29M: A LA HUELGA, COMPAÑERO!

Um relato da Greve Geral em Barcelona

por Rodrigo Rosa
Biblioteca Terra Livre

Logo que cheguei em Barcelona fiquei sabendo que ia rolar uma greve geral na Espanha dia 29 de março. Seria a 8ª greve geral depois do fim da ditadura. No começo a conversa estava um pouco tímida e só alguns sindicatos e movimentos autônomos haviam-na convocado. Mas ao longo do tempo os dois maiores sindicatos (Comisiones Obreras – CCOO e UGT) se viram obrigados a convocar a greve por uma série de motivos. No final houve uma grande mobilização por parte de muitos movimentos e setores da esquerda espanhola, desde os mais moderados até os mais combativos.

O motivo principal foi a “Reforma Laboral” que o governo implementou. Trata-se de uma reforma trabalhista que corta muitos direitos dos trabalhadores, piora a situação dos empregados, legaliza a tal flexibilização (que na verdade é a desregularização da legislação trabalhista), torna os temporários e precários a forma principal de relação de trabalho. Ela também facilita a dispensa imotivada ou mesmo por motivo de doença. Há um rol enorme de detalhes sobre a reforma que são de complexa compreensão. O governo argumenta que assim geraria mais emprego e seria um movimento importante para que o país saia da “crise”. Será mesmo?

A REFORMA LABORAL

Diante de tanta celeuma sobre o assunto tentei me inteirar do que estava se passando e fui numa palestra realizada por um advogado trabalhista organizada pela Assemblea de Barri Poble Sec, o bairro em que estou morando. Trata-se de um movimento de assembleias ligado ao 15M. O palestrante explicou muito bem (se eu entendi tudo, pois falou em catalão) como a reforma afeta todos trabalhadores e como é uma grande falácia o argumento em relação à geração de emprego. Vou tentar resumir um pouco os principais pontos da reforma (amparado pela palestra e alguns materiais produzidos pela CGT – Confederación General del Trabajo – e pela CNT – Confederación Nacional de Trabajo – ambos sindicatos de tradição anarquista):

– Há mudanças no contrato de pessoas “em formação” e para “aprendizes”, pois antes o limite era de 25 anos, passando agora para 30, e permitindo que a mesma pessoa seja contratada diversas vezes nessa modalidade (que já é uma forma de precarização do trabalho), aumentando sua duração para 3 anos.

– Cria-se o contrato para “empreendedores” dando incentivos para os empresários que contratem nessa modalidade. Muita gente já trabalha aqui como “autônomo”, ou seja, que abriram sua própria empresa para “prestar serviço” e para os patrões não pagarem os direitos de um trabalhador contratado. Porém, a reforma estabelece um “período probatório” de um ano para estes “empreendedores” que podem “não ter seu contrato renovado” sem nenhuma indenização por parte do empresariado.

– Facilita a mobilidade geográfica e funcional do trabalhador ao desejo do patrão estabelecendo um sistema de “grupos profissionais” (e não mais de “categorias profissionais”), que é mais amplo e permite que o trabalhador seja manejado de posto ou local de trabalho sem intervenção do sindicato ou do governo.

– A reforma facilita a dispensa imotivada, ou seja, reduz o valor da indenização e o prazo de pagamento que os empresários devem ao trabalhador em caso de demissão sem justa causa. Hoje o trabalhador receberia 45 dias por ano de trabalho com limite de 42 mensalidades. Após as mudanças propostas passará a receber 33 dias por ano de trabalho e um limite de 24 mensalidades. Essa mudança será aplicada não só aos novos contratos mas a todos contratos independente do tempo de serviço do trabalhador.

– Facilita a demissão por absenteísmo, mesmo que por faltas justificadas (doenças, acidentes de trabalho, participação em greves).

– Há uma redução de 60% nos custos da “demissão objetiva” ou demissão coletiva, incluindo aí do setor público, e inclui-se junto às causas técnicas, organizativas e de produção um motivo econômico que prevê nessa cláusula demissões legais se a empresa apresentar redução de lucros ou vendas durante três trimestres consecutivos.

– Redução da “licença lactante” que antes era para homens e mulheres, agora sendo somente para um dos progenitores.

