As aspirações dos camponeses revolucionários makhnovistas eram muito semelhantes às que, em fevereiro e março de 1921, impulsionaram, conjuntamente, à revolta, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros da fortaleza de Kronstadt.
Os trabalhadores urbanos tinham de suportar condições materiais intoleráveis: escassez de víveres, combustíveis, meios de transportes e a ação de um regime cada vez mais ditatorial e totalitário, que esmagava a menor manifestação de descontentamento. Em fins de fevereiro, eclodiram greves em Petrogrado, Moscou e outros importantes centros industriais. Os trabalhadores, marchando pelas ruas, atraíram outros contingentes de operários, que fecharam as fábricas, reclamando pão e liberdade. O governo respondeu com fuzilamentos, e os trabalhadores de Petrogrado, por sua vez, com um comício de protesto, que reuniu 10.000 operários.
Kronstadt era uma base naval insular, a trinta quilômetros de Petrogrado, no golfo da Finlândia, cujas águas gelam no inverno. A ilha era habitada por marinheiros e alguns milhares de trabalhadores do arsenal da base militar. Os marinheiros de Kronstadt tinham desempenhado um papel de vanguarda nos acontecimentos revolucionários de 1917. Segundo Trotsky, foram “o orgulho e a glória da Revolução russa”. A população civil de Kronstadt formava uma comuna livre, relativamente independente do poder central. Dentro da fortaleza, havia uma imensa praça pública, autêntico fórum popular, onde cabiam mais de 30.000 pessoas.
Os marinheiros não possuíam, já em 1921, nem os mesmos efetivos, nem a mesma composição revolucionária de 1917: muito mais que os seus predecessores, provinham da massa camponesa; conservavam, porém, o mesmo espírito militante e, pela sua atuação anterior, o direito de participar ativamente nas reuniões dos trabalhadores de Petrogrado. Por isso os marinheiros enviaram emissários aos trabalhadores em greve da antiga capital, os quais foram obrigados pelas forças governamentais a regressar. Então, celebraram-se dois comícios na praça da fortaleza, onde se afirmou o apoio às reivindicações dos operários em greve. Na segunda reunião, a 1º de março, juntaram-se 16.000 pessoas — marinheiros, trabalhadores e soldados — e, não obstante a presença do chefe do Estado (o presidente do executivo central, Kalínine), adotaram uma resolução em que pediam a convocação, à margem dos partidos políticos, nos dez dias seguintes, de uma conferência de operários, soldados vermelhos e marinheiros de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado. No mesmo comício exigiram a supressão dos “oficiais políticos”, pois nenhum partido político deveria usufruir de tal privilégio, assim como a abolição dos destacamentos comunistas de choque, dentro do exército, e da “guarda comunista”, dentro das fábricas.
Era o monopólio do partido dirigente que se visava. Um monopólio que os rebeldes de Kronstadt não hesitaram em qualificar de “usurpação”. Mas folheemos resumidamente o jornal oficial desta nova Comuna, o Izvestia de Kronstadt, e deixemos falar os marinheiros encolerizados. O Partido Comunista, depois de se arrogar o poder, manifestava, segundo eles, um único cuidado: conservá-lo por todos e quaisquer meios. Tinha-se afastado das massas. Revelara-se incapaz de tirar o país de um estado de derrocada geral. Perdera a confiança dos operários. Burocratizara-se. Os sovietes, despojados do seu poder, haviam sido falsificados, encampados e manipulados; haviam-se estatizado.
Uma máquina policial onipotente pendia sobre o povo, ditando sua lei através de fuzilamentos e da prática de terror. No plano econômico, reinava, em vez do anunciado socialismo, assentado no trabalho livre, um duro capitalismo de Estado. Os operários eram simples assalariados deste grande truste nacional, e submetidos à mesma exploração de antes. Os hereges de Kronstadt chegaram a contestar a infalibilidade dos chefes supremos da Revolução. Escarneceram de Trotsky e de Lênin. Além das suas reivindicações imediatas — restauração das liberdades, eleições livres para todos os órgãos da democracia soviética — visavam alcançar um objetivo mais vasto e de um conteúdo nitidamente anarquista: uma “terceira Revolução”.
