O PAPEL DOS ANARQUISTAS

Neste drama, onde uma revolução de tipo libertário foi transformada no seu contrário, que papel desempenharam os anarquistas russos? A Rússia quase não tinha tradições libertárias. Foi no estrangeiro que Bakunin e Kropotkin se tornaram anarquistas. Nem um nem outro militaram como anarquistas no interior da Rússia. Quanto às suas obras, apareceram, até à Revolução de 1917, no exterior e em língua estrangeira. Só alguns extratos chegaram à Rússia, introduzidos clandestinamente e em quantidades muito reduzidas. Assim, toda a educação social, socialista e revolucionária dos russos, não tinha absolutamente nada de anarquista. Muito ao contrário, assegura Volin, “a juventude russa avançada lia uma literatura que, invariavelmente, apresentava o socialismo sob uma forma estatal”. A ideia de governo habitava nos espíritos: a social-democracia alemã havia-os contaminado.

Os anarquistas eram “um punhado de homens sem influência”; somavam, quando muito, apenas alguns milhares. Ainda segundo Volin, o movimento anarquista era “demasiado fraco para ter uma influência imediata e concreta sobre os acontecimentos”. Por outro lado, os anarquistas eram, na sua maioria, intelectuais de tendências individualistas, embora mais ou menos ligados ao movimento operário. Nestor Makhno, que com Volin constituía uma exceção, pois, na Ucrânia, sua região natal, operou no coração das massas, escreveu, nas suas Memórias, que o anarquismo russo “se encontrava na cauda de todos os acontecimentos, e mesmo, por vezes, completamente fora deles”.

Contudo, parece haver alguma injustiça nesta apreciação. O papel dos anarquistas, entre a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro, não foi de modo algum negligente. Afirma-o Trotsky, várias vezes, ao longo da sua História da Revolução Russa. “Ousados” e “ativos”, apesar do seu escasso número, os anarquistas foram os adversários do princípio da assembleia constituinte, num momento em que os bolchevistas não eram ainda antiparlamentares. Muito antes de Lênin, inscreveram nas suas bandeiras a palavra de ordem: Todo o poder para os sovietes! Foram também eles que animaram o movimento de socialização espontânea das habitações, muitas vezes contra a vontade dos bolchevistas. E em parte sob o impulso dos militantes anarcosindicalistas, os trabalhadores apoderaram-se de fábricas, mesmo antes de Outubro de 1917.

Durante as jornadas revolucionárias, que puseram fim à república burguesa de Kerensky, os anarquistas estiveram nas brechas da luta militar, nomeadamente integrados no regimento de Dvinsky, que, sob as ordens de velhos libertários, como Gratchoff e Fedotoff, desalojou os “cadetes” contrarrevolucionários. Foi o anarquista Anatole Galezniakoff, com a ajuda do seu destacamento, quem dispersou a assembleia constituinte: os bolchevistas não fizeram mais que ratificar o facto consumado. Numerosos destacamentos de camponeses, formados por anarquistas, ou por eles conduzidos (os de Mokroussof, Tcherniak e outros), lutaram sem trégua contra os exércitos brancos, de 1918 a 1920.

Quase não havia cidade importante que não contasse com um grupo anarquista ou anarcosindicalista difundindo um material impresso, relativamente considerável: jornais, revistas, folhetos, livros. Em Petrogrado, dois semanários, e em Moscou um quotidiano, tinham uma tiragem de 25.000 exemplares cada um. A audiência do movimento anarquista crescera par e passo com a Revolução, até que esta e aquele se afastaram das massas.

A 6 de abril de 1918, o capitão francês Jacques Sadoul, em missão na Rússia, escrevia num seu relatório: “O partido anarquista é o mais ativo, o mais combativo, dos grupos da oposição, e provavelmente o mais popular (…). Os bolchevistas estão inquietos”. E, em fins do mesmo ano, Volin afirmava: “Esta influência é tal, que os bolchevistas, avessos a críticas e ainda mais a contradições, estão seriamente inquietos”. “Para a autoridade bolchevista, tolerar a propaganda anarquista equivale (…) ao suicídio. Ela faz o possível para impedir, de início, interditar, depois, e suprimir, finalmente, pela força bruta, toda a manifestação das ideias libertárias”.