– No âmbito coletivo a reforma elimina a força da negociação coletiva por parte dos sindicatos, de duas maneiras: uma delas ao dar ao empresariado a decisão total sobre as condições salariais e condições de trabalho (jornada, turnos, compensações, mobilidade, etc); a outra através da eliminação da ultra-atividade dos Contratos ou Acordos Coletivos de Trabalho, fixando um prazo máximo de 24 meses, ou seja, se não houver um novo acordo o anterior deixa de ser vigente e o empresário decidirá as novas formas de contratação, salário, etc. Passa-se também, assim, a uma primazia da negociação individual e por empresa, ao invés da negociação setorial, regional ou nacional pelos sindicatos, em relação aos salários, produtividade, horas extras, horários, etc. Também permite não aplicar os acordos se há uma redução de lucros ou vendas por 2 trimestres consecutivos. Assim os empresários passam por cima dos Contratos Coletivos, eliminando o sindicato como instituição de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores.

– Se os trabalhadores e empresários não chegarem ao um acordo em cada empresa, passa-se, após um tempo, a uma arbitragem obrigatória do governo.

Na palestra o advogado fez um comentário que me chamou a atenção. Disse que agora na Espanha os trabalhadores e sindicatos estão buscando formas (legais) de barrar essa reforma e que acham difícil utilizar o argumento dessa ser uma medida inconstitucional. Ele opina que pode acontecer o que nunca achou que fosse possível: apelar para as convenções da OIT como forma de tentar pressionar o governo e demostrar que a reforma vai no caminho contrário das orientações dos órgãos internacionais (que diga-se de passagem, são tripartites, incluem governos, trabalhadores e empresários!) quanto aos direitos de organização sindical e dos trabalhadores. Ele falou com tanto espanto dessa possibilidade, pois por aqui, em geral, as convenções da OIT são consideradas normas que estabelecem o mínimo do mínimo de direitos e que é até ridículo num país europeu ter que se apegar a essas orientações para garantir direitos trabalhistas e de organização sindical. Bem, na hora pensei em como no Brasil nós, trabalhadores e sindicatos, lutamos bravamente para conseguir que o governo assine tal ou qual convenção da OIT e nos garanta um mínimo de direitos… De fato, há muitas diferenças (extremas) entre os direitos sociais e trabalhistas daqui e do Brasil. Com esses recortes propostos pelo governo espanhol há uma ameaça de perda de direitos que nós, terceiro-mundistas e ex-colônias do sul, nunca sequer sonhamos em conquistar ou ainda estamos longe de alcançar.

Um detalhe curioso. Quando soube que essa reforma é fruto de um Decreto Real-Lei, expedido pelo Rei em pessoa e que está acima de qualquer contestação judicial ou parlamentar caiu minha ficha: a Espanha é uma monarquia! Aí que me dei conta que vim morar numa país que tem um Rei!?!? Isso é algo realmente bizarro. Inclusive o tema da monarquia aqui é delicado, pois há críticas de que a transição pós-franquista foi para manter os mesmos grupos no poder e o tal “Rei” teve papel central nesse processo. Inclusive, soube que uma banda punk foi condenada à multa ou prisão por escrever uma letra denunciando e atacando o Rei.

Concluindo essa seção informativa: essa reforma na verdade não vai ajudar em nada a Espanha a sair da crise. Mais uma vez  o Estado e o empresariado estão de fato fazendo com que o povo pague pela crise que eles mesmos geraram! E dessa vez o ataque ao povo é grave e requer uma resposta tão poderosa quanto a violência com que os poderosos atacam o povo com essas medidas cruéis políticas e econômicas.

RUMO À GREVE GERAL

Depois dessa breve explicação sobre a reforma pode-se entender melhor o que levou também os sindicatos “pelegos” majoritários (CCOO e UGT) a aderirem à greve. Finalmente, sacaram que a reforma mexe também nas relações sindicais e torna mais complicada a mobilização e luta. Isso ameaça diretamente os trabalhadores, mas afeta também a estrutura sindical e as burocracias sindicais partidárias (PSOE) que neles estão incrustadas. Mas a vida aqui segue bem à margem das cúpulas dirigentes do país e nesse contexto vários grupos e sindicatos anarquistas, independentes e autônomos se mobilizaram para a greve. Havia muitos cartazes pelas ruas (muitos foram arrancados no dia seguinte), tanto da CNT e CGT (anarco-sindicalistas), como de sindicatos minoritários que são mais abertos e assembleários. Havia chamados de grupos políticos que não conheço (imagino que são marxistas de uma corrente bizarra, mas muito minoritários) e da galera geração “indignados” que se reúne em Assembleas distribuídas pela cidade (inclusive estou participando aqui no meu bairro, Poble Sec). Há também um grupo chamado “Coordenació Laboral i Suport Mutu”, ligado diretamente aos 15M.

