A ANARQUIA
ÉLISÉE RECLUS

CAPA ANARQUIA RECLUS TERRRA LIVRE OKTradução e Revisão: Rodrigo Rosa da Silva
Imagem da Capa: Angelo Las Heras (São Paulo, 1932)

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O seguinte discurso foi pronunciado em 18 de junho de 1894 para os membros da loja maçônica “Les amis philanthropes” de Bruxelas e foi reproduzido na revista Temps Nouveaux nº 3, 4 e 5 (maio a junho de 1895).

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A anarquia não é, em absoluto, uma teoria nova. A própria palavra, tomada em sua acepção de “ausência de governo”, de “sociedade sem chefes”, é de origem antiga e foi empregada muito antes de Proudhon.
Por outro lado, que importam as palavras? Existiram “ácratas” antes dos anarquistas, e não haviam ainda os ácratas imaginado esse nome de erudita composição, quando já se haviam se sucedido inumeráveis gerações deles. Em todo o tempo existiram homens livres, desprezados pela lei, pessoas que viviam sem amos, conforme o direito primordial de sua existência e de seu pensamento. Inclusive nas eras remotas encontramos por todos os lados tribos compostas por homens que administravam a seu modo, sem leis impostas, não tendo mais regras de conduta que sua “vontade e franco arbítrio”, como disse Rabelais, e impulsionados também pelo desejo de fundar a “fé profunda”, à maneira dos “tão aguerridos cavalheiros” e as “damas tão encantadoras” que haviam se reunido na Abadia de Thelema.
Mas se a anarquia é tão antiga quanto a humanidade, aqueles que a representam não deixam de aportar alguma novidade ao mundo. Possuem a consciência precisa do fim perseguido e, de um canto a outro da terra, concordam em seu ideal, que rechaça toda forma de governo. O sonho da liberdade mundial deixou de ser pura utopia filosófica e literária, como era para aqueles fundadores das cidades do Sol ou de novas Jerusaléns; se converteu no objetivo prático, ativamente buscado por multidões de homens unidos que colaboram resolutamente para o nascimento de uma sociedade em que já não haverá chefes, nem vigias oficiais da moral pública, nem carcereiros, nem carrascos, nem ricos nem pobres, mas sim somente irmãos que tenham sua porção de pão diário, iguais em direitos, mantendo-se em paz e cordial união, não pela obediência às leis, as que sempre acompanham terríveis ameaças, mas pelo respeito mútuo de seus interesses e a observação científica das leis naturais.
Sem dúvida, este ideal parecerá quimérico a muitos de vocês, mas também estou seguro de que a maioria o encontre desejável e de que ao longe percebem a imagem etérea de uma sociedade pacífica na qual os homens, já reconciliados, deixarão oxidar suas espadas, fundirão seus canhões e desarmarão seus navios. Por outro lado, não são vocês estes que, há muito tempo, desde milhares de anos, trabalham – como dizem – na construção do templo da Igualdade? São vocês “maçons”, quer dizer, pedreiros cujo único fim é levantar um edifício de proporções perfeitas, no qual não entrem mais que homens livres, iguais e irmãos, trabalhando sem descanso em seu próprio aperfeiçoamento e renascendo, mediante a força do amor, em uma vida nova de justiça e bondade. Trata-se disto, não? Pois bem, não estão sozinhos neste empenho! Vocês não aspiram ao monopólio de um espírito de progresso e renovação. Nem sequer cometem a injustiça de esquecer seus adversários particulares, àqueles que os maldizem e excomungam, esses católicos fervorosos que condenam ao inferno os inimigos da Santa Igreja, mas que não deixam de profetizar a chegada de uma idade de paz definitiva. Francisco de Assis, Catarina de Siena, Teresa d’Ávila e tantos outros mais entre os fiéis de uma fé que não é a de vocês amaram certamente a humanidade com o mais sincero dos amores, e devemos contá-los entre os que viviam por um ideal de felicidade universal. E em nossos dias, milhões e milhões de socialistas, à margem da escola a que pertençam, lutam também por um futuro em que o poderio do capital seja derrotado e em que os homens possam enfim dizerem-se “iguais” sem ironia!
