UMA REVOLUÇÃO “AUTORITÁRIA”

Mas este audacioso alinhamento com o instinto e a disposição revolucionários das massas, se logrou colocar os bolchevistas na direção da Revolução, não correspondia nem à sua ideologia tradicional nem às suas verdadeiras intenções. Desde sempre, foram “autoritários”, entusiastas das ideias de Estado, de ditadura, de centralização, de partido dirigente, de gestão da economia a partir de cima, e uma série de coisas em contradição com a concepção realmente libertária da democracia soviética.

O Estado e a Revolução, escrito às vésperas da insurreição de Outubro, é um espelho onde se reflete a ambivalência do pensamento de Lênin. Algumas páginas poderiam ser assinadas por um libertário e, como vimos atrás, nessa obra, é prestada homenagem, pelo menos parcialmente, aos anarquistas.

Porém, este apelo à revolução pela base se desdobra numa defesa em favor da revolução pela cúpula. As concepções de Estado, centralização e hierarquia, não estão insinuadas de forma dissimulada; pelo contrário, estão francamente expostas: o Estado sobreviverá à conquista do poder pelo proletariado e só desaparecerá após um período transitório. Quanto tempo durará esse purgatório? Lênin não nos oculta a verdade, diz-nos ele sem pena e, parece, com alívio: o processo será “lento” e de “longa duração”. O que a Revolução parturejará, sob a aparência do poder dos sovietes, será “o Estado proletário” ou “a ditadura do proletariado”, “o Estado burguês sem burguesia”, como admite o próprio autor quando se aprofunda no seu pensamento. Tal Estado onívoro tem por certo a intenção de tudo absorver.

Lênin segue a escola sua contemporânea, o capitalismo de Estado alemão, a Kriegswirtschaft (economia de guerra). A organização da grande indústria moderna, com sua “disciplina de ferro”, constitui outro dos seus modelos. Diante de um monopólio estatal como o dos correios, Lênin declara, entusiasmado: “Que mecanismo admiravelmente aperfeiçoado! Toda a vida econômica organizada como os Correios (…), eis o Estado, eis a vida econômica de que necessitamos.” Querer prescindir da “autoridade” e da “subordinação” não é mais do que um “sonho anarquista”, afirma. Pouco antes, animava-o a ideia de confiar a produção e a troca às associações de trabalhadores, à autogestão. Mas havia um engano na equação de todos os parâmetros do seu pensamento. Assim, não oculta a sua receita mágica: todos os cidadãos transformados em “empregados e em trabalhadores de um truste universal de Estado, toda a sociedade convertida em um grande escritório ou numa grande fábrica”. Quanto aos sovietes, eles estariam colocados sob a égide do partido que tinha a missão histórica de “dirigir” o proletariado.

Os mais lúcidos dos anarquistas russos não se deixaram enganar. No apogeu do período libertário de Lênin, incitavam já as massas a se precaverem: no seu jornal, Golos Truda (A Voz do Trabalho), Volin publicava, nos últimos meses de 1917 e primeiros do ano seguinte, estas palavras proféticas: “Uma vez consolidado e legalizado o seu poder, os bolchevistas — que são socialistas políticos e estatais, isto é, homens de ação centralista e autoritária — tratarão da vida do país e do povo, através de meios governamentais e ditatoriais, impostos a partir do centro (…). Os vossos sovietes tornar-se-ão, pouco a pouco, simples órgãos executivos da vontade do poder central (…). Assistiremos ao estabelecimento de um poder autoritário, político e estatal, que agirá de cima e tudo esmagará (…) com sua mão de ferro (…). Infeliz daquele que não estiver de acordo com o poder central!” “Todo o poder aos sovietes passará a constituir, de fato, a autoridade dos chefes do Partido.”

Ainda segundo Volin, a tendência anarquizante das massas obrigou Lênin a afastar-se, durante algum tempo, do velho caminho. Assim, deixaria subsistir o Estado apenas pelo tempo necessário. Depois, seria o “anarquismo”. “Mas, pelos deuses, imaginai (…) o que diria o cidadão Lênin, logo que o poder atual estivesse consolidado e tornasse impossível o diálogo com as massas!” Naturalmente, voltaria aos velhos caminhos abandonados. E criaria o “Estado marxista” de um tipo mais aperfeiçoado.

