e movimentos anticapitalistas em geral.

Porém, do nosso ponto de vista, um dos momentos mais importantes e que muito nos interessou foi a apresentação do CCL e da BOESG. Ambos contaram sua história e trajetória, bem como objetivos e projetos atuais. Incrível como o trabalho dos companheiros de CCL se assemelha ao nosso da Biblioteca Terra Livre. Com a diferença que o Centro tem um espaço grande o suficiente para manutenção do arquivo, biblioteca, livraria e pequenas reuniões e que foi fundado em 1974, tendo ainda a presença e apoio de militantes antigos que passaram suas experiências e convicção no ideal para os jovens que se aproximaram e que hoje tocam o CCL com muita paixão e seriedade. Muitas de suas atividades são similares às nossas (centro de documentação, cineclube, atividades de difusão do anarquismo, etc). Além disso, sentimos muita afinidade com os companheiros e isso é parte essencial para se estabelecer confiança e amizade, além, é claro, para construir trabalhos conjuntos e colaborações futuras.

A BOESG apresentou seu trabalho que chama atenção pela inovação e criatividade, além do gosto pelo trabalho junto a um acervo que não é anarquista mas que carrega um potencial justamente por ser organizado e mantido com o espírito libertário de militantes já, digamos, históricos e outros mais jovens.

Esperamos reencontrar os dois grupos em breve na Feira Anarquista de São Paulo. Seria um enorme prazer recebê-los em nossa cidade e poder compartilhar um pouco mais dessa experiência e ânimo de luta que encontramos e vivenciamos em Lisboa nesses dias.

Devo concluir afirmando que o CCL e a BOESG (ou melhor ainda, as pessoas que compõem esses espaços anarquistas, cada um desses maravilhosos companheiros) estão de parabéns pela excelente organização e compromisso com o evento. Dispensaram atenção aos grupos e convidados sem descuidar do andamento das atividades; proporcionaram toda infraestrutura necessária para à Feira e souberam lidar com os imprevistos, que sempre acontecem. Sigam nesse caminho, que a Feira em Lisboa tende somente a crescer e melhorar a cada ano.

Os companheiros anarquistas de Lisboa estão de parabéns! Esses três dias de intenso trabalho e atividades libertárias e autogestionárias foram uma experiência fascinante. Como dizem por lá: foi fixe!* Sim, a Feira foi “fixe” e muito mais. Que venha a VI Feira do Livro Anarquista de Lisboa!

Até breve, companheiros!

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* Expressão corrente usada em Lisboa que pode ser entendida como sinônimo de legal, muito bom, massa ou brutal no Brasil.

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Álbum de fotos:

FOTOS por Rodrigo Rosa e Tania Strizu

Saiba mais:

* FEIRA DO LIVRO ANARQUISTA LISBOA: http://feiradolivroanarquista.blogspot.pt/

* CCL: http://culturalibertaria.blogspot.pt/

* BOESG: http://boesg.blogspot.pt/

* GRUPOS E PROJETOS PARTICIPANTES: http://feiradolivroanarquista.blogspot.pt/p/bancas-confirmadas.html

* HIP HOP EM PORTUGAL (que tocaram na festa):
XOTO (Setúbal): http://www.youtube.com/watch?v=gmliDniCMFs&feature=related
BOSS (cantado em crioulo): http://www.youtube.com/watch?v=-GjJpnuqWOI
MTB Family (cantado em crioulo) – http://www.youtube.com/watch?v=xpEXnq1IZWU

* CACHUPA: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cachupa

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