Foi neste momento que recebemos a notícia da chegada de P. A. Kropotkin em Petrogrado. Os jornais já tinham falado do acontecimento, mas nós, camponeses anarquistas, não tínhamos dado crédito à notícia, não recebendo as indicações precisas que teriam permitido aos anarquistas começar a reunir suas forças esparsas e a ocupar de modo organizado suas posições de combate na Revolução.
Mas agora os jornais e as cartas recebidos de Petrogrado nos informavam que P. A. Kropotkin que, durante sua viagem de Londres para Petrogrado, tinha sofrido uma grave doença, chegara afinal ao próprio coração da Revolução, em Petrogrado. Diziam-nos da acolhida que lhe tinha sido feita pelos socialistas então no poder, Kerenski à testa. Um contentamento indescritível apoderou-se de nosso grupo. Foi organizada uma reunião geral, inteiramente consagrada a debater a questão: “O que nos dirá nosso venerável ancião Piotr Alexievitch?”.
Todos foram da mesma opinião: P. A. indicará os meios práticos de organizar nosso movimento nos campos. Com sua sensibilidade e sua viva compreensão, não poderá deixar de ver a necessidade imperiosa para as aldeias de ter o apoio de nossa força revolucionária. Como verdadeiro apóstolo do anarquismo, não deixará passar este momento único na história da Rússia e, aproveitando de seu ascendente moral sobre os nossos, esforçar-se-á por formular com precisão as diretrizes que deverão inspirar os anarquistas nesta Revolução.
Redigi uma carta de boas-vindas em nome de nosso grupo de Goulaï-Polé e a enviei para P. A. Kropotkin por intermédio, creio eu, da redação do jornal Bourevestnik.
Nessa carta, saudávamos P. A. Kropotkin e o felicitávamos em sua feliz volta para a pátria, exprimindo-lhe a certeza de que esta, na pessoa de seus melhores representantes, estava esperando com impaciência aquele que tinha lutado sua vida inteira pelas ideias da mais alta justiça, ideias estas que não podiam deixar de exercer influência sobre a elaboração e a realização da Revolução russa.
Tínhamos assinado: grupo anarquista-comunista ucraniano da aldeia de Goulaï-Polé, departamento de Ekaterinoslav.
Não esperávamos receber resposta a nossa modesta carta de boas-vindas, mas esperávamos, com imensa impaciência e grande ansiedade, a resposta a nossas perguntas, compreendendo que, sem essa resposta, desperdiçaríamos nossas forças, e talvez em pura perda; pois poderia acontecer que o que estávamos procurando, os outros grupos não estariam procurando, ou então estariam procurando, mas em direção totalmente diferente da nossa. Estava nos parecendo que os campos escravizados colocavam esta pergunta direta: “Qual é o caminho, e quais são os meios para apoderar-se das terras e para, sem ter que se submeter a nenhuma autoridade, expulsar os parasitas ociosos, que vivem a nossas custas no bem-estar e no luxo?”.
A resposta tinha sido dada por P. A. em sua obra A conquista do pão. Mas os trabalhadores não tinham lido esta obra, somente algumas unidades a conheciam, e, agora, as massas não tinham mais tempo para ler. Era preciso que uma voz enérgica lhes expusesse numa linguagem acessível e clara os pontos essenciais de A conquista do pão, para impedir-lhes de soçobrar numa inércia especulativa e mostrar-lhes de improviso o caminho no qual empenhar-se e o fio condutor a ser seguido. Mas quem lhes iria dizer esta palavra viva, simples e forte? Somente podia fazer isto um anarquista-propagandista, um organizador.
“Mas, dizia eu, com a mão na consciência, houve na Rússia ou na Ucrânia escolas anarquistas de propaganda? Nunca tive conhecimento que houvesse. E, se por acaso houve, onde estão então, pergunto-lhes eu, os lutadores de vanguarda que elas formaram?
“Eis que são duas vezes que percorro regiões que pertenciam a distritos e departamentos diferentes, e nunca encontrei um camponês que, à minha pergunta: ‘Estiveram por aqui oradores anarquistas?’ tenha-me respondido: ‘Sim, já tivemos’. Em toda a parte, a resposta foi: ‘Nunca tivemos. Estamos muito felizes e reconhecidos por ver que o senhor não nos está esquecendo’. Onde estão, pois, as forças reais de nosso movimento? Segundo penso, estão vegetando nas cidades, onde muitas vezes fazem qualquer outra coisa ao invés daquilo que deveriam fazer”.
Se a idade avançada de P. A. lhe impedisse de tomar parte ativa na Revolução e de dar um impulso novo a nossos camaradas das cidades, o campo escravizado cairia definitivamente sob o domínio dos partidos políticos e do Governo Provisório. Isto significaria o fim da Revolução.
Eu era apoiado nessa ideia por aqueles de meus camaradas que, trabalhando nas usinas, não tinham percorrido os campos e ignoravam o estado de espírito real dos camponeses. Aqueles que, ao contrário, conheciam o campo, me criticavam severamente, dizendo que eu tinha falta de confiança nos sentimentos revolucionários dos camponeses. “O campo, diziam eles, soube tão bem compreender as intenções dos agentes dos diferentes partidos socialistas e burgueses vindos a ele de parte do Governo Provisório que nunca, em caso algum, irá se deixar enganar”.
Com efeito, os indícios de tal estado de espírito existiam nos campos, mas eram relativamente fracos. Os camponeses tinham necessidade de se sentir melhor apoiados, nesses momentos críticos, pelo impulso revolucionário das cidades, para executar obra fecunda, acabar com as classes privilegiadas existentes e não deixar chegar outras em seu lugar.
Quinze dias se passaram assim. Nenhuma notícia nos chegava de Petrogrado; nós continuávamos a não saber como P. A. iria considerar o papel de nosso movimento dentro da Revolução. Estaríamos nós com a verdade? Teríamos tido razão em agrupar nossas forças nas cidades, não dando senão pouca ou nenhuma atenção aos campos escravizados?
Chegamos assim ao momento em que deveria se iniciar o Congresso Departamental dos Sovietes dos Deputados operários, camponeses, soldados e cossacos, e da União dos Camponeses.
Uma assembleia da União dos Camponeses foi convocada em Goulaï-Polé, durante a qual foi estudada a questão da participação no Congresso. A transformação das Uniões dos Camponeses num Soviete de Camponeses prendeu por longo tempo nossa atenção. Decidiu-se, por fim, enviar um delegado ao Congresso. Fui eleito representante dos camponeses, e o camarada Séreguin representante dos operários.
Estava particularmente feliz por ter que ir a Ekaterinoslav onde esperava entrar em contato com a Federação anarquista e conversar pessoalmente sobre todas as questões de interesse do nosso grupo. (A questão que mais tinha interesse para o grupo era a seguinte: por que a cidade não envia propagandistas-anarquistas para as aldeias?)
Viajei de propósito um dia antes do combinado, e dirigi-me diretamente para a sede da Federação. Encontrei ali o secretário, o camarada Moltchanski, de Odessa, velho companheiro que eu tinha conhecido nos trabalhos forçados. Foi uma grande felicidade: abraçamo-nos.
Imediatamente, caí sobre ele: que se fazia nas cidades? Por que não se enviava organizadores aos centros rurais?
O camarada Moltchanski, segundo seu hábito, gesticulou, agitou-se e disse: “Não temos forças, irmão. Somos fracos. Acabamos apenas de nos organizar aqui, e apenas conseguimos responder às necessidades dos operários de nossas usinas e dos soldados de nossa guarnição. Esperamos que, com o tempo, nossas forças irão aumentar e então, apertaremos nossos laços com os campos e estabeleceremos uma propaganda enérgica nas aldeias”.
Ficamos a seguir por longo tempo silenciosos, absortos, cada um de nós com seus pensamentos, refletindo no futuro de nosso movimento na Revolução. Então o camarada Moltchanski começou a me confortar, garantindo-me que, num futuro muito próximo, os camaradas Rogdaev, Rochtchine, Archinov e muitos outros ainda, chegariam em Ekaterinoslav e que então a ação seria intensificada e se estenderia até as aldeias. Levou-me a seguir para o clube da Federação, anteriormente “Clube inglês”.
Ali encontrei inúmeros camaradas, uns conversando sobre a Revolução, outros lendo, outros, enfim, tomando sua refeição. Numa palavra, encontrei ali a sociedade “anarquista” que não admite em seu seio, por princípio, nenhuma ordem, nenhuma autoridade, e que não consagra nenhum momento à propaganda entre a massa dos trabalhadores dos campos, que contudo tem tão grande necessidade disso.