Os rebeldes entenderam continuar sobre o terreno revolucionário, vigiando a manutenção das conquistas da revolução social. Afirmavam não ter nada cm comum com os que pretendiam “restabelecer o czarismo”, e se não escondiam a sua intenção de derrubar o poder dos “comunistas”, não era para que os “operários e os camponeses voltassem a ser escravos”. Também não cortavam todos os pontos de contato com o regime, com o qual esperavam ainda “encontrar uma linguagem comum”. Em suma, se reclamavam liberdade de expressão, não o faziam por vãos motivos, mas apenas porque, anarquistas e “socialistas de esquerda” (fórmula que excluía os social-democratas ou mencheviques), eram partidários sinceros da Revolução.
Mas a “audácia” de Kronstadt ia bem mais longe do que era suportável para Lênin ou Trotsky. Os chefes bolcheviques tinham decididamente identificado a Revolução com o Partido Comunista, e tudo que combatia este mito era, a seus olhos, irremediavelmente “contrarrevolucionário”. Viam feita em pedaços toda a ortodoxia marxista-leninista. Os acontecimentos de Kronstadt constituíam um facto de significado tão aterrador, quanto os chefes comunistas sabiam que, governando em nome do proletariado, o seu poder era contestado por um movimento autenticamente proletário. Além disto, Lênin apegou-se à tese um tanto simplista de que a restauração czarista era a única alternativa à ditadura de seu Partido. Os homens de Estado do Kremlin de 1921 raciocinavam como, mais tarde, os de outono de 1956. Kronstadt foi a prefiguração de Budapeste.
Trotsky, o homem “de mão de ferro”, aceitou pessoalmente a responsabilidade de dirigir a repressão. “Se persistirem na vossa atitude, os caçaremos como perdizes”, comunicava pelo rádio aos amotinados. E os marinheiros foram tratados como cúmplices dos “guardas brancos”, das potências ocidentais intervencionistas e da “Bolsa de Paris”. A sua submissão fora obtida pela força das armas. Não tiveram nenhum êxito as tentativas dos anarquistas Emma Goldman e Alexandre Berkman — que haviam encontrado asilo na “pátria do proletariado”, depois de terem sido deportados dos Estados Unidos — em evitar o uso da força, pois “esta traria um mal incalculável à Revolução social”, conforme carta patética que, nessa altura, escreveram a Zinoviev, a quem também pediam que incitasse os seus “camaradas bolcheviques” a solucionarem o conflito através de negociações fraternais. Quanto aos operários de Petrogrado, aterrorizados, submetidos à lei marcial, não puderam levar apoio aos de Kronstadt.
Um antigo oficial czarista e futuro marechal, chamado Toukhatchevsky, foi encarregado de comandar um corpo expedicionário, composto de tropas recrutadas especificamente, dado que grande número de soldados vermelhos se recusavam a atirar sobre os seus companheiros de alistamento. Em 7 de março, começou o bombardeio da fortaleza de Kronstadt. Os sitiados lançaram um último apelo, que teve por título “Que o mundo o saiba!”, no qual disseram: “O sangue dos inocentes cairá sobre a cabeça dos comunistas sedentos de poder. Viva o poder dos sovietes!”. Deslocando-se sobre o gelo do golfo da Finlândia, as tropas sitiantes eliminaram a rebelião, a 18 de março, numa orgia de sangue.
Os anarquistas quase não intervieram neste episódio. O comitê revolucionário de Cronstadt convidara, efetivamente, dois libertários para se lhe reunirem: Volin e Yartchouk, o segundo dos quais fora o animador do soviete de Kronstadt, em 1917. Estes, porém, encontravam-se encarcerados pelos bolcheviques. Conforme relata Ida Mett, historiadora de A Revolta de Kronstadt, a influência anarquista exerceu-se apenas “na medida em que o anarquismo propagou a ideia da democracia operária”. Mas, se não intervieram diretamente nos acontecimentos, os anarquistas não deixaram de proclamar a sua autoria: “Kronstadt — escreveu mais tarde Volin — foi a primeira tentativa popular, inteiramente independente, para libertar o proletariado de todo o jugo e realizar a Revolução Social: tentativa empreendida diretamente (…) pelas massas trabalhadoras,
sem “pastores políticos”, sem “chefes” nem “tutores”. E Alexandre Berkman acrescenta: “Kronstadt fez voar em pedaços o mito do Estado proletário; demonstrou que havia incompatibilidade entre a ditadura do Partido Comunista e a Revolução”.