I. Encontro com Lênin, por Vladimir Bonch-Bruyevich

Posso determinar quase com exatidão a data do encontro entre Vladimir Illich e Piotr Alekseevich (Kropotkin) entre 8 e 10 de maio de 1919. Vladimir Illich marcou a hora para depois da jornada de trabalho do Conselho de Comissários do Povo e me informou que chegaria ao meu apartamento aproximadamente às cinco da tarde. Disse a Piotr Alekseevich, por telefone, o dia e a hora da reunião e, chegado o momento, mandei um carro para pegá-lo. Vladimir Illich chegou a minha casa antes de Piotr Alekseevich. Falamos das obras dos revolucionários de épocas anteriores. Durante a conversa, Vladimir Hlich manifestou a opinião de que logo chegaria o momento em que veríamos edições completas das obras de nossos principais emigrados, com notas, introduções e pesquisa complementar.

“Isto é muito necessário”, disse Vladimir Illich, “pois não só devemos estudar a história de nosso movimento revolucionário, mas também temos que dar aos jovens pesquisadores a oportunidade de escrever muitos artigos baseados nestes documentos e materiais para familiarizar a maior quantidade possível de pessoas com tudo o que ocorria na Rússia durante a última geração. Nada mais pernicioso que pensar que a história de nosso país começa no dia em que ocorreu a Revolução de Outubro. E, no entanto, ouvi dizer isso. É uma besteira que não merece nem sequer ser pensada. Nossa indústria está se recuperando, a escassez de papel e a crise da imprensa está passando e poderemos publicar cem mil exemplares de livros como a História da Revolução Francesa, de Kropotkin, e outras obras suas; embora seja um anarquista, editaremos suas obras completas com todas as notas necessárias para que o leitor compreenda a diferença entre o anarquismo pequeno-burguês e a verdadeira visão comunista do mundo que o marxismo revolucionário tem.”

Vladimir Illich pegou de minha biblioteca um livro de Kropotkin e outro de Bakunin, que eu guardava desde 1905, e os folheou rapidamente. Disseram-me então que Kropotkin chegara e saí para recebê-lo. Estava subindo lentamente a escada de casa, muito alta. Saudei-o e fomos para meu apartamento. Vladimir Illich atravessou rapidamente o corredor para se aproximar dele e, sorrindo calidamente, deu-lhe boas-vindas. Piotr Alekseevich, entusiasmado, disse-lhe imediatamente:

“Como estou contente em vê-lo, Vladimir Illich! Temos diferenças sobre muitas questões, táticas e organizativas. Mas nossos objetivos são idênticos e o que você e seus camaradas fazem em nome do comunismo revela-se muito próximo e muito desejado por meu velho coração.”

Vladimir Illich pegou-o pelo braço e muito atenciosa e cortesmente conduziu-o a meu escritório, ajudou-o a sentar-se numa poltrona e depois sentou-se diante dele, do outro lado de minha mesa.

“Bem, já que nossos objetivos são idênticos, muita coisa nos une na luta”, disse. “Certamente é possível avançar para o mesmo objetivo por vários caminhos, mas acredito que em muitos aspectos nossos caminhos têm que coincidir.”

“Sim, sem dúvida”, interrompeu Piotr Alekseevich, “mas vocês proíbem as cooperativas e eu estou a favor delas.”

“E nós também estamos a favor delas”, exclamou em voz alta Vladimir Illich, “mas contra este tipo de cooperativa que serve de refúgio aos kulaks, fazendeiros, comerciantes e ao capital privado em geral. O que queremos, simplesmente, é tirar a máscara desse falso cooperativismo e dar às massas a oportunidade de se unir numa cooperativa autêntica.”

“Não vou discutir isso”, respondeu Kropotkin, “e, certamente, é preciso lutar com todas as forças contra a falta de honradez e a mistificação onde quer que surjam. Não precisamos de nenhuma máscara. Devemos denunciar sem piedade cada mentira, seja qual for. Mas aqui, em Dimitrov, sei que estão sendo perseguidas cooperativas que nada têm a ver com essas que você acaba de mencionar; e é porque as autoridades locais, talvez até mesmo revolucionários de ontem, se burocratizaram, converteram-se em funcionários que querem tiranizar seus subordinados e que acreditam, além disso, que todo o país é seu subordinado.”

“Nos somos inimigos dos burocratas, onde quer que apareçam”, disse Vladimir Illich. “Somos inimigos dos burocratas e da burocracia, e devemos arrancar pela raiz esses resíduos de sistemas antigos que permanecem no nosso; mas, definitivamente, Piotr Alekseevich, você deve compreender que é muito difícil remodelar as pessoas porque, como Marx disse, a fortaleza mais terrível e inexpugnável é o cérebro humano. Estamos tomando todas as medidas possíveis para triunfar nesta luta; e, sem dúvida, a própria vida é a única capaz de ensinar a muitos. Nossa falta de cultura, nosso analfabetismo, nosso atraso são evidentes em todos os terrenos e ninguém pode nos acusar, como partido, como poder governamental, de tudo o que funciona mal na estrutura desse poder; e menos ainda do que ocorre em lugares longínquos do campo, afastados dos centros de decisão.”