O objetivo dos anarquistas é, pois, comum à multidão de homens generosos pertencentes às religiões, às seitas e aos partidos mais diversos, mas se distinguem claramente por seus meios, tal como seu nome indica, de modo menos duvidoso. A conquista do poder foi sempre a grande preocupação dos revolucionários, inclusive dos melhores intencionados. A educação recebida não lhes permitia imaginar uma sociedade livre que funcionasse sem um governo regular e, nem bem haviam derrubado a seus odiados chefes, apressavam-se em substituí-los por outros, destinados, segundo uma fórmula consagrada, a “velar pela felicidade de seu povo”. Normalmente, nem sequer se permitiam preparar uma mudança de príncipe ou dinastia sem haver dado mostras de sua obediência a algum soberano futuro. “O rei está morto! Viva o rei!”, exclamavam os súditos, todos fiéis inclusive na rebelião. Durante séculos e séculos, tal foi infalivelmente o curso da história. “Como poderíamos viver sem amos?”, diziam os escravos, as esposas, as crianças, os trabalhadores da cidade e do campo, e de forma deliberada colocavam a cabeça sob o jugo, assim como o boi que puxa a carroça. Vem a nossa memória os insurgentes de 1830, que reclamavam a “melhor das repúblicas” na pessoa de um novo rei, e os republicanos de 1848, retirando-se discretamente a seus lugares após terem dedicado “três meses de miséria a serviço do governo provisório”. Na mesma época estourava uma revolução na Alemanha e um parlamento popular se reunião em Frankfurt. “A velha autoridade é um cadáver!”, clamava um de seus representantes. “Sim – replicava o presidente -, mas nós a ressucitaremos. Convocaremos homens novos, que saberão reconquistar para o poder a confiança da nação”. Não vem aqui ao caso os versos de Victor Hugo: “Um antigo instinto humano conduz à ignomínia”?
Contra tal instinto,a anarquia represneta verdadeiramente um espírito novo. Não se pode acusar os libertários de desembaraçarem-se de um governo para substituí-lo por outro: “Saia tú, que me coloco eu!” é uma expressão que lhes horroriza pronunciar, e de antemão condenam à vergonha e ao desprezo, ou pelo menos à piedade, àquele entre suas fileiras que, picado pela tarântula do poder, se permitira ambicionar algum posto com o pretexto de velar, também ele, pela “felicidade de seus concidadãos”. Os anarquistas professam, apoiando-se na observação, que o Estado e tudo o que se associa a ele não é uma entidade pura ou então uma fórmula filosófica, mas um conjunto de indivíduos situados em um meio especial e sofrendo sua influência. Estes, elevados em honraria, em poder, em tratamento acima de seus concidadãos, são forçados, por assim dizer, a crerem-se superiores à gente comum e, apesar das tentações de todo gênero que os assaltam, os fazem cair fatalmente abaixo do nível geral.
Por isso repetimos sem descanso a nosso irmãos – as vezes fraternais inimigos -, os socialistas de Estado: “Cuidado com vossos chefes e mandatários! Certamente estão, como vocês, animados pelas mais puras intenções; desejam ardentemente a supressão da propriedade privada e do Estado tirânico; mas as relações, as ocasiões novas as modificam pouco a pouco; sua moral muda com seus interesses e, crendo-se sempre fiéis à causa de seus mandantes, tornam-se forçosamente infiéis. Também eles, detentores do poder, deverão servir-se dos instrumentos de poder: exército, moralistas, magistrados, policiais e delatores”. Há mais de três mil anos o poeta hindú de Mahabharata formulou sobre o assunto com a experiência de séculos: “O homem que vai de carroça jamais será amigo do que vai a pé”.

Assim, os anarquistas têm, a este respeito, os princípios mais irrevogáveis; segundo eles, a conquista do poder não pode servir mais que para prolongar sua duração, junto com a correspondente escravidão. Não sem razão, o nome de “anarquistas”, que depois de tudo não tem senão um significado negativo, segue sendo aquele com o que somos universalmente designados. Poderiam chamar-nos “libertários”, tal como gostosamente se qualificam alguns de nós, ou ainda “harmonistas”, por causa do livre acordo das vontades que, ao nosso ver, constituirá a sociedade futura; mas estes nomes não nos diferenciam o suficiente dos demais socialistas. É sem dúvida a luta contra o poder oficial o que essencialmente nos distingue; cada individualidade nos parece o centro do universo, e todas têm os mesmos direitos a seu desenvolvimento integral, sem intervenção de um poder que as dirija, reporeenda ou castigue.

Vocês conhecem nosso ideal. Agora, a primeira questão que se apresentam é a seguinte: “Tal ideal é verdadeiramente nobre e merece o sacrifício de homens abnegados e os terríveis riscos que toda revolução acarreta? É pura a moral anarquista e, na sociedade anarquista, se for construída, o homem será melhor que em uma sociedade que repousa sobre o temor ao poder e às leis?”. Respondo com toda segurança, e espero que logo vocês respondam comigo: “Sim, a moral anarquista é a que melhor corresponde à concepção moderna da justiça e da bondade”.
O fundamento da antiga moral, bem sabem vocês, não era outro que o medo ou o “tremor”, como diz a Bíblia e como múltiplos preceitos que ensinaram-lhes em seus jovens anos. “O temor de Deus é o princípio da sabedoria”, tal era outrora o ponto de partida de toda educação: a sociedade em seu conjunto repousava no terror. Os homens não eram cidadãos, e sim súditos ou carneiros; as esposas eram serventes, as crianças escravas sobre as quais os pais guardavam um resto do antigo direito à vida e à morte. Em qualquer lugar, em todas as relações sociais, se mostravam as relações de superioridade e de subordinação; enfim, ainda em nosso dias, o princípio mesmo do Estado e de todos os Estados parciais que o constituem é a hierarquia ou a arquia “santa”, a autoridade “sagrada” – que é o verdadeiro sentido do termo. E esta sacrosanta dominação acarreta toda uma sucessão de classes superpostas, das quais as mais altas têm todo o direito de mandar e as inferiores todo o dever de obedecer. A moral oficial consiste em inclinar-se ante o superior e em erguer-se orgulhosamente ante o subordinado. Cada homem deve possuir dois rostos, como Jano, dois sorrisos: um adulador, solícito, em ocasiões servil; outro soberbo e de uma nobre condescendência. O princípio da autoridade – pois assim é como tal coisa se chama – exige que o superior jamais apareça como errado e que, em qualquer intercâmbio de palavras, ele tenha sempre a última opinião. Mas sobretudo é preciso que suas ordens sejam observadas. Isso simplifica tudo: já não há necessidade de pensamentos, de explicações, de dúvidas, de debates, de escrúpulos. Os negócios marcham então por si só, bem ou mal. E quando não há um chefe para comandar, não contamos com fórmulas já feitas, ordens, decretos ou leis, também promulgados por chefes absolutos ou por legisladores de diferente nível? Tais fórmulas substituem as ordens imediatas e as observa sem ter que indagar se estão de acordo ou não com a voz interior da consciência.
Entre iguais, a obra é mais difícil, mas também é mais elevada: há que buscar duramente a verdade, achar o dever pessoal, aprender a conhecer a si mesmo, favorecer continuamente a própria educação, conduzir-se respeitando os direitos e os interesses dos camaradas. Só então coverte-se em um ser realmente moral, só então nasce o sentimento da própria repsonsabilidade. A moral não é uma ordem a que se submeta, um discurso que se repita, uma coisa puramente exterior ao indivíduo, mas que se converte em uma parte do próprio ser, um produto mesmo da vida. É assim como nós, anarquistas, compreendemos a moral. Não temos por acaso o direito de compará-la com satisfação àquela nos legaram os nossos ancestrais?
Talvez vocês me dêem razão, mas muitos pronunciarão novamente a palavra “quimera”. Feliz ao menos porque vejam nela uma nobre quimera, vou todavia mais longe e afirmo que nosso ideal, nossa concepção da moral se encontra totalmente na lógica da história, guiada naturalmente pela evolução da humanidade.
Acossados antes pelo terror do desconhecido, assim como pelo sentimento de sua impotência no desvelamento das causas, os homens criaram, pela intensidade de seu desejo, uma ou várias divindades caritativas, que representavam ao menos um ideal informe e o ponto de apoio de todo aquele mundo misterioso, visível e invisível, das coisas que os rodeavam. Tais fantasmas da imaginação, investidos além disso de um poder total, se converteram também aos olhos dos homens no princípio de toda justiça e de toda autoridade; e como chefes do céu, naturalmente tiveram seus intérpretes na terra, magos, conselheiros, chefes militares, ante os quais se aprendia a prostenar-se como diante de representantes das alturas. Era lógico. Mas o homem dura mais que suas obras, e aqueles deuses não cessaram de mudar como sombras projetadas sobre o infinito. Visíveis em um princípio, animados por paixões humanas, violentos e temíveis, pouco a pouco foram retrocedendo até uma imensa distância; acabaram por transformar-se em abstrações, em idéias sublimes às quais já nem sequer se dava nome, e finalmente acabaram por confundir-se com as leis naturais do mundo; regressaram a este mundo, que se supunha haviam inventado do nada, e agora o homem se encontra só sobre a terra, acima da qual havia erigido a imagem colossal de Deus.
Toda concepção das coisas mudam, pois, ao mesmo tempo se Deus se desvanece, aqueles que derivavam dele seus títulos de obediência vêem como perde o brilho seus esplendores postiços: também eles devem voltar gradativamente às filas, acomodar-se do melhor modo possível ao estado das coisas. Já não encontraremos hoje em dia ninguém que, como Tamerlan, mande que suas quarenta cortesãs se lancem do alto de uma torre, seguro de que, em um abrir e fechar de olhos, verá de os quarenta cadáveres destroçados e ensanguentados. A liberdade de pensamento converteu a todos os homens em anarquistas sem sabe-los. Quem não reserva um lugarzinho de seu cérebro para refletir? Pois bem, aqui se acha precisamente o crime dos crimes, o pecado por excelência, simbolizado pelo fruto da árvore que revelou aos homens o conhecimento do bem e do mal. Daí o ódio que sempre professou a Igreja. Daí esse furor contra os “ideólogos” que sempre impulsionou Napoleão, esse moderno Tamerlan.
Mas os ideólogos chegaram. E desfizeram como uma bruma as ilusões de antes, recomeçando novamente todo o trabalho científico mediante a observação e a experimentação. Um deles inclusive, niilista antes de nossos tempos, anarquista como não houve outro, ao menos em seu discurso, começou por fazer “tabula rasa” de tudo o que havia aprendido. Quase não há sábio, homem das letras que não afirme ele mesmo seu próprio mestre e modelo, o pensador original de seu pensamento, o moralista de sua moral. “Se quer surgir, surge de ti mesmo!”, dizia Goethe. E por acaso os artistas não aspiram refletir a natureza tal como eles a vêem, tal como a sentem e compreendem? É certo que aqui se encontra de ordinário o que poderíamos chamar de uma “anarquia aristocrática”, que não reivindica a liberdade para além do povo eleito dos Musagetes, mais que para os que ascendem ao Parnaso. Cada um deles quer pensar livremente, buscar a seu modo seu ideal no infinito, mas afirmando ao mesmo tempo que é necessária “uma religião para o povo!”. Quer viver como um homem independente, mas “a obediência é feita para as mulheres”; quer criar obras originais, mas o “povo simples” deve seguir submetido, como uma máquina, ao ignóbil funcionamento da divisão do trabalho. Não obstante, estes aristocratas do gosto e do pensamento já não têm forças para fechar a grande eclusa pela qual escapa a torrente. Se é certo que a ciência, a literatura e a arte tornaram-se anarquistas, se todo progresso, toda nova forma de beleza são resultado da eclosão do pensamento livre, também é verdade que o mesmo pensamento opera nas profundidades da sociedade, e agora não é possível contê-lo. É muito tarde para deter a avalanche.
Por acaso não é a diminuição do respeito o fenômeno por excelência da sociedade contemporânea? Em outros tempos vi na Inglaterra a multidão reunir-se aos milhares para contemplar a carruagem vazia de algum grande senhor. Hoje não se vê mais isso. Na Índia, os párias se mantinham devotamente a cento e quinze passos regulamentários que que os separavam do orgulhoso brâmane: desde que as pessoas se apertam nas estações, já não há entre elas o fino tapume de uma sala de espera. Os exemplos de baixeza, de vil rastejar não faltam no mundo, mas apesar de tudo existe um progresso na senda da igualdade. Antes de dar testemunho de respeito, em ocasiões pode se perguntar se o homem ou a instituição são verdaeiramente respeitáveis. Pode-se estudar o valor dos indivíduos, a importância das obras. A fé na grandeza desapareceu: Sendo assim, onde a fé já não existe, as instituições desaparecem de vez. A supressão do Estado está naturalmente implícita na extinção de seu respeito.
O trabalho de crítica contestatória a que se vai submetendo o Estado se exerce igualmente contra todas as instituições sociais. O povo já não crê, já não crê em absoluto, na origem santa da propriedade privada, produzida, nos diziam os economistas – algo que já não ousam repetir – pelo trabalho pessoal dos proprietários: o povo não ignora de modo algum que o trabalho individual jamais cria milhões sobre milhões, nem que semelhante enriquecimento monstruoso é sempre consequencia de um falso estado social, que atribui a um o produto do trabalho de milhares de outros; respeitará em todo caso o pão que o trabalhador ganhou duramente, a cabana que este construiu com suas mãos, o jardim que plantou, mas perderá, certamente, o respeito pelos milhares de propriedades fictícias que representam os papéis de toda espécie guardados nos bancos. Chegará o dia – não tenho a menor dúvida – em que recuperará tranquilamente a posessão de todos os produtos de trabalho comum, minas e domínios, fábricas e castelos, estradas de ferro, navios e cargueiros.
Quando a multidão, essa “vil” multidão por sua ignorância e por essa covardia que é sua fatal consequencia, deixe de merecer o qualificativo com o qual a insultam, quando saiba com total certeza que o monopólio desse imenso caudal repousa unicamente em uma ficção quirográfica, na fé em um punhado de papéis ordinários, então o atual estado social se encontrará ameaçado! Na presença de tais evoluções profundas, irressistíveis, que se produzem em todos os cérebros humanos, quão estúpidos, quão desprovidos de sentido se apresentarão a nossos descendentes os furiosos clamores que se produzem contra os inovadores! Que importam as grosseiras palavras vertidas por uma imprensa obrigada a pagar seus subsídios com boa prosa! Que importam inclusive os insultos honestamente proferidos por esses devotos, ”santos ainda simples”, que levavam a lenha à fogueira de Jean Huss! O movimento que nos impulsiona não é coisa de simples energúmenos ou de pobres sonhadores; é o da sociedade em seu conjunto. É uma necessidade da marcha do pensamento, convertido já em fatal, em inelutável, como a rotação da terra e dos céus.
Contudo, poderia subsistir uma dúvida nos espíritos se a anarquia não houvesse sido nunca mais que um ideal, mais que um exercício intelectual, um elememnto da dialética, se nunca houvesse conhecido realização concreta, se nunca um organismo espontâneo houvesse surgido, colocando em ação as forças livres dos camaradas que trabalham em comum, sem um amo que os mande. Mas semelhente dúvida pode ser facilmente respondida. Pois sim, os organismos libertários existiram em todos os tempos; sim, sem cessar se formam outros novos, e a cada ano mais numerosos, seguindo os progressos da iniciativa individual. Poderia citar diversas tribos, das chamadas selvagens, que inclusive em nossos dias vivem em perfeita harmonia social sem ter necessidade de chefes, nem leis, nem de cercas, nem de força pública; mas não quero insistir em tais exemplos, que sem dúvida têm sua importância: temo que se me questionem a pouca complexidade dessas sociedacde primitivas em comparação com nosso mundo moderno, imenso organismo em que se entremesclam tantos outros organismos de uma complexidade infinita. Deixemos, pois, de lado essas tribos primitivas para ocuparmo-nos tão somente das nações já constituídas, e que dispõem de todo um aparato político e social.
Não poderia, sem dúvida, mostrar-lhes nenhuma que, no curso da história, tenha constituido-se como sociedade puramente anárquica, pois todas se encontravam ainda em seu período de luta entre elementos diversos não associados ainda; mas o que será fácil de constatar é que cada uma dessas sociedades parciais, ainda que não fundidas em um conjunto harmônico, foi tão mais próspera, tão mais criativa, quanto mais livre, quanto melhor se reconhecia nela o valor pessoal do indivíduo. Desde a época pré-histórica, momento em que nossas sociedades descobriram as artes, as ciências, a indústria, e apesar de que os anais escritos não tenham podido guardar sua memória, todos os grandes períodos da vida das nações foram aqueles em que os homens, agitados pelas revoluções, sofreram menos severamente o grande e pesado assédio de um governo regular. Os grandes períodos da humanidade, pelo movimento dos descobrimentos, pelo florecimento do pensamento, pela beleza da arte, foram épocas turbulentas, tempos de “perigosa liberdade”. A ordem reinava no imenso império dos Medas e dos Persas, mas nada grande saiu deles; no entanto, a Grécia republicana, agitada sem cessar, estremecida por contínuas sacudidas, deu à luz aos iniciadores de tudo o que consideramos elevado e nobre na civilização moderna. É impossível pensar, elaborar uma obra qualquer, sem que nosso espírito remeta imediatamente àqueles livres helenos, que foram nossos predecessores e ainda são nosso modelo. Dois mil anos mais tarde, após passar por tiranias, após tempos sombrios de opressão que pareciam não ter fim, a Itália, os Flandres, a Alemanha, toda a Europa dos communiers, tratou de recuperar novamente o alento: inumeráveis revolucões sacudiram o mundo. Ferrari contabilizou não menos de sete mil revoltas locais somente na Itália; mas também o fogo do pensamento livre se pôs a arder, e a humanidade floresceu novamente: com os Rafael, da Vinci, Michelângelo, sentiu-se jovem por uma segunda vez.
Depois veio o grande século da Enciclopédia, com as revoluções mundiais que se seguiram e a proclamação dos Direitos do Homem. Tentem, se é que podem, enumerar todos os progressos que se produziram desde aquela grande reviravolta da humanidade. Pergunte-se se na verdade durante este século não concentrou-se mais da metade da história. O número de homens aumentou em mais de meio bilhão; o comércio mais que deduplicou-se, a indústria se transfigurou e a arte de modificar os produtos naturais foi maravilhosamente enriquecida; novas ciências apareceram e, por muito que se diga, um terceiro período da arte começou; o socialismo consciente e mundial ganhou em importância. Quando menos, sente-se que se vive o século dos grandes problemas e as grandes lutas. Substitui-se pelo pensamento mais de cem anos de filosofia do século XVIII por um período sem história em que quatrocentos milhões de pacíficos chineses teriam vivido sob a tutela de um “pai do povo”, de um tribunal de ritos e de uns mandarins providos de seus respectivos diplomas. Longe de haver vivido com ímpeto, tal como ocorreu, haveríamos nos encaminhado para a inércia e a morte. Se Galileu, ainda prisioneiro nas prisões da Inquisição, não pôde senão murmurar surdamente: “Sem dúvida, se move!”, nós podemos agora, graças às revoluções, graças às violências do livre pensamento, podemos – dizia – gritar desde os telhados e nas praças públicas: “O mundo se move e continuará movendo-se!”.
À margem deste grande movimento, que transforma gradualmente a sociedade inteira no sentido do livre pensamento, da moral livre, da ação livre – quer dizer, em essência, da anarquia – existe também um trabalho de experiências diretas que manifesta mediante a fundação de colônias libertárias e comunistas: se trata de pequenas tentativas que se pode comparar com os experimentos de laboratório que levam à cabo químicos e engenheiros. Estes ensaios de comunas-modelo apresentam todas o defeito capital de serem construídas à margem das condições ordinárias da vida, ou seja, longe das cidades onde misturam-se os homens, onde surgem idéias, onde se renovam os intelectos. E sem dúvida, podem citar-se muitas de tais empresas que tiveram um êxito pleno; entre outras, a da “Jovem Icaria”, transformação da colônia de Cabet, fundada há meio século conforme os princípios do comunismo autoritário: migração atrás de migração, o grupo dos communiers, convertido em estritamente anarquista, vive agora uma existência modesta nas campanas de Iowa, perto do rio Desmoines.
Mas ali onde a prática anarquista triunfa é no curso ordinário da vida, entre as pessoas do povo, que certamente não poderiam manter a terrível luta pela existência se não se ajudassem espontaneamente entre si, ignorando as diferenças e a rivalidade de interesses. Quando um deles cai enfermo, os demais pobres se ocupam de seus filhos: alimentam, compartem com ele a magra comida semanal, tentam cumprir com seu trabalho, redobrando, se for preciso, a jornada. Entre os vizinhos se estabelece um tipo de comunismo mediante o empréstimo, através de um vai e vem de utensílios domésticos e de provisões. A miséria une aos desgraçados em uma liga fraternal: juntos passam fome e juntos se saciam. A moral e a prática anarquistas, à primeira vista, seguem as mesmas regras das reuniões burguesas, mesmo onde parecem completamente ausentes. Imaginem uma festa no campo em qua alguém, seja o anfitrião, seja algