Anarquia sem adjetivos, de Fernando Tarrida de Mármol

Nota de apresentação

No final do século XIX os anarquistas estavam divididos em projetos econômicos diferentes para a sociedade do porvir pela qual lutavam. Enquanto uns a concebiam como coletivista, outros a pensavam comunista. Os primeiros tinham como lema “a cada um segundo seu trabalho”; os segundos propunham um mundo em que a contribuição às tarefas e a divisão dos produtos se faria “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. O espanhol Fernando Tarrida del Mármol (1861-1915) escreveu uma carta para a redação do jornal La Révolte, semanário anarquista parisiense editado entre os anos 1887 e 1894. Se trata de um documento importante que abriu uma via de entendimento e superação das diferenças entre os grupos anarquistas. Também serviu como exemplo de trabalho eficaz para a difusão do ideal anarquista.

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Anarquia sem adjetivos

Carta à La Révolte (1890) – Fernando Tárrida de Mármol

Um relato das estratégias de difusão do ideal anarquista

Barcelona, 7 de agosto de 1890

Companheiros de La Révolte:

Quisera explicar com clareza a ideia que faço da tática revolucionária dos anarquista franceses; não podendo escrever uma série de artigos como seria melhor, envio-lhes esta carta. Dela tirarão o que contenha de bom.

A decisão revolucionária não faltou nunca ao caráter francês, havendo demonstrado os anarquistas, em infinidade de circunstâncias, que não carecem de propagandistas e revolucionários. O número de aderentes é bastante grande e com grandes pensadores, propagandistas decididos e adeptos entusiastas, França, na verdade, é o país onde se produzem menos atos importantes para a anarquia. Isto é o que me faz pensar. Eis aqui porque disse-lhes que achava que a sua tática revolucionária não era boa. Nada fundamental divide os anarquistas franceses dos anarquistas espanhóis e, portanto, na prática, nos encontramos a grande distância. Todos nós aceitamos a anarquia como a integração de todas as liberdades e sua única garantia; como a impulsão e a soma do bem-estar humano. Não mais leis nem repressões; desenvolvimento espontâneo, natural em todos os atos. Nem superiores nem inferiores, nem governos nem governados. Anulação de toda distinção de classe; somente seres conscientes que se buscam, que se atraem, discutem, resolvem, produzem, se amam, sem outra finalidade que o bem-estar comum. Assim é como todos concebemos a anarquia, como todos concebemos a sociedade do futuro; e é para a realização desse conceito que trabalhamos todos. Onde, pois, estão as diferenças?

Segundo me parece, vocês, extasiados com a contemplação do Ideal, traçaram uma linha de conduta ideal, um puritanismo improdutivo, no qual desperdiçam quantidade de forças que poderiam fazer desaparecer aos mais fortes organismos e que, assim mal empregadas, nada produzem. Esqueceram que estão rodeados por seres livres, zelosos de sua liberdade e de sua dignidade, mas sim por escravos que esperam ser libertados. Esqueceram que seus adversários estão organizados e todos os dias procuram fortalecer-se mais para continuar imperando. Esqueceram, enfim, que ainda os que trabalham para o bem vivem na desorganização social atual e estão cheios de vícios e preconceitos.

De tudo isto se deduz que aceitam uma liberdade absoluta e todo o que esperam da iniciativa individual, levada a um ponto tal em que já não há pactos ou acordos possíveis. Sem acordos, sem reuniões nas quais se tomem resoluções, o importante e essencial seria que cada qual faça o que mais lhe agrade. Com o resultado de que se alguém deseja fazer algo bom, carece de lugar para reunir-se com todos os que pensam como ele, com o fim de expor sua iniciativa, escutar seus conselhos e aceitar sua oposição; deve fazê-lo tudo por si mesmo ou não fazer nada.

Deste modo, criar comissões para trabalhos administrativos, ou fixar contribuições para fazer frente a tal ou qual necessidade, seria uma imposição. De maneira que se um companheiro ou um grupo quer relacionar-se como todos os anarquistas da França ou do mundo para uma determinada ideia, não pode fazê-lo e deve renunciar à ideia. Tudo quanto não seja a revolução social seria assim uma besteira. Preocuparem-se os anarquistas com os salários que se tornam ainda mais insuficientes, ou por que a jornada de trabalho se alarga, por que se insulta aos operários nas fábricas ou porque as mulheres são prostituídas pelos patrões? Seu critério é que enquanto dure o regime burguês essas coisas ocorrerão sempre e só se deve preocupar-se com a meta final. Procedendo assim ocorre que a maioria dos proletários que sofrem e acreditam em uma libertação próxima darão de ombros aos anarquistas.

Se continuasse poderia amontoar exemplos, que nos levariam sempre ao mesmo resultado: impotência. Não porque vocês carecem de elementos, mas porque estão dispersos, sem conexão entre si.

Na Espanha seguimos uma tática completamente diferente, que não duvido que para vocês seria uma heresia digna da maior excomunhão, uma prática falaciosa que deve separar-se do campo de ação anarquista. Não obstante, acreditamos que somente deste modo poderemos fazer penetrar nossas ideias no seio do proletariado e nos desfazer do mundo burguês. Igual a vocês, desejamos a pureza do programa anarquista. Nada há tão intransigente e categórico como as ideias. Não admitimos meios termos e nenhum tipo de atenuante. Por isso em nossos escritos tratamos de ser tão explícitos quanto podemos. Nosso norte é a anarquia, o ponto que desejamos alcançar e em direção ao qual dirigimos nossa marcha. Mas em nosso caminho há toda uma série de obstáculos e para superá-los empregamos os meios que nos parecem melhores. Se não podemos adaptar nossa conduta a nossas ideias, fazemos saber, tratando assim de nos aproximar o máximo possível ao Ideal. Fazemos o que faria um viajante que quisesse ir a um país de clima temperado e para chegar a ele deveria atravessar os trópicos e as zonas glaciais: iria provido de roupa leves e de boas mantas, que deixará de lado chegado a seu destino. Seria estúpido e também ridículo querer lutar a socos contra um inimigo tão bem armado.

Do que expressei procede nossa tática. Somos anarquistas e expressamos a anarquia sem adjetivos. A anarquia é um axioma e a questão econômica algo secundário. Se nos questionar que é pela questão econômica que a anarquia é uma verdade. Mas nós acreditamos que ser anarquista significa ser adversário de toda autoridade e imposição e, por consequência, seja qual for o sistema que se preconize, é por considerá-lo a melhor defesa da anarquia, não desejando impô-lo àqueles que não o aceitam.

O que não quer dizer que colocamos de lado a questão econômica. Ao contrário, nos agrada discuti-la, mas somente como um aporte à solução ou soluções definitivas. Coisas excelentes disseram Cabet, Saint-Simon, Fourier, Robert Owen e outros; mas todos seus sistemas desapareceram porque queriam reduzir a Sociedade nos conceitos de seus cérebros, mesmo que muito de bom tenham feito para o esclarecimento da grande questão.

Veja que desde o instante em que propõe delinear a sociedade futura por um lado surgem as objeções e as perguntas dos adversários; e, por outro, o desejo natural de fazer uma obra completa e perfeita nos levará a inventar e traçar um sistema que, disso estamos seguros, desaparecerá como os outros.

Do individualismo anarquista de Spencer e outros pensadores burgueses, até os anarquistas individualistas socializantes – não encontro outras expressões – há uma grande distância, como ocorre entre os anarquistas coletivistas espanhóis de uma região e de outra; entre os mutualistas ingleses e estadunidenses, os comunistas libertários, etc.

Kropotkin, por exemplo, nos fala da vila industrial, reduzindo seu sistema, ou se prefere, sua teoria, à reunião de pequenas comunidades que produzem o que querem, no atual progresso da civilização. Por outro lado, Malatesta, que também é comunista libertário, deseja a construção de grandes organizações intercambiando seus produtos, que ainda aumentarão a potência criadora e a assombrosa atividade desde o século XIX, isenta de toda ação nociva.

Cada pessoa inteligente aponta e cria caminhos novos para a sociedade futura, fazendo adeptos por força hipnótica – se assim se pode dizer –, sugestionando a outros cérebros com estas ideias. Todos, em geral, temos sobre isto um plano particular.

Convenhamos, pois, como quase todos temos feito na Espanha, em chamar-nos simplesmente anarquistas. Em nossas conversas, em nossas conferências e em nossa imprensa, discutamos sobra as questões econômicas, mas nunca as mesmas deveriam ser causa de divisão entre anarquistas. Para o desenvolvimento da propaganda, para a conservação do ideal, temos necessidade de nos conhecer e ver-nos, devendo para isto constituir grupos. Na Espanha existem em quase todas as cidades, povoados e aldeias onde há anarquistas. São a força impulsora de todo movimento revolucionário. Os anarquistas não têm dinheiro nem meios fáceis para realizá-lo; para superar isto, a maioria de nós se autoimpôs uma pequena contribuição semanal ou mensal. Procedendo assim, podemos manter as relações necessárias entre todos os associados e poderíamos tê-las como toda a Terra, se os outros países tivessem uma organização como a nossa. Em nossos grupos não há autoridade. Colocamos um companheiro como secretário para receber as correspondências, outro como tesoureiro, etc. Quando são ordinárias, as reuniões se fazem a cada semana ou a cada quinze dias; se são extraordinárias, quantas vezes seja necessário. Para poupar gastos e trabalho, e também como medida de prudência no caso de perseguição, cria-se uma comissão de relações em escala nacional. Ela não toma iniciativas. Os que a compõem devem dirigir-se a seu grupo se desejam fazer propostas. Sua missão é de fazer conhecer a todos os grupos as resoluções e proposições que lhes comuniquem desde um ou vários grupos, tomar nota de todas as direções que se comunicam e enviá-las aos grupos que as solicitam, para colocar-se em relação direta com outros.

Tais são as linhas gerais da organização que foram aceitas no congresso de Valência e da qual falaram em La Révolte. O bem que produz é imenso. É o que mantém vivas as ideias anarquistas. Mas, esteja seguro, se reduzíssemos nossa ação somente à ação anarquista obteríamos pouca coisa. Acabaríamos por transforma-la em uma organização de pensadores discutindo sobre ideias, que com certeza degeneraria em uma sociedade de metafísicos discutindo sobre palavras. Acredito que isto ocorre um pouco ou muito com vocês na França. Ao empregar sua atividade somente para discutir sobre o ideal, acabam discutindo sobre o significado dos vocábulos. Uns se chamam egoístas e outros altruístas, para querer ambos a mesma coisa; ou chamam-se comunistas libertários uns e os outros individualistas, para no fundo expressar as mesmas ideias.

Não devemos esquecer que a maioria dos proletários está obrigada a trabalhar um número excessivo de horas, que se encontram extremamente miseráveis e que, por consequência, não pode comprar livros de Büchner, Darwin, Spencer, Lombroso, Max Nordau, etc., dos quais apenas conhecem os nomes. E se ainda o proletariado pudesse procurar livros, carece de estudos preparatórios de física, química, história natural e matemáticas necessários para compreender bem o que se lê. Tampouco tem tempo para estudar com método e nem seu cérebro está o bastante exercitado para poder assimilar bem estes estudos. Há exceções como a de Esteban em Germinal. Sedentos por saber, devoram quanto podem ler, mas quase nada retêm.

Nosso campo de ação não está somente no seio dos grupos, mas no meio do proletariado.

É nas sociedades de resistência onde estudamos e preparamos nosso plano de luta. Estas sociedades existirão enquanto dure o regime burguês. Os trabalhadores que não são escritores, pouco se preocupam se existe ou não liberdade de imprensa. Os trabalhadores que não são oradores, pouco se ocupam da liberdade de reunião. Consideram que as liberdades políticas são coisas secundárias, pois todos desejam melhorar sua condição econômica no presente, sacudindo o controle da burguesia. Devido a isto haverá sindicatos e sociedades de resistência enquanto persistir a exploração do homem pelo homem. Aqui está nosso lugar. Abandonando os proletários como vocês fizeram na França, se tornam vítimas de aventureiros que falam aos trabalhadores de socialismo científico ou praticismo, possibilismo, colaboracionismo, fundos econômicos para manter greves pacíficas, solicitações de ajuda e apoio das autoridades, etc., com o fim de adormecê-los e frear  seu impulso revolucionário. Se os anarquistas estivessem nestas sociedades, ao menos impediriam que os adormecedores fizessem propaganda contra nós. E se além disso ocorresse, como acontece na Espanha, que os anarquistas fossem membros mais ativos de ditas sociedades, os que fazem todo trabalho necessário sem retribuição alguma, ao contrários dos ditos adormecedores que exploram os proletários, ocorreria que estas sociedades estariam sempre de nosso lado.

Na Espanha são estas sociedades as que, todas as semanas, compram periódicos anarquistas em grande quantidade para distribui-los gratuitamente a seus membros; são estas sociedades as que dão o dinheiro para sustentar nossas publicações e para socorrer aos prisioneiros e aos perseguidos. Por nossa conduta mostramos nestas sociedades que lutamos por amor a nossas ideias. Além disso, vamos a toda parte onde há operários e inclusive onde não há, quando acreditamos que nossa presença pode ser útil à causa da anarquia. Assim é como na Catalunha (e agora também ocorre em outras partes de Espanha) não existe município onde não tenhamos criado, ou ao menos ajudado a criar, corporações com o nome de círculos, ateneus, centros operários, etc., que, sem se chamar anarquistas, e sem o ser realmente, simpatizam com nossas ideias.

Ali damos conferências puramente anarquistas, propagando nas reuniões musicais ou literárias nossos trabalhos revolucionários. Nestes lugares, sentados na mesa de café, discutimos e nos vemos todas as noites. Ou estudamos na biblioteca.

São nestes locais onde instalamos as redações de nossos jornais e os que chegam em troca vão parar no salão de leitura. Tudo isto com uma organização livre e quase sem gastos. Por exemplo, em nossos círculos de Barcelona não é obrigatório ser sócio, os que querem, querem e a contribuição de 25 centavos ao mês também é voluntária. Dos três mil operários que vêm a nossos locais, somente trezentos são sócios. Poderíamos afirmar que estes espaços são os focos de nossas ideias. Porém, mesmo que o governo sempre busque pretextos para fecha-los, não conseguiram, pois não se rotulam anarquistas e não é neles onde se realizam as reuniões específicas. Nada se faz em ditos lugares que não se faria em não importa qual café público; mas como ali vão frequentemente todos os elementos ativos, sempre surgem grandes coisas. E isto sem formulismos, saboreando uma taça de café ou copo de aguardente.

Tampouco esquecemos as sociedades cooperativas de consumo. Em quase todos os povoados da Catalunha, exceto em Barcelona, onde é impossível por causa das grandes distâncias e do modo de viver, criaram-se cooperativas de consumo. Ali os operários encontram comestíveis mais baratos e de melhor qualidade que nas lojas varejistas; e isto sem que nenhum dos sócios veja a cooperação como meta final, mas sim como somente um bom meio que deve aproveitar. Há sociedades cooperativas que fazem grandes compras e que têm um crédito de cinquenta ou sessenta mil pesetas. Têm sido de grande utilidade na greve, dando créditos aos trabalhadores. Nos ateneus dos senhores – o de sábios, como os chamam – se discute sobre o socialismo; então vão dois companheiros inscreve-se como membros (se não têm dinheiro a corporação lhes dá) e sustentam ali nosso Ideal.

O mesmo faz nossa imprensa. Nunca deixa de lado as ideias anarquistas; mas dá espaço para manifestos, comunicações e notícias que, mesmo que possam parecer sem importância, servem, entretanto, para fazer penetrar nosso periódico e com ele nossas ideias nos povoados ou nos círculos que não as conheciam. Eis aqui nossa tática e creio que, se se adotassem em outros países, logo veriam os anarquistas ampliarem seus campo de ação.

Pense que na Espanha a maioria não sabe ler e, mesmo assim, publicam-se seis periódicos anarquistas, livros, panfletos, etc., em grande quantidade. Frequentemente acontecem meetings[1] e, sem que tenhamos grandes propagandistas, produzem-se fatos muito importantes.

Na Espanha a burguesia é desapiedada e rancorosa, não podendo ocorrer que alguém de sua classe simpatize conosco. Quando algum homem de posição se põe ao nosso lado, tiram-lhe, em seguida, todo o meio de vida, obrigando que nos abandone, de maneira que só pode nos ajudar de modo privado. Ao contrário, a burguesia lhe dá a quantia desejada para se afastar de nós. Por conseguinte, todo o trabalho a favor da anarquia repousa nos ombros dos trabalhadores manuais, que por ele devem sacrificar suas horas de descanso.

Se na França, Inglaterra, Itália, Suíça e América do Norte, onde há um número bastante grande de bons elementos se mudasse de tática que progresso teríamos!

Creio haver dito bastante para fazer-me compreender.

Seu e da revolução social.

Fernando Tarrida

NOTA:

[1] Encontros públicos com um ou mais oradores, reuniões. (N.T)