Com efeito, o governo bolchevista “começou por fechar as sedes das organizações libertárias e impedir aos anarquistas toda a propaganda e atividade”. Na noite de 12 de abril de 1918, em Moscou, os destacamentos de guardas vermelhos, armados até aos dentes, aniquilaram, por surpresa, vinte e cinco casas ocupadas por anarquistas. Estes, que se supunham atacados pelos guardas brancos, responderam ao ataque. Depois, ainda segundo Volin, “o poder adota medidas mais violentas: a prisão, a marginalização e a condenação à morte”. “Durante quatro anos, este conflito não deixa sossegar o poder bolchevique (…), até ao esmagamento definitivo da corrente libertária manu militari (1921)”.

A derrota dos anarquistas foi facilitada pelo fato de se encontrarem divididos em duas facções: uma, que recusava ser domesticada, e outra que se deixava domesticar. Os últimos invocavam a “necessidade histórica”, para justificar a sua lealdade para com o regime e aprovar, pelo menos momentaneamente, os seus atos ditatoriais. Para eles, o principal era terminar vitoriosamente a guerra civil e esmagar a contrarrevolução.

Tática de curto alcance, opinavam os anarquistas intransigentes, pois a impotência burocrática do aparelho governamental, a decepção e o descontentamento populares é que, precisamente, alimentavam os movimentos contrarrevolucionários. Além disto, o poder acabava por não distinguir as atitudes da ala avançada da Revolução libertária, que contestava os seus meios de dominação, das ações criminosas dos seus adversários da direita. Aceitar a ditadura e o terror, constituía, para os anarquistas que se contavam entre as vítimas, uma política suicida. Enfim, a adesão dos anarquistas ditos “soviéticos” facilitou a eliminação dos outros, dos irredutíveis, que foram apodados de “falsos” anarquistas, de sonhadores irresponsáveis sem sentido de realidade, de estúpidos desorientados, de loucos furiosos e, finalmente, de bandidos e contrarrevolucionários.

O mais brilhante e o mais ouvido dos anarquistas que aderiram ao regime foi Victor Serge. Funcionário do governo, publicou, em francês, um livro em que tentava defender-se da crítica anarquista. O livro que ele escreveu mais tarde, O 1º ano da Revolução Russa é, em grande parte, a justificação da liquidação dos sovietes pelo bolchevismo. O Partido ou, melhor, a sua elite dirigente, é ali apresentada como o cérebro da classe operária. A descoberta do que pode e deve fazer o proletariado pertence aos chefes devidamente selecionados na vanguarda. Sem eles, as massas organizadas nos sovietes não seriam “mais que uma turbamulta de aspirações confusas, embora iluminadas por lampejos de inteligência”.

Victor Serge era demasiado lúcido para nutrir ilusões sobre a verdadeira natureza do poder soviético. Mas este poder encontrava-
se ainda aureolado do prestígio da primeira revolução proletária vitoriosa e era amaldiçoado pela contrarrevolução mundial; esta era uma das razões, a mais respeitável, pelas quais Serge, como tantos outros revolucionários, acreditaram dever calar e dissimular os erros dos bolchevistas. Em meados de 1921, numa conversa privada com o anarquista Gaston Leval, que então se deslocara a Moscou, integrando a delegação espanhola ao 3º Congresso da Internacional, declarou: “O Partido Comunista não exerce uma ditadura do proletariado, mas sim sobre o proletariado”. De volta a Paris, Leval publicou no Le Libertaire alguns artigos nos quais, apoiando-se em dados precisos, estabelece paralelo entre o que Victor Serge lhe confidenciara e os conceitos que manifestava publicamente e que classificou de “mentiras conscientes”. No seu livro Vivendo minha vida, Emma Goldman, anarquista norte-americana, que assistiu pessoalmente à atuação de Serge em Moscou, não se revela menos contundente a seu respeito.(1)

Nota:
(1) Ao regressar, desiludida, à América do Norte, de onde emigrara para a Rússia, como voluntária, para colaborar na Revolução de Outubro, Emma Goldman publicou, nos jornais anarquistas norte-americanos, uma série de artigos de análise à obra contrarrevolucionária de Lênin, sob o título de “O grande jesuíta” (Lênin). (R.N.)