Perguntei-me então: por que, entretanto, tomaram da burguesia um edifício tão luxuoso e tão grande? Para que lhes pode ele servir, se, no meio desta multidão gritante, não há ordem alguma, nem mesmo no meio dos gritos com os quais eles resolvem os problemas mais graves da Revolução, se sua sala não está varrida, as cadeiras estão derrubadas e a grande mesa, recoberta por luxuoso veludo, está cheia de crostas de pão, cabeças de arenques e ossos roídos?
Meu coração ficou tristemente apertado a essa visão. Nesse momento, entrou o camarada I. Tarassiouk, apelidado de Kabas, adjunto do secretário, o camarada Moltchanski. Ele exclamou com indignação e tristeza: “Que aqueles que comeram a essa mesa a limpem!”, e começou a erguer as cadeiras derrubadas.
A mesa foi imediatamente desembaraçada e limpa, e começou-se a varrer o chão.
Saindo do clube, voltei para a sede da Federação, onde escolhi algumas brochuras para levar para Goulaï-Polé e me preparei para ir aos escritórios do Congresso para obter um quarto gratuito para minha estadia, quando entrou uma moça. Era uma camarada. Ele vinha pedir que alguém a acompanhasse ao teatro municipal para secundá-la em sua luta contra o Socialistas-Democratas. “Nil”, que arrastava atrás de si um bom número de operários. Os camaradas presentes disseram que estavam todos ocupados e, sem uma palavra, a moça foi-se embora.
Moltchanski me perguntou: “Você não a conhece? É uma camarada gentil e enérgica”. Saí imediatamente e alcancei-a. Propus-lhe acompanhá-la à reunião, mas ela me respondeu: “Se o senhor não falar, não será de utilidade alguma”. Prometi-lhe que falaria.
Tomou-me então pelo braço e dirigimo-nos rapidamente em direção ao teatro. No caminho, essa jovem e encantadora camarada me confiou que havia apenas três anos que se tinha tornado anarquista. Isso não tinha acontecido por acaso. Durante dois anos, tinha lido as obras de Kropotkin e de Bakunin; em seguida, tinha sentido se consolidar suas convicções. Agora estava completamente conquistada para essas ideias e fazia uma propaganda ativa. Até o mês de julho havia falado diante dos operários, mas não tinha ousado tomar a palavra contra os inimigos dos anarquistas, os Socialistas-Democratas. Em julho, ela se atreveu a tal, fez um discurso durante uma reunião contra o Socialistas-Democratas. “Nil” e foi derrotada.
“Agora, disse ela, estou decidida a reiniciar a luta contra este ‘Nil’, um dos agitadores mais brilhantes do partido social-democrata.”
Nossa conversação parou aí.
Na reunião, tomei a palavra contra o famoso “Nil”, sob o pseudônimo de “Skromny”1 (meu pseudônimo do tempo dos trabalhos forçados). Falei mal, apesar de meus camaradas terem afirmado depois que meu discurso tinha sido muito bom, que apenas eu estivera um pouco nervoso.
Quanto à minha jovem e enérgica camarada, ela conquistou a sala toda com sua voz, doce, mas de uma bela força oratória. O auditório ficou subjugado por essa voz, e o silêncio absoluto que reinou enquanto ela falava mudou-se em aplausos furiosos e em gritos de aprovação: “Muito bem, muito bem, camarada!”.
Ela não falou por muito tempo, quarenta e três minutos ao todo, mas soube tão bem agitar a massa dos ouvintes contra as teses sustentadas por “Nil” que, quando este último se adiantou para responder àqueles que tinham falado contra ele, a sala inteira exclamou: “Não é verdade! Não nos empaturre a cabeça — Os anarquistas dizem a verdade — Você, você só fala mentiras!”.
Ao regressar da reunião, vários camaradas se juntaram a nós. A moça que tinha falado, me disse: “Sabe, camarada Skromny, esse ‘Nil’, por sua influência sobre os operários, me deixava louca, e tinha-me proposto como finalidade dar um fim a isso, custasse o que custasse. Só uma coisa me constrangia: minha mocidade. Os operários mostram ter maior confiança nos camaradas de mais idade. Tenho medo, acrescentou ela, que isso possa me impedir de realizar meu dever para com eles”.
Não pude senão desejar-lhe novos êxitos em sua obra anarquista, e nos separamos, depois de nos termos prometido nos reencontrar no dia seguinte para falar de Goulaï-Polé, de que ela tinha ouvido dizer muitas coisas boas.
Essa reunião me fez chegar atrasado ao Escritório do Congresso e não pude obter quarto no hotel. Passei então a noite em casa do camarada Séreguin.
Consagrei todo o dia seguinte ao Congresso e não pude encontrar um momento para encontrar a jovem camarada, como lhe tinha prometido, todo o dia seguinte, fiquei ocupadíssimo devido às sessões da Comissão agrária. Encontrei, nessa ocasião, o Socialista-Revolucionário de Esquerda, Schneider, enviado ao Congresso Departamental pelo Comitê Executivo Central Pan-Russo dos Sovietes dos Deputados operários, camponeses, soldados e cossacos, e eleito, também ele, para a Comissão agrária.
A Comissão votou por unanimidade, e com perfeito acordo, a socialização das terras, e transmitiu esse voto ao Escritório do Congresso. A Comissão pediu a seguir ao camarada Schneider que lhe expusesse a situação existente em Petrogrado.
Ele não fez senão um simples resumo, faltando-lhe tempo, e nos pediu para sustentar no Congresso a resolução de reorganização das Uniões dos Camponeses em Sovietes. Esta proposição foi em seguida votada pelo Congresso.
Foi essa a única questão levada para a ordem do dia, nos dias 5 e 7 de agosto de 1917, que ainda não tinha sido considerada em Goulaï-Polé.
Quando de nossa volta, e após uma série de relatórios, a União dos Camponeses de Goulaï-Polé foi transformada em Soviete; seus princípios não ficaram modificados por isso, nem seus métodos de ação em vista da luta para a qual ela preparava, de maneira intensiva, os camponeses; ela propunha expulsar os patrões das usinas e anular os direitos de propriedade destes últimos sobre as empresas públicas.
Enquanto estávamos ocupados com essas transformações puramente de forma, abria-se em Moscou, no dia 14 de agosto, a Conferência Democrática Pan-Russa, em cuja tribuna via-se aparecer nosso querido e honrado camarada P. A. Kropotkin.
Nosso grupo anarquista-comunista de Goulaï-Polé ficou consternado com essa notícia, apesar de compreender muito bem que nosso velho amigo, depois de tantos anos de labor, constantemente exilado e exclusivamente preocupado em seus dias de velhice de ideias humanitárias, pudesse dificilmente, agora que tinha voltado para a Rússia, recusar seu auxílio a essa Conferência. Mas todas estas considerações passaram para o segundo plano, diante do trágico momento que se seguiu.
Condenamos dentro de nós nosso velho amigo por sua participação nessa Conferência, imaginando ingenuamente que o antigo apóstolo do anarquismo revolucionário se transformava num velho senti¬mental, aspirando à tranquilidade e procurando forças para aplicar uma última vez seu saber à vida. Mas essa censura permaneceu tácita, e nunca ficou conhecida de nossos inimigos; pois, no mais profundo de nossa alma, Kropotkin continuava sendo para nós o maior e o mais forte teórico, o apóstolo do movimento anarquista. Sabíamos que, não fosse sua idade, ele se teria colocado à frente da Revolução russa e teria sido o chefe incontestado da Anarquia.
Tínhamos razão ou não? A verdade é que nunca discutimos com nossos inimigos políticos sobre o problema da participação de Kropotkin na Conferência Democrática Pan-Russa de Moscou.
Assim, dávamos ouvido àquilo que Kropotkin dizia e nosso entusiasmo diminuía. Sentíamos que ele sempre nos seria caro e que permaneceria próximo a nós, mas a Revolução nos chamava para outro lado: por razões de caráter puramente artificial, a Revolução estava atravessando uma fase decisiva, pois estava constrangida por todos os partidos que entravam na composição do “Governo Provisório”. Ora, estes se tornavam cada dia mais sólidos e mais firmes, formando uma permanente ameaça contra-revolucionária.
1Skromny significa modesto. (N. T.)
* O presente texto corresponde ao décimo capítulo do livro A revolução russa na Ucrânia (março 1917 – abril 1918), de Nestor Makhno.