Meu querido amigo:
Finalmente tenho a oportunidade de lhe escrever e me apresso a aproveitá-la, sem estar seguro, no entanto, de que esta carta chegue a suas mãos.
Minha mulher e eu lhe agradecemos de todo o coração o interesse fraternal que você teve pelo velho amigo ao circular o rumor de minha prisão. Este rumor era absolutamente falso, assim como os referentes ao meu estado de saúde.
A pessoa que lhe entregará esta carta lhe contará a vida tão reclusa que temos nesta pequena cidade provinciana; em minha idade, é materialmente impossível participar dos assuntos públicos durante uma revolução e não me é próprio atuar como partidário. Quando estávamos em Moscou, no inverno passado, trabalhei com um grupo de colaboradores para esboçar os princípios de uma república federalista. Mas o grupo teve que se dispersar e eu voltei a me pôr a trabalhar na Ética que comecei na Inglaterra há uns quinze anos.
Tudo o que posso fazer agora é dar-lhe uma ideia geral da situação na Rússia que, em minha opinião, não se conhece bem no Ocidente. Talvez possa explicar-lhe com uma analogia. Atravessamos um momento parecido ao da França durante a revolução jacobina, entre setembro de 1792 e julho de 1794, embora aqui seja uma revolução social que pretenda triunfar. O método ditatorial dos jacobinos era errôneo. Não podia criar uma organização estável e tinha que acabar dando espaço à reação. Mas os jacobinos conseguiram, no entanto, a abolição, em junho de 1893, dos direitos feudais, que havia se iniciado em 1789 e nem a Assembleia Constituinte nem a legislativa quiseram completar. E também proclamaram a igualdade política de todos os cidadãos. Duas imensas mudanças fundamentais que percorreram a Europa durante o século XIX.
Uma situação parecida existe agora na Rússia. Por meio da ditadura de uma fração do partido social-democrata, os bolcheviques pretendem implantar à socialização da terra, da indústria e do comércio. Esta mudança que estão lutando por introduzir é o principio fundamental do socialismo. Infelizmente, o método pelo qual querem impô-lo, um Estado fortemente centralizado, ao estilo do comunismo de Babeuf, faz com que seu êxito seja absolutamente impossível e paralisa o trabalho construtivo do povo. O que está permitindo uma reação furiosa, potencialmente muito perigosa, que já está se organizando para voltar a implantar o antigo regime, aproveitando o esgotamento geral produzido primeiro pela guerra, depois pela fome que estamos sofrendo na Rússia central e, por último, pela completa desorganização do sistema de produção e troca. Tudo isto são efeitos inevitáveis de uma revolução tão vasta levada a cabo por decretos.
Fala-se no Ocidente em restabelecer a “ordem” na Rússia por meio de uma intervenção armada dos aliados. Bem, querido amigo, você sabe como foi prejudicial para o progresso social da Europa, na minha opinião, a atitude daqueles que tentaram desorganizar a resistência na Rússia, o que prolongou a guerra um ano mais, nos trouxe a invasão alemã sob pretexto de um tratado e nos custou rios de sangue paru evitar que uma Alemanha conquistadora esmagasse a Europa sob sua bota imperial. Você sabe muito bem quais são minhas opiniões sobre este assunto.
E, no entanto, protesto com todas as minhas forças contra qualquer tipo de intervenção armada por parte dos aliados nos assuntos russos. Esta intervenção daria lugar a uma explosão de chauvinismo russo que nos traria de novo a monarquia – já há indícios evidentes disso – e, fixe-se bem no que digo, produziria na maioria dos russos uma atitude hostil para com a Europa Ocidental, de consequências lamentáveis. Os americanos já o compreenderam muito bem.
Imaginam, talvez, que apoiando o almirante Kolchak e o general Denikin favorecem um partido liberal republicano, e isto já é um erro. Quaisquer que fossem as intenções pessoais destes dois chefes militares, a maioria dos que se agruparam em torno deles tem outros intenções. Necessariamente, seu triunfo significaria um retorno da monarquia, a reação e rios de sangue.
Os aliados que compreendam com clareza os acontecimentos deverão, portanto, repudiar qualquer intervenção armada. Especialmente se, querendo ajudar a Rússia, se derem conta de que há uma imensa tarefa par fazer em outras direções.
Falta-nos pão em toda a grande área das províncias centrais e setentrionais. É a fome, com todas as suas consequências. Toda uma geração está sendo consumida… E o Ocidente nos nega o direito de lhe comprar pão! Por quê?! Por que quer nos trazer os Romanov de novo?
Em toda a Rússia faltam produtos industriais. O camponês paga preços exorbitantes por um arado, uma foice, alguns cravos, uma agulha, um metro ou qualquer tipo de tecido; paga, por exemplo, mil rublos (que antes equivaliam a 2.500 francos) pelas quatro rodas com borda de ferro para uma carreta ruim. E na Ucrânia a coisa é ainda pior: não se encontra nenhum produto, a nenhum preço.
Em vez de fazer o papel da Áustria, Prússia e Rússia em 1793 contra a França, os aliados deveriam tentar ajudar o povo russo a sair desta terrível situação. Além disso, seriam necessários mares de sangue paia obrigar o povo russo a voltar para o passado e ainda assim não se conseguiria. Os aliados deveriam ajudar-nos a construir um novo futuro elaborando uma vida social nova que já se esboça, apesar de tudo. Venham, sem mais demora, ajudar nossos filhos! Venham ajudar-nos no trabalho construtivo que se necessita!, e, para isto, que não nos enviem nem diplomatas nem generais, mas pão, ferramentas para produzir e técnicos, daqueles que souberam ajudar com tanta eficácia os aliados, durante estes cinco anos terríveis, a impedirem a desorganização econômica e a rechaçar a bárbara invasão dos alemães…
Lembram-me que devo terminar esta carta, já muito longa. Eu o farei mandando-lhe um abraço fraternal.
Piotr Kropotkin
Outros artigos em: Kropotkin e a Revolução Russa