“Como resultado, então, fica uma situação nada fácil para os que têm que suportar o poder destas autoridades incultas”, respondeu veementemente P. A. Kropotkin, “que, além disso, parece ser um veneno irresistível para cada um daqueles que se consideram donos da autoridade.”

“Mas não há outro caminho”, acrescentou Vladimir Illich. “Não se pode fazer uma revolução com luva branca. Sabemos perfeitamente que cometemos e cometeremos muitos erros, que há muitas irregularidades e muitas pessoas que sofrem desnecessariamente. Corrigiremos o que pudermos; reconheceremos nossos equívocos, muitas vezes devidos a pura estupidez. Mas é impossível não cometa erros durante uma revolução. Não cometê-los significaria renunciar a viver, não fazer absolutamente nada. Nós preferimos cometer erros e, assim, agir. Queremos agir e agiremos, apesar de todos os erros, e levaremos nossa revolução socialista até o final, inevitavelmente vitoriosa. E você pode nos ajudar nessa tarefa nos comunicando toda informação que tenha sobre irregularidades. Pode estar seguro de que eu e todos nós a estudaremos com o máximo zelo.”

“Excelente”, disse Kropotkin. “Nem eu nem ninguém se negará a ajudá-los, a você e a seus camaradas, todo o possível, mas nossa ajuda consistirá principalmente em informá-los de todas as irregularidades que ocorram em qualquer lugar e das quais o povo se queixa com freqüência…”

“Não são queixas, são clamores da resistência contra-revolucionária, com a qual não temos nem teremos piedade…”

“Mas você diz que é impossível não ter autoridade”, Piotr Alekseevich começou novamente a teorizar, “e eu digo que é possível . Em qualquer lugar que se observe surge a base para a não-autoridade. Acabo de receber notícias de que na Inglaterra os estivadores dos portos organizaram uma cooperativa excelente, completamente livre, à qual acorrem os trabalhadores de todas as demais indústrias. O movimento cooperativista é enorme e seu significado é extraordinariamente importante…”

Observei Vladimir Illich. Seus olhos brilhavam um pouco zombeteiros e, ouvindo atentamente Piotr Alekseevich, parecia assombrado pelo fato de que, depois do enorme salto para adiante e da varredura que significara a Revolução de Outubro, ainda se pudesse continuar falando de cooperativas e mais cooperativas… E Piotr Alekseevich continuava falando de outro lugar da Inglaterra em que se havia organizado mais cooperativas, e de um terceiro lugar, na Espanha, em que funcionava uma pequena federação, e de que o movimento sindicalista ressurgia na França… “É bastante daninho”, não pude deixar de interrompê-lo, “não prestar nenhuma atenção ao lado político da vida e desmoralizar as massas trabalhadoras distraindo-as de seus objetivos imediatos…”

“Mas o movimento profissional está reunindo milhões a seu redor; isto, em si mesmo, já é um fator importantíssimo”, disse Piotr Alekseevich excitado. “Junto com o movimento cooperativista, é um imenso passo para diante…”

“Isso é saudável e bom”, voltou a interromper Vladimir Illich. “É indubitável que o movimento cooperativista é importante, assim como o sindicalismo é daninho. Que poderia ter de mim? Isto é evidente quando se trata de um autêntico movimento cooperativista, enraizado nas camadas mais amplas da população. Mas é verdadeiramente esse o problema? E possível avançar para algo novo com esses métodos? Você acredita realmente que o mundo capitalista vai capitular diante do movimento cooperativista? O que está procurando, com todos os métodos, é apoderar-se desse movimento. E essas pequenas cooperativas, esses grupinhos de trabalhadores ingleses sem poder algum acabarão esmagados e desapiadadamente transformados em servidores do capital. Este novo ímpeto do cooperativismo a que você dá tanta importância acabará absolutamente submetido, por meio de mil fios que o agarrarão como uma teia de aranha. Tudo isto são ninharias! Perdoe-me, mas são futilidades! O que precisamos é da ação direta das massas, da ação revolucionária das massas, é preciso agarrar o mundo capitalista pela garganta e derrubá-lo. E no momento não vejo este tipo de ação, nem avanço algum para o federalismo, o comunismo ou a revolução social. Tudo isto são brincadeiras de crianças, tagarelices ociosas, que não tocam o chão de forma realista, sem força, sem meios de ação, sem capacidade de se aproximar, quase absolutamente, de nossos objetivos socialistas. Uma luta direta e aberta, uma luta até a última gota de sangue, é disso que precisamos. É preciso proclamar a guerra civil em todas as partes, apoiada por todas as forças revolucionárias e de oposição, na medida em que sejam capazes de chegar a essa guerra civil. Haverá muito sangue derramado e muitos honores nessa luta. Estou convencido de que na Europa Ocidental estes horrores serão inclusive maiores que em nosso país, dada a maior dureza da luta de classes lá e a maior tensão das forças que terão que se enfrentar nesta, talvez última, batalha contra o mundo imperialista.”

Vladimir Illich levantou-se excitado, depois de haver dito tudo isto clara e cuidadosamente. Piotr Alekseevich reclinara-se para trás em sua poltrona e, com uma atenção que derivava para a indiferença, ouvia as acaloradas palavras de Vladimir Illich. A partir daí deixou de falar de cooperativas.

“Certamente você tem razão”, disse, “sem luta não se conseguirá nada em nenhum país, sem uma luta desesperada…”

“E além disso massiva”, exclamou Vladimir Illich. “Não precisamos da luta nem dos atos violentos de pessoas individuais. Já é hora de os anarquistas compreenderem isto e deixarem de desperdiçar sua energia revolucionária em objetivos perfeitamente inúteis. Só as massas, só com as massas e por meio das massas, a partir do trabalho clandestino até o terror vermelho massivo, se necessário, e até a guerra civil, a guerra em todas as frentes, a guerra de todos contra todos, só esse tipo de luta pode ter êxito. Todas as demais táticas, incluídas as dos anarquistas, foram derrotadas pela história e estão arquivadas, não servem para nada, não atraem ninguém e simplesmente desmoralizam os que, por alguma razão, sentem-se seduzidos por estas atitudes velhas e gastas…”

Vladimir Illich deteve-se de repente, sorriu amavelmente e disse: “Perdoe-me, parece que me deixei arrastar por minhas palavras e estou cansando-o. Mas é isto que nos afeta muito, os bolcheviques. É uma espécie de problema nosso, de álcool para nós, e o sentimos tão próximo que não podemos falar nisso com calma.”

“Não, não”, Kropotkin respondeu. “Me agrada muito ouvi-lo falar assim. Se você e seus camaradas pensam desta maneira, se não estão intoxicados com o poder e se sentem imunizados contra a escravidão da autoridade estatal, poderão fazer muitas coisas. A revolução, neste caso, está em boas mãos.”

“Faremos o que pudermos”, respondeu afavelmente Lenin, “e já nos ocuparemos — esta era sua frase favorita — para que nenhum de nós se deixe encher de vaidade e pense demasiado em si mesmo. Esta é uma doença terrível, mas temos um bom remédio para ela: mandar esses camaradas trabalhar novamente com o povo.”

“Estupendo, estupendo”, exclamou Kropotkin. “Na minha opinião, isto deveria ser feito com todo mundo, e com mais frequência. Isto é útil para todos. Nunca se deve perder contato com as massas trabalhadoras e se deve saber que só com as massas é possível tomar realidade o que se planejou nos programas mais progressistas. Mas os social-democratas e todas essas pessoas acreditam que no partido de vocês há muitos que não são trabalhadores e que estes elementos estão corrompendo os trabalhadores. O que se precisa é o contrário: que o elemento trabalhador prevaleça e que os não- trabalhadores somente ajudem as massas em questões de instrução, de domínio de alguma área do conhecimento; não devem ser mais que uma espécie de serviço, de apoio, qualquer que seja a organização socialista.”

“Precisamos de massas educadas”, disse Vladimir Illich, “e seria interessante, por exemplo, que seu livro História da Revolução Francesa pudesse ser lançado imediatamente numa edição mais ampla. É um livro, definitivamente, útil para todo mundo. Gostaríamos de publicar essa excelente obra e fazê-lo em quantidade que pudesse estar em todas as bibliotecas, nas salas de leitura dos povoados, dos regimentos…”

“Mas quem o publicaria? Não permitirei uma edição estatal…”

“Não, não”, Vladimir Illich interrompeu, sorrindo ironicamente. “Naturalmente, não seria o Serviço Editorial do Estado, mas uma editora cooperativa…”

Piotr Alekseevich assentiu com a cabeça. “Nesse caso, muito bem”, disse, visivelmente satisfeito com a proposta. “Se acha o livro interessante e necessário, estou de acordo em que se publique uma edição barata. Talvez possamos encontrar uma editora cooperativa que o aceite…”

“Nós a encontremos, nós a encontremos”, assegurou Vladimir Illich. “Disso estou certo.”

Com isto, a conversa entre Piotr Alekseevich e Vladimir Illich começou a minguar. Vladimir Illich olhou seu relógio e disse que tinha que preparar uma sessão do Conselho de Comissários do Povo. Despediu-se de Piotr Alekseevich muito afetuosamente, dizendo-lhe que sempre ficaria encantado em receber cartas e conselhos seus, aos quais prestaria atenção muito seriamente. Piotr Alekseevich despediu-se de nós e, depois que o acompanhamos até a porta, foi no mesmo automóvel para sua casa.

Outros artigos em: Kropotkin e a Revolução Russa