UMA REVOLUÇÃO LIBERTÁRIA

O ponto de partida da Revolução de 1917 tinha sido a de 1905, durante a qual surgiram órgãos revolucionários de um novo tipo: os sovietes. Nasceram nas fábricas de São Petersburgo, por ocasião de uma greve geral espontânea. Em vista da ausência quase completa de um movimento sindical e de uma tradição sindicalista, os sovietes preencheram uma lacuna e coordenaram a luta das fábricas em greve. O anarquista Volin pertenceu ao primeiro grupo que, em ligação com os operários, teve a ideia de criar o primeiro soviete. O seu testemunho coincide com o de Trotsky que, alguns anos mais tarde, veio a ser presidente do Soviete, e que, sem nenhuma intenção pejorativa, antes pelo contrário, escreve, nas suas impressões sobre 1905: “A atividade do soviete significa a organização da anarquia. A sua existência e o seu desenvolvimento ulteriores traduziam a consolidação da anarquia.”

Esta experiência se gravou indelevelmente na consciência operária, e quando eclodiu a Revolução de Fevereiro de 1917, os dirigentes revolucionários não tiveram nada a inventar. Os trabalhadores apoderaram-se espontaneamente das fábricas. Os sovietes ressurgiram naturalmente. Uma vez mais tomaram de surpresa os profissionais da Revolução. Como reconheceu o próprio Lênin, as massas operárias e campesinas eram “cem vezes mais esquerdistas” que os bolchevistas. Os sovietes gozavam de um prestígio tão difundido, que a insurreição de Outubro só poderia ser desencadeada em seu nome e com o seu apelo. Mas a despeito do seu élan, careciam de homogeneidade, de experiência revolucionária e de preparação ideológica. Assim, constituíam uma presa fácil para os partidos políticos com ideias revolucionárias vacilantes.

O partido bolchevista, apesar de organização minoritária, constituía a única força revolucionária realmente organizada e dinamizada por objetivos definidos. Não tinha quase rivais ao campo das forças socialistas, quer no plano político, quer no sindical. Dispunha, por outro lado, de quadros de primeira ordem e desenvolvia “uma atividade frenética, febril, impressionante”, como admitiu Volin.

Todavia, o aparelho do Partido — no qual Stálin era, na época, figura modesta — encarava os sovietes com certa desconfiança, pela concorrência que lhe faziam. Imediatamente a seguir à tomada do poder, a tendência espontânea e irresistível à socialização da produção foi, a princípio, canalizada através do controle operário. O decreto de 14 de novembro de 1917 legalizou a ingerência dos trabalhadores na direção das empresas e no cálculo de custos, aboliu o segredo comercial e obrigou os patrões a mostrar a sua escrita.

“As intenções dos dirigentes da Revolução não eram as de ir mais além” — informa Victor Serge. Em abril de 1918, “ainda admitiam a possibilidade (…) da formação de sociedades mistas por ações, nas quais tivesse participação, com o Estado soviético, o capital russo e estrangeiro”. “A iniciativa das medidas de expropriação pertenceu às massas, e não ao poder.”

A 20 de outubro de 1917, no primeiro congresso dos conselhos de fábrica, apresentou-se uma moção de acentuada inspiração anarquista, que reclamava: “O controle da produção e as comissões de controle não devem ser apenas comissões de verificação, mas também (…) as células do futuro, que preparam, desde já, a transferência da produção para as mãos dos trabalhadores.” Nesta altura, A. Pankratova observa: “Estas tendências anarquistas afirmam-se com tanto maior facilidade e êxito, quanto maior resistência os capitalistas opuserem à aplicação do decreto sobre o controle operário e continuarem a recusar a ingerência dos trabalhadores na produção.”

O controle operário, com efeito, revelou-se, em breve, uma medida tíbia, inoperante e deficiente. Os empregadores sabotavam, subtraíam os estoques e as ferramentas, provocavam os operários e despediam-nos; por vezes, serviam-se dos comitês de fábrica como simples agentes ou auxiliares da administração, e houve muitos patrões que trataram de fazer nacionalizar o seu estabelecimento por se beneficiarem com o fato. Como resposta a estas manobras, os trabalhadores apoderavam-se das fábricas e punham-nas a funcionar por sua própria conta. Nas suas moções, proclamavam: “Não afastaremos os industriais, mas tomaremos conta da produção, se eles não quiserem assegurar o funcionamento das fábricas.” Pankratova acrescenta que, neste primeiro período de socialização “caótica” e “primitiva”, os conselhos de fábrica “apossaram-se frequentemente da direção das fábricas cujos proprietários haviam sido eliminados ou tinham preferido fugir.”

Em breve, o controle operário se esfumou diante da socialização. Lênin obrigou, literalmente, os seus lugares-tenentes a se lançarem “no cadinho da viva criação popular”, usando uma linguagem autenticamente libertária. A base da reconstrução revolucionária devia ser a autogestão, e só esta podia suscitar nas massas o entusiasmo revolucionário capaz de tornar possível o impossível. Quando o mais insignificante servente, o mais irremediável desempregado, ou a mais humilde cozinheira virem as fábricas, a terra e a administração confiadas às associações de operários, empregados, funcionários, camponeses, e constituídas as comissões de reabastecimento, etc, criadas espontaneamente pelo povo… “quando os pobres virem e sentirem tudo isto, nenhum força poderá vencer a revolução social”. O futuro pertencia, como vemos, a uma república do tipo da Comuna de 1871, a uma república de sovietes.

“Com o objetivo de impressionar as massas, de obter a sua confiança, o partido bolchevista começou por lançar palavras de ordem, que, até então, caracterizavam o anarquismo”, avisa-nos Volin. Slogans como o de Todo o poder aos sovietes! eram imediatamente compreendidos pelas massas no seu sentido libertário. Assim, testemunha Archinoff, “os trabalhadores interpretaram o poder soviético como a liberdade de dispor do seu próprio destino social e econômico”. No 3º congresso dos Sovietes (princípios de 1918), Lênin asseverou: “As ideias anarquistas revestem agora formas vivas.” Pouco depois, no 7º Congresso do Partido (6 a 8 de março do mesmo ano), Lênin fazia adotar teses que, entre outras coisas, tratavam da socialização, da produção administrada pelas organizações de trabalhadores (sindicatos, comitês de fábrica, etc), da eliminação de funcionários profissionais, da polícia e do exército, da igualdade de salários e soldos, da participação de todos os membros dos sovietes na gestão e administração do Estado, bem como da supressão completa e progressiva do referido Estado e da moeda. No congresso dos Sindicatos (primavera de 1918), Lênin descreveu as fábricas como “comunas autogeridas de produtores e consumidores”. O anarcosindicalista Maximoff chegou a declarar: “Os bolchevistas não somente abandonaram a teoria do enfraquecimento gradual do Estado, como também a ideologia marxista no seu conjunto. Tornaram-se uma espécie de anarquistas.”