Uns dias antes do 29M houve uma sessão do cineclube da Assemblea aqui no bairro com filmes franceses sobre greve nos anos 1950 e 1960. Depois rolou um debate com um sindicalista de Comisiones de Base e um cara que está trabalhando na organização da “Huelga del 99%”, um movimento mundial, uma “greve mundial” que está sendo convocada para o dia 15 de maio. O debate foi meio bizarro, pois girou em torno da ideia de que a greve geral é só de trabalhadores e que o capitalismo mudou, surgiu o sistema financeiro, a pulverização dos trabalhadores, enfim, a “perda da cetralidade do trabalho”. E o pessoal (tinha muitos jovens 15M e uns poucos velhos sindicalistas ex-CCOO, CGT ou de Base) ficava rodando e rodando para tentar propor algo “além da greve geral”… Aí o cara da greve dos 99% propôs: fazer como os piqueteiros da Argentina ou caminhoneiros da Itália. Ele acha que é necessário criar outras formas para “parar o capitalismo”, parar os fluxos de capital, etc, etc. Concretamente falou de bloqueios dos transportes e grandes shoppings, boicote e não consumo, bloqueios por internet e ocupações de prédios e espaços públicos….. Oras bolas, para mim a greve geral é isso tudo, pô! Só pensava na greve de 1917 em São Paulo e como houve a união entre a luta no trabalho e a luta social dos inquilinos e moradores de cortiços. Houve corte de transportes, ocupações, saques, boicotes, etc etc etc. Uma greve geral deve ter um caráter de transformação social radical, ou como diriam os antigos anarquistas, a greve geral deve levar à revolução social.

É claro que entendo que as pessoas se sintam distantes dos sindicatos que estão partidarizados (PSOE que já foi governo e é um partido “socialista” forte aqui) e burocratizados, se dedicando às negociações e reformas pontuais, fazendo o bom e velho papel de amaciar a sela para os ricos montarem em cima do burro (ou melhor, do povo trabalhador).  Mas daí achar que tem que inventar tudo novo quando na verdade existem experiências históricas que podem ajudar (anarco-sindicalismo, sindicalismo revolucionário e até os recentes movimentos anti-capitalistas e 15M).

No final foi informado sobre um piquete unitário ao meio dia de 29 de março e que depois cada grupo político faria suas manifestações e passeatas em separado. Já na véspera da greve, à noite, rolou um “panelaço” da Assemblea aqui no bairro para convocar o pessoal para a greve…. Fechamos a avenida principal e demos uma boa volta pela região, antecipando um clima de que ia ser um grande movimento no dia seguinte…

MILHARES DE PESSOAS EM AÇÃO DIRETA NAS RUAS

No caminho de casa até o piquete passei pelos bairros de Poble Sec, Sant Antoni e Raval e o cenário era de expectativa e tensão para uns e de normalidade para outros. Os comércios estavam 25% fechados (uma minoria anunciava que fechava por aderir à greve); 25% funcionava com as portas abertas pela metade e tive a impressão de que metade abriu normalmente. É claro que essas regiões são basicamente habitadas por imigrantes chineses, turcos, paquistaneses, peruanos, dominicanos, etc. A mobilização é difícil pois muitos têm seu pequeno comércio ou seu trabalho precário, totalmente desprotegidos em relação aos direitos trabalhistas. Muitos estão em condições ilegais. Outros vivem melhor aqui do que viviam em seus países…. É uma questão (política, social, econômica e cultural) muito complexa. Para se ter ideia, a maioria dos materiais de convocatória  era escrita em catalão, uma parte em castelhano. Só vi um cartaz que convocava a greve em uns 10 diferentes idiomas… Esse é uma tema que merece ser explorado se os movimentos pretendem crescer por aqui.

Por fim cheguei à Praça Catalunha um pouco antes do meio dia e já me deparei com uma marcha anarquista e de militantes da CNT nas Ramblas, calçadão só para turistas em Barcelona. Me juntei a eles e ao passar pelas ruas, dando volta na Praça Catalunha muitos comércios fecharam (ou foram “fechados”). O caso de uma grande galeria/shopping, que tinha loja da FNAC e outras boutiques, foi alvo de uma ação direta que resultou no fim do expediente para os trabalhadores de lá. Ao mesmo tempo convergiam várias passeatas anarquistas (CGT, CNT, Assembleas, Coletivos, Ocupas, etc) para a praça. Nesse momento começou um piquete em frente ao grande (mas bota grande nisso) magazine El Corte Inglés (seria um tipo de Extra ou Casas Bahia no Brasil), um gigantesco centro de compras que tem de tudo que o consumidor ávido deseja. Na porta da loja estavam plantados dois furgões da polícia e uns meganhas armados para “garantir o direito de ir e vir, de consumo e de trabalho” no Corte Inglés. Aí se podia notar como o policial é mesmo o cão de guarda do capitalista, desde sempre e até hoje. Houve uma certa tensão, tentativas de atacar a loja mas não rolou. Por fim decidiu-se ficar na porta xingando a polícia e aplaudindo e humilhando os idiotas consumidores que saiam da loja protegidos pelas armas. Isso durou até sei lá que horas, pois de tarde ainda estavam lá de plantão na porta.

A marcha seguiu pelo Passeio de Gracia em direção ao ponto onde haveria uma nova concentração. Caminhamos ao som da canção A la Huelga (http://www.youtube.com/watch?v=4qwf11IZRv4) num clima divertido e tranquilo. Essa sim é uma rua fina e chique, cheia de bancos e grandes lojas da moda européia, como se fosse um mix de avenida Paulista e Oscar Freire em São Paulo. Nesse momento as ruas já estavam tomadas por milhares de pessoas que carregavam bandeiras e bradavam gritos de ordem contra a reforma laboral, contra o capitalismo e pela “vaga general”. Notava-se que havia grandes grupos como os anarco-sindicalistas da CGT e CNT com bandeiras e caminhonete de som, mas também pequenos grupos de afinidade e estudantis, bem como diferentes Assembleas de vários bairros.

Como os libertários não acreditam nas propostas de reforma ou de negociação das leis trabalhistas, o objetivo unânime era, acredito eu, barrar o Decreto-Real e demonstrar para o governo, para o capital e para a sociedade que não há solução negociada para a crise e que a saída é acabar com o capitalismo e lutar pela auto-organização e a auto-gestão. Pela ação direta é que os trabalhadores e a população em geral pode mudar alguma coisa. Não pelas negociações pontuais. E unindo várias estratégias e táticas de luta e manifestação os anarquistas fizeram a maior passeata de orientação libertária que eu já vi. Os grupos anti-capitalistas (aqui chamados pela direita e pela imprensa burguesa de “anti-sistema”) tiveram forte atuação decorando a cidade com vitrines rompidas e paredes carregadas de belas frases de incentivo à luta e de denúncia contra as empresas e o capitalismo.

Houve um ataque à Bolsa de Barcelona que teve seus vidros destroçados e uma fogueira queimando em sua porta. Nesse momento surgiram dezenas de vans da polícia (“Mossos de Esquadra”, como se fosse a Tropa de Choque no Brasil) de onde saiam centenas de “robocops” armados com escopetas de balas de borracha poderosíssimas (aqui trata-se de uma bola de chumbo revestida de borracha quase do tamanho de uma bola de tênis) para dispersar a multidão. Mas a massa seguiu caminhando até o cruzamento com uma outra grande avenida.

Quando havia milhares de pessoas nas ruas, já nos Jardins de Gracia, ponto de concentração da marcha, a polícia apareceu novamente com mais furgões e mais meganhas atacando as pessoas – homens, mulheres, crianças, velhos – com cassetetes e bala de borracha. Instaurou-se o pânico e uma correria generalizada. As pessoas correram para as ruas transversais e assim deu-se início aos “conflitos” nas ruas de Barcelona. Algumas ruas foram bloqueadas com barricadas feitas de pedras, sacos de lixo, grades de construções, barras de metal e bloqueios de trânsitos e alguns containers de lixo foram queimados. A cidade cheirava a fumaça e havia bombeiros, ambulâncias e policiais por todos os lados.

Fui atrás dos sinais de fumaça para ver o que acontecia e me dei conta de que havia muitos focos de fogo pelas ruas. Enquanto isso a polícia desfilava pelas ruas em alta velocidade com seus veículos, com as sirenes ligadas e de tempos em tempos parava num local e avançava sobre as pessoas numa nítida ação para aterrorizar os grevistas e manifestantes. Numa dessas investidas decidi fingir que era um cidadão comum, um transeunte desavisado, e não corri, segui caminhando. Fechei os olhos, por via das dúvidas. O macaco passou do meu lado, atacou um estudante à minha frente e um repórter atrás de mim que teve um osso da perna, provavelmente, quebrado. Nos juntamos e carregamos o repórter para longe dos conflitos.

De repente, do meio dos manifestantes saíram uns 4 ou 5 caras vestidos à paisana e arrastavam um moleque pelo chão tentando levá-lo para o camburão. As pessoas em volta perceberam e foram para cima dos policiais infiltrados. A solidariedade e a força dos grevistas conseguiu libertar o rapaz. A massa furiosa com tamanha covardia passou a perseguir os infiltrados que quase foram apanhados e por pouco não viraram picadinho de coxinha nas mãos da população revoltada. Isso me assustou muito. Pude ver de perto como o Estado age de maneira terrorista e covarde para prender jovens que estão demonstrando sua revolta com a situação em que vivemos, numa manifestação legal e de direito como é qualquer greve. O pior é que os “secretas” se vestiam como manifestantes… É preciso estar atento sempre. Veja aqui o exato momento em que são descobertos e fogem: http://www.youtube.com/watch?v=V7w9nSQBJ6Y&feature=related

Como eu estava sozinho na manifestação, não estava em contato direto com nenhum grupo de afinidade nem tinha nenhuma “base” para recorrer resolvi me afastar e me preservar, pois se fosse preso, além de ser imigrante, talvez tivesse maiores dificuldades em obter apoio e atenção de advogados.

A repressão seguiu a tarde toda, com policiais caçando as pessoas nas ruas e detendo sem justificativa ou algum motivo. No final, conseguiram dispersar a marcha massiva autônoma e libertária. Mas ainda não havia acabado. Tinha um outro ato convocado para as seis da tarde na mesma praça Catalunha.

QUEIME, BARCELONA, QUEIME!

Voltei para Poble Sec e lá me juntei à marcha convocada pela Assemblea que saiu em direção ao novo piquete. Nessa passeata havia muitas famílias, pais e mães com suas crianças, num movimento alegre e bem humorado, com gritos de protesto e um clima mais ameno, de confraternização e felicidade por estar tomando as ruas numa grande greve geral que havia já surpreendido pela enorme adesão desde as primeiras horas da manhã.

Chegando ao ponto central da cidade novamente muitas outras marchas se juntavam. A cada esquina mais gente se juntava e tomava as ruas de Barcelona, fluindo um formigueiro de gente para o mesmo local e com o mesmo objetivo: parar a reforma laboral. Era tanta gente, mas tanta gente, que o grupo em que eu estava não conseguiu avençar muito além dos primeiros metros de asfalto da praça. O pessoal de Poble Sec fez um castelo humano em plena avenida. Havia muitos grupos e intervenções diferentes, teatrais, musicais, panfletárias, divertidas. Havia milhares de pessoas. Nunca havia visto tanta gente nas ruas numa manifestação política.

Eu estava justo entre os 15M de Poble Sec e a caminhonete da CGT/CNT onde rolava muitas músicas anarquistas e gritos de protesto. Não era possível ver direito a dimensão da manifestação pois havia gente em todas ruas transversais e não era possível se movimentar muito. Sei que de repente começam barulhos vindos do outro lado da praça, próximo ao Corte Inglés e novamente o céu se enche de fumaça. Algo estava acontecendo, mas eu não tinha como ver nem saber. Nesse momento uma parte dos grevistas se retirou e marchou em direção à outra praça próxima. Em seguida apareceu a polícia e estabeleceu-se novamente um conflito nas ruas. Porém, mesmo com a iminência de violência policial, muitos tiros e fogo logo alguns metros à frente as pessoas não se abalavam. Continuavam em piquete na praça. Imagino que um grupo devia estar à frente resistindo (não sei como) à repressão e impedindo o avanço da polícia. Isso durou cerca de uma hora, quando, depois de um longo tempo, os “mossos da esquadra” conseguem avançar um pouco e as pessoas começam a dispersar-se pelas ruas e praças ao redor. O conflito se agravava e a ação dos grevistas se resumia a resistir às investidas policiais brutais com pedras, paus e barricadas de lixeiras em chamas. A certa altura uma loja da rede multinacional Starbucks é atacada e acaba totalmente queimada, bem como alguns bancos e lojas de grandes marcas. Os  “robocops” seguiam atirando contra a multidão com balas de borracha (muitas vezes à queima-roupa) e avançando lentamente desobstruindo as ruas. Até que num certo momento os furgões avançaram e encurralaram centenas de pessoas numa rua, desferindo tiros e golpes indistintamente, gerando pânico e feridas em muitos grevistas e famílias que se solidarizavam com a causa dos trabalhadores.

Nesse momento percebi que a situação estava ficando grave e eu não estava preparado para resistir aos golpes ou às bombas de gás lacrimogênio. Vi que a polícia estava tornando-se cada vez mais violenta e atacava e prendia pessoas indistintamente. Voltei para casa, mas não sem antes passar por dezenas de pontos de incêndio pelos bairros e muita gente ainda na rua. As dez da noite tentei obter notícias e sintonizei a Agência 29, uma iniciativa de várias rádios livres autogeridas de realizar a cobertura ao vivo da jornada de greve. Assim me inteirei das dezenas de prisões ao longo do dia e de que a manifestação seguiu madrugada adentro.

No dia seguinte passei pelas mesmas ruas e parte das pixações estavam sendo apagadas e vitrines já estavam sendo consertadas. À tarde já não se notava que ali havia ocorrido cenas dramáticas há apenas algumas horas. Os turistas e consumidores habitués de Barcelona caminhavam tranquilamente em busca de seu conforto psicológico e material nas ascéticas lojas da moda… E assim, aparentemente, aconteceu o triste retorno à normalidade.

A GREVE EM NÚMEROS

Os números da jornada de “vaga general” na Catalunha foram:

  • 82% dos assalariados aderiram, cerca de 1,88 milhões de pessoas, segundo os sindicatos majoritários.
  • 95% de adesão na indústria; 70% nos serviços públicos; e serviços mínimos nos setores essenciais.
  • Nos transportes: o porto esteve totalmente fechado; 129 vôos foram cancelado; 70% dos taxistas aderiram; e 95% dos transportes urbanos (trem, metrô e ônibus).
  • Houve adesão de 70% entre os trabalhadores em meios de comunicação (rádio, TV e jornal).
  • 100 piquetes e mais 2.400 comitês de greve.
  • Em relação às manifestações os números estimados foram: 12.000 pessoas (há quem diga 20.000) na passeata libertária e autônoma as 16:30h; 20.000 pessoas nas praça Catalunha as 18h e cerca de 800.000 – segundo os sindicatos – na manifestação no Passeio de Gracia (a polícia contabilizou 80.000).
  • Mais de 200 containers de lixo queimados.
  • 79 pessoas detidas.
  • 30 atendimentos hospitalares.
  • 7 feridos graves: braço quebrado, costelas quebradas, perfuração de pulmão e lesões oculares graves (com risco de perda de visão) causados por balas de borracha à queima-roupa.
  • 4 jovens permanecem em “prisão preventiva” sob acusação de “bloquear o trânsito”, promover “desordem pública”, “destruição do patrimônio”, “pixações” e, por mais bizarro que pareça, “pertencer a uma organização terrorista” (!!!????).

A REAÇÃO ESTATAL, CAPITALISTA E MIDIÁTICA ou TERRORISMO DE ESTADO

Existem dois pontos de vista divergentes em relação à avaliação do 29M na Espanha: um por parte do povo, dos sindicatos e organizações autônomas, ou seja, na ótica de seus protagonistas; e outro por parte dos reacionários (sim, aqui há muitos deles, partidos de direita, católicos fervorosos, viúvas de Franco, etc).

A imprensa de direita, em especial La Vanguardia, estampava imagens dos incêndios de latões de lixo e pedia punição aos “terroristas”. Os meios de comunicação faziam eco à versão de que havia grupos “violentos” nas manifestações que causaram terror na população e destruíram a propriedade. Pediam mudanças na legislação penal e penas mais duras para esse tipo de “vandalismo urbano” e “práticas de guerrilha urbana”. Porém já existem penas suficientemente duras para punir “distúrbios”, “depredação” e “vandalismo” urbano que já é aplicada, por exemplo, contra torcidas de futebol. E se tratou, quando muito, disso e não de “atos terroristas”.

As autoridades catalãs (prefeitura, governo e secretária de segurança) também deram declarações no sentido de “punir esses terroristas” e a juíza responsável pelo caso resolveu, após tomar as declarações e libertar grande parte dos grevistas, manter 4 sob “prisão preventiva” como medida cautelar para evitar conflitos durante o encontro do Banco Central Europeu que ocorrerá em Barcelona no início de maio. Uma decisão ilegal e sem base jurídica plausível. Mas o curioso é que nem os próprios movimentos sociais daqui sabiam do encontro do BCE. E não sabiam que eles  mesmos estariam organizando alguma ação nessa data…. Seria cômica se não fosse trágica a atuação da imprensa e governo nesse tema.

O resultado é que seguem presos os 4 jovens e as mobilizações para a sua libertação. Seguem as denúncias de abusos policiais e da criminalização do movimento grevista. Já ocorreram algumas manifestações nesse sentido nos últimos dias. Uma delas acabou com a prisão de uma pessoa em cadeira de rodas (!) que participava da solidariedade. Começou também a ofensiva governamental e da direita para implantar uma lei anti-terrorista na Espanha, como já existe no Reino Unido e na França, que na verdade serve para oprimir e criminalizar ainda mais os pobres, imigrantes e movimentos sociais organizados.

Agora, uma dúvida que me deixa inquieto: desde quando queimar containers de lixo é um ato terrorista?!?! Realmente é uma enorme ameaça à liberdade, à democracia e ao sistema capitalista botar fogo em meia dúzia de latões cheios de lixo?!?! É até ridículo o argumento da direita de que esses “distúrbios violentos” (que se resumem a ataques à propriedade de grandes bancos e empresas – que ainda lucram com isso, pois tudo é pago pelo seguro) são atos de “guerrilha urbana”. Qualquer pessoa mais sensata compreende a estratégia simbólica e espetacular desses atos e que esses “grupos anti-sistema” não causam “terror” na população, pois têm seus alvos muito claros. Não atacam pessoas, nem colocam em risco a integridade física ou a vida de ninguém. Por mais idiota que seja esse raciocínio os poderosos utilizam-no para recrudescer ainda mais as leis e oprimir ainda mais o povo espanhol que já sofre as consequências da tal “crise” econômica em seu dia a dia.

Os verdadeiros ataques terroristas foram os da polícia (esses sim causam pânico e terror nas pessoas, tanto manifestantes como transeuntes), com sua brutal violência desproporcional, armada, visando ferir as pessoas. Há 20 anos que a polícia espanhola não usava gás lacrimogênio para dispersar um protesto! Apesar da regra existente de somente atirar balas de borracha para o chão (que ricocheteia em direção às pessoas) e a uma distância mínima de 50 metros, os “mossos” atiravam em linha reta, na altura do corpo e do rosto dos grevistas (por isso ferimentos graves nos olhos e costelas) à curtas distâncias, numa verdadeiro ato ilegal. Veja bem de perto a prova disso aqui: http://www.youtube.com/watch?NR=1&feature=endscreen&v=Wg7ogCvgW6A

Além disso há o terror que causam ao infiltrar na manifestação agentes provocadores (que podem ter produzido parte dos distúrbios e depredações) e agentes à paisana, ou melhor, vestidos de “violentos anti-sistema”, que covardemente detêm pessoas em meio ao piquete ou passeata, como mostra o seguinte vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=Nsfnp9Cybbo

Esses sim são verdadeiros atos terroristas, de um brutal terrorismo de Estado.

AVALIAÇÃO E PERSPECTIVAS DAS LUTAS

Apesar das campanhas de desmobilização e propaganda direitista dos poderosos a população espanhola, como sempre os “de baixo”, mostraram sua força e desafiaram as leis e o conformismo ditados pelos governos europeus e mercados internacionais. A jornada de greve foi uma indiscutível vitória tanto pela sua massiva adesão – impactando fortemente a economia e levando multidões às ruas – quanto pela ampla frente de movimentos e organizações que dela participaram, criando expectativas positivas para mobilizações futuras. O povo espanhol deu uma resposta forte à reforma laboral proposta ao governo e, ao mesmo tempo, demonstrou seu descontentamento com o aparente consenso neoliberal e capitalista que tenta a todo custo diminuir os direitos sociais e arrochar a economia, fazendo com que os mais pobres paguem pelas inconsequências e avidez pelo lucro dos ricos. Essa resposta vinda das ruas, multitudinária, é resultado de uma revolta represada há anos, uma indignação quanto às enormes medidas anti-sociais tomadas pelo governo nos últimos tempos, um grito contra os resgates financeiros milionários de bancos falidos com dinheiro público, uma ofensiva contra a criminalização dos movimentos sociais e uma voz desesperada diante do empobrecimento, desemprego e desalojos de muitas famílias.

Mas o grande ganho político desse 29M foi, sem dúvida, os novos protagonistas sociais em cena e as novas formas de auto-organização dos movimentos sociais. Aos piquetes – não mais somente sindicais, mas muito mais sociais – convergiram diversos grupos, desde os órgãos oficiais do sindicalismo espanhol até os movimentos profundamente anticapitalistas e anarquistas. Sindicatos alternativos e de base; anarco-sindicalistas; grupos de afinidade libertários; movimentos estudantis autônomos; assembléias de bairro; “indignats” ligados ao recente movimento 15M… Todos convergiram para construir essa grande mobilização unitária – porém, cada um preservando sua autonomia de objetivos, estratégias e táticas.

É claro que há reflexões de devem ser feitas e debates acerca dos tais “atos violentos” durante os piquetes. Tais ações não estavam combinadas entre os grupos envolvidos e podem ser entendidas por um lado como uma ação simbólica e midiática, mas também como uma reação à opressão cotidiana que a população vem sofrendo e uma resposta à repressão policial à greve geral. A eficácia desses atos deve ser colocada em discussão, ainda mais frente às recentes mobilizações de ocupação de praças e ação direta não-violenta dos grupos ligados ao 15M que obteve enorme adesão da população e sucesso em suas ações, sem utilizar de “violência” (entre aspas mesmo, pois queimar lixeiras ou atacar bancos não pode ser considerado violência em seu sentido mais profundo). A violenta desocupação dos acampados da praça Catalunha há alguns meses causou espanto na população e uma reação ainda mais forte contra a polícia e o governo. O sentido de radicalidade de uma manifestação ou movimento muitas vezes não é contabilizada pelo número de fogueiras ou vitrines quebradas, mas sim com a ampliação das mobilizações, maior adesão de pessoas e a prática cotidiana de princípios anarquistas como a autogestão, a organização horizontal e antipartidária, o apoio mútuo e o federalismo no cotidiano de mais gente, nos bairros, associações, grupos, ateneus, bibliotecas, escolas, locais de trabalho, etc. Sabemos que a transformação radical da sociedade não se faz da noite para o dia, muito menos que ela será uma transição pacífica (disso os catalães sabem muito bem, pelo menos os que se lembram da Revolução Espanhola ou sabem o que se passou aqui em 1936). Mas também sabemos que a revolução social não surge sem um poderoso movimento de propaganda e prática social de anos, de convergência de muitos movimentos (sindicatos, grupos políticos, movimentos sociais, bibliotecas, associações de bairro, etc).

Preparemos agora a a continuidade das lutas e das mobilizações. Preparemos a Greve dos 99% – http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=yn4vwR6J – convocada para o dia 15 de maio e que pretende ser um movimento mundial. Quem sabe em breve poderemos dar um passo além da Greve Geral. Caminhando em direção ao urgente e necessário ato que mudará a atual situação do mundo!

Março de 2012

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Álbum de fotos:

 

Fontes e sites de interesse:

CNT
http://www.cnt.es/
http://www.nodo50.org/cntcatalunya/joomla/

CGT
http://www.cgt.org.es/
http://www.cgtcatalunya.cat/

15M
http://www.acampadadebarcelona.org/

Assemblea de Barri Poble Sec
http://assembleapoblesec.wordpress.com/

Semanário Directa
http://www.setmanaridirecta.info/

Imagens da greve em Barcelona
http://www.youtube.com/watch?v=Jq1e4TR13UM&feature=related

Texto do ICEA
http://iceautogestion.org/index.php?option=com_content&view=article&id=473%3Aen-defensa-de-la-huelga-anarcosindicalismo-y-la-ec

5 thoughts on “29M: A LA HUELGA, COMPAÑERO!”

  1. Thiago,
    Me a gustado mucho tu blog, te animo a que vengas a Radio Bronka a participar de alguno de nuestros programas.
    Una abrazo compañero.
    Salut, rebeldia e insurrección.

  2. Opa Thiago. Valeu pelo interesse no texto e pelo comentário.

    Foi por aí mesmo a coisa. Tinha muita, mas muita gente mesmo e de caracaterísticas bem diversas. Velhos, crianças, famílais, esquerda independentista catalã, sindicatos pelegos, anarco-sindicalistas, estudantes, movimentos sociais… Bem, se isso tudo não é o povo, se milhares de pessoas na rua não é o povo…. Aqui rolou adesão do “cidadão comum” (entre aspas mesmo) pois os recortes de direito está afetando todo mundo, desdo os mais pobres, imigrantes e jovesn desempregados, como à classe média espanhola. Estão perdendo os direitos que tiveram durante anos, o tal “estado de bem-estar social”. Isso mobiliza à todos mesmo.

    Sobre a questão da resistência à polícia…Bem, aí é mais complicado. Rolou só bala de borracha e gás lacrimonêneo (digo “só” porque no Brasil estamos acostumados com isso e aqui é raro esse tipo de ataque da polícia, tão violento). Para um enfrenteamento de verdade com a polícia é necessário mais do que meia-dúzia de jovens, umas pedras e umas barricadas frágeis. Pois como eu disse, e acho isso, a queima dos containers de lixo são uma ação mais midiática do que efetiva.

    Mas estar nas ruas protestanto e nos bairros se organizando é o que importa. A mudança pode vir daí. Esperemos o 12M-15M!

    Abraços.

  3. Nos videos se vê nitidamente a adesão de “cidadãos comuns” e não somente o pessoal de grupos sociais. Muita gente mais velha se misturando aos jovens nas ruas. Acredito que esse seja o ponto mais positivo e o que garante o sucesso da greve, o apoio do cidadão que não está acostumado a lutar, esses não vão acreditar na imprensa quando ela trata da manifestação como um ato violento e com objetivo de depretar o patrimônio privado.
    Sobre a ação covarde da polícia, me faz pensar que revides como o dos gregos são uma necessidade dos grupos radicais, a formação de grupos específicos de resistencia violenta às ações policiais.
    E que venha o 15 de maio!
    Saudações porto alegrenses.

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