Como se compreende, seria pura fantasia supor que Lênin e a sua equipe armaram conscientemente uma tal armadilha ao povo. O que existia neles era mais dualismo doutrinário que duplicidade. A contradição era tão evidente, tão flagrante, entre os dois polos do seu pensamento, que era facilmente previsível a sua manifestação no domínio dos fatos. Ou a pressão anarquizante das massas obrigaria os bolchevistas a esquecerem a inclinação autoritária das suas concepções, ou, pelo contrário, a consolidação do seu poder, ao mesmo tempo que o esvaziamento da revolução popular, os levaria a relegar as suas veleidades anarquistas para o porão dos trastes velhos.

Os dados do problema se complicam com a intervenção de um novo e perturbador elemento: as terríveis circunstâncias da guerra civil e da intervenção estrangeira, a desorganização dos transportes e a penúria de técnicos. Estas circunstâncias impeliram os comunistas à adoção de medidas excepcionais, à ditadura, à centralização, aos recursos ao “punho de ferro”. Os anarquistas, porém, contestavam que estas dificuldades fossem simplesmente redundância de causas “objetivas” e exteriores à Revolução. Opinavam que eram devidas, por um lado, à lógica interna das concepções autoritárias do bolchevismo, à impotência de um poder burocratizado e centralizado em excesso. Segundo Volin, a incompetência do Estado e a sua pretensão de tudo querer dirigir e controlar incapacitaram-no para reorganizar a vida econômica do país e conduziram a um verdadeiro colapso, concretizado na paralisação da atividade industrial, na ruína da agricultura e na destruição de todos os laços entre os diversos ramos da economia.

Volin relata, a propósito, o caso da antiga refinaria de petróleo Nobel, em Petrogrado, abandonada pelos proprietários. Os seus quatro mil operários dispuseram-se coletivamente a pô-la a funcionar. Animados deste intento, dirigiram-se em vão ao governo. Tentaram, então, pôr a fábrica a trabalhar pelos seus próprios meios. Dividiram-se em grupos móveis, que se esforçaram por encontrar combustíveis, matérias-primas, mercados e transportes. Para este efeito haviam já entabulado negociações com os seus camaradas ferroviários. O governo irritou-se. Responsável perante o país inteiro, não poderia permitir que cada empresa agisse à sua maneira. Obstinado, o conselho de trabalhadores da fábrica convocou uma assembleia geral dos trabalhadores. O comissário do povo para o Trabalho teve o cuidado de se deslocar a esta assembleia e avisar os trabalhadores de que tal assembleia constituía “um ato de indisciplina grave”, e reprovou a sua atitude “anarquista e egoísta”, ameaçando-os de despedimento sem indenização. Os trabalhadores replicaram que não solicitavam nenhum privilégio: o governo não tinha mais a fazer que deixar os trabalhadores e os camponeses agirem do mesmo modo em todo o país. Tudo em vão. O governo manteve o seu ponto de vista e a fábrica foi encerrada.

O testemunho de Volin é corroborado pelo de uma comunista, a escritora Alexandra Kolontai, que em 1921 lamentava os inumeráveis exemplos de iniciativas dos trabalhadores perdidas na papelada burocrática e no palavreado estéril da administração: “Que amargura para os operários (…), ao aperceberem-se do que poderiam ter realizado, se lhes houvéssemos dado o direito e a possibilidade de agir (…)! A iniciativa esmoreceu, o desejo de agir morreu”.

O poder dos sovietes durou, em realidade, algum tempo, de Outubro de 1917 aos primeiros meses de 1918. Em breve, os conselhos de fábrica, porém, foram despojados das suas atribuições, sob o pretexto de que a autogestão não considerava as necessidades “racionais” da economia, mas que, pelo contrário, estimulava o egoísmo das empresas, criando a concorrência entre umas e outras e tentando sobreviver, a todo o custo, ainda que outras fábricas fossem mais importantes “para o Estado” e melhor equipadas. A Revolução russa encaminhava-se, inicialmente, segundo a expressão de A. Pankratova, para uma fragmentação da economia em “federações autônomas de produtores, do tipo sonhado pelos anarquistas”. Sem dúvida, a nascente autogestão operária não era desmerecedora de certas críticas. Penosamente, por tentativas, a autogestão estava criando novas formas de produção, que não tinham precedentes na história. Certamente, haveria erros, tributo da aprendizagem. Como salienta Kolontai, a autogestão tinha de nascer de um “processo de investigações práticas, talvez com erros, mas a partir das forças criadoras da própria classe operária”.

Os dirigentes do Partido não compartilhavam, porém, desta opinião. Ao contrário, sentiam-se muito felizes por retirarem aos comitês de fábrica os poderes que, no seu foro íntimo, apenas e haviam resignado a delegar. A partir de 1918, Lênin acentuou as suas preferências pelo “comando único” na gestão das empresas. Os trabalhadores deviam obedecer “incondicionalmente” à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho. Todos os chefes bolchevistas, diz-nos Kolontai, estavam “desconfiados a respeito da capacidade criadora das coletividades operárias”. A administração tinha sido invadida por numerosos elementos pequeno-burgueses, remanescentes do antigo regime, adaptados rapidamente às instituições soviéticas, que haviam obtido postos de responsabilidade nos diversos comissariados e consideravam que a gestão econômica deveria ser confiada a eles e não às associações de trabalhadores.

Assiste-se, então, a uma crescente ingerência da burocracia estatal na economia. A partir de 5 de dezembro de 1917, a indústria foi presidida por um Conselho Superior da Economia, encarregado de coordenar autoritariamente a ação de todos os órgãos de produção. O congresso dos Conselhos de Economia (26 de maio — 4 de junho de 1918) decidiu a constituição de direções de empresa, das quais dois terços dos membros seriam nomeados pelos conselhos regionais ou pelo Conselho Superior de Economia, e o terço restante eleito pelos operários de cada estabelecimento. O decreto de 28 de maio de 1918 alargou a coletivização ao conjunto da indústria, mas, ao mesmo tempo, transformou as socializações espontâneas dos primeiros meses da Revolução em nacionalizações. Era o Conselho Superior da Economia que estava encarregado de organizar a administração das empresas nacionalizadas. Os diretores e operários especializados permaneciam nas suas funções, a soldo do Estado. No 2º Congresso do Conselho Superior de Economia, em 1918, os conselhos foram asperamente criticados pelo membro relator, que os acusava de dirigirem, praticamente, as empresas, em substituição do conselho de administração.

As eleições para os conselhos de fábrica continuaram a se reaIizar, por mero formalismo, pois um membro da célula comunista procedia, quase sempre, à leitura de uma lista de candidatos preparada antecipadamente, e a votação era imediatamente efetuada, por mão erguida, tudo em presença de “guardas comunistas” da empresa. Bastava que alguém se declarasse contra os candidatos propostos para sofrer sanções econômicas (desclassificação de salário, etc). Como dizia Archinoff, “já não havia mais que um amo onipresente: o Estado”. As relações entre os trabalhadores e este novo patrão tornaram-se semelhantes às existentes entre o trabalho e o capital. O assalariado foi restaurado, com a única diferença de constituir agora pertença do Estado, em vez de escravo tradicional do patrão privado.

Os sovietes foram relegados para um papel nominal, convertidos em instituições de poder governamental. “Deveis constituir as células estatais de base” — declara Lênin, em 27 de junho de 1918, no congresso dos conselhos de fábrica. Segundo Volin, “os sovietes foram reduzidos ao papel de órgãos puramente administrativos e executivos, encarregados de pequenas necessidades locais sem importância, inteiramente submetidos às “diretivas” das autoridades centrais: governo e órgãos dirigentes do Partido”. No 3º Congresso dos Sindicatos (abril de 1920), o relator Lozovsky reconheceu: “Renunciamos aos velhos métodos do controle operário, do qual só conservamos o princípio estatal”. A partir de então, este “controle” passou a ser exercido por um organismo de Estado: a Inspeção de Trabalhadores e Camponeses.

As federações de indústria, com estrutura centralista, serviram, nos primeiros tempos, para os bolchevistas enquadrarem e submeterem os conselhos de fábrica, federalistas e libertários por natureza. A 1º de abril de 1918, a fusão destes dois tipos de organizações era um fato consumado. Doravante, os sindicatos, vigiados pelo Partido, desempenhavam uma ação disciplinar. O dos metalúrgicos de Petrogrado interditou “as iniciativas desorganizadoras” dos conselhos de fábrica e reprovou as pretensões “perigosas” destes fazerem passar para as mãos dos trabalhadores tal ou qual empresa, sob a alegação de que isto significava uma imitação, na pior das formas, das cooperativas de produção, que “há muito se haviam mostrado inoperantes” e que “não deixavam de se transformar em empresas capitalistas”. “Por isso, toda a empresa abandonada ou sabotada pelo industrial, cuja produção fosse necessária à economia nacional, devia ser colocada sob a gestão do Estado”. Era “inadmissível” que os trabalhadores se apossassem das empresas sem a aprovação sindical.

Depois desta operação preparatória, os sindicatos foram domesticados, despojados de autonomia e depurados, os seus congressos diferidos, seus membros encarcerados e suas organizações dissolvidas ou fundidas em unidades mais vastas. No fim deste processo, toda a orientação anarcosindicalista estava aniquilada, e o movimento sindical estreitamente subordinado ao Estado e ao Partido único.

O mesmo aconteceu no referente às cooperativas de consumo, que, nos primeiros tempos da Revolução, se multiplicaram e federaram. Cometeram, porém, o “erro” (ou o “crime”) de escapar ao controle do partido e de deixar que certo número de sociais-democratas (mencheviques) nelas se infiltrassem. Como punição, o Estado começou por privar os armazéns locais dos seus meios de reabastecimento e de transporte, sob o pretexto de “comércio privado” e de “especulação”, ou mesmo sem o menor pretexto. Seguidamente, foram fechadas, de uma só vez, todas as cooperativas livres e, em seu lugar, instaladas, burocraticamente, cooperativas do Estado. O decreto de 20 de março de 1919 integrou as cooperativas de consumo no Comissariado para o Reabastecimento, e as cooperativas de produção industrial no Conselho Superior de Economia. Numerosos cooperados foram presos.

A classe proletária não reagiu com energia nem rapidez contra esta situação. Estava dispersa, isolada, num imenso país atrasado e, em sua grande maioria, agrícola, esgotada pelas privações decorrentes das lutas revolucionárias, desmoralizada. Os seus melhores elementos haviam partido para a frente, na guerra civil, ou tinham sido absorvidos pelo aparelho do Partido ou do Governo. Todavia, foram bastante numerosos os trabalhadores que se sentiram frustrados pelas suas conquistas revolucionárias, privados dos seus direitos civis, e que, humilhados pela arrogância e arbitrariedade dos novos senhores, tomaram consciência da verdadeira natureza do pretenso “Estado proletário”. Assim, no decorrer do verão de 1918, os operários descontentes elegeram, nas fábricas de Moscou e Petrogrado, delegados autênticos, procurando deste modo opor os seus “conselhos de delegados” aos sovietes de empresa já captados pelo poder. Como testemunha Kolontai, o operário sentia, via e compreendia que era marginalizado. Podia comparar o modo de vida dos funcionários soviéticos com o seu e o dos seus camaradas operários, pilar sobre o qual descansava, pelo menos em teoria, a “ditadura do proletariado”.

Quando, porém, os trabalhadores viram completamente claro, era já demasiado tarde. O poder havia tido tempo de se organizar solidamente e dispunha de forças de repressão capazes de esmagar toda a tentativa de ação autônoma das massas. No dizer de Volin, “uma luta áspera e desigual, que durou quase três anos e continua ainda hoje, quase ignorada fora da Rússia, opôs uma vanguarda operária a um aparelho estatal que se obstinava em negar o divórcio consumado entre ele e as massas”. De 1919 a 1921, produziram-se numerosas greves nos centros mais importantes, em Petrogrado, sobretudo, e mesmo em Moscou, como veremos mais adiante, severamente reprimidas.

Mesmo no interior do Partido dirigente, surgiu uma “oposição operária” que reclamava o regresso à democracia soviética e à autogestão. No 10° congresso do Partido, em março de 1921, um membro, Alexandra Kolontai, distribuiu uma brochura em que se reivindicava a liberdade de iniciativa e de organização para os sindicatos, assim como a eleição de um órgão central da administração da economia, a partir de um “congresso de produtores”. O opúsculo foi confiscado e interditado. Lênin conseguiu que a quase unanimidade dos congressistas adotasse uma resolução considerando as teses da Oposição operária “desvios pequeno-burgueses e anarquistas”. “O sindicalismo, o semianarquismo das oposições, era, a seus olhos, um “perigo direto” para o monopólio do poder exercido pelo Partido em nome do proletariado”.

A luta prosseguiu no seio da direção da central sindical. Por defenderem a independência dos sindicatos em relação ao Partido, Tomsky e Riazanov foram excluídos do Presidium e exilados, enquanto o principal dirigente da Oposição operária, Chiapnikov, sofria a mesma sorte, seguido pelo dinamizador de um outro grupo oposicionista, o operário Miasnikov. Este autêntico proletário, justiceiro, em 1917, do grão-duque Michel, que contava quinze anos de militância no partido e, antes da Revolução, mais de sete anos de prisão e setenta e cinco dias de greve de fome, tinha “ousado”, em novembro de 1921, imprimir uma brochura na qual declarava que os trabalhadores haviam perdido a confiança nos comunistas, porque o Partido já não atuava em conformidade com a base e, agora, dirigia contra a classe proletária os mesmos meios de repressão que, de 1918 a 1920, haviam sido usados contra os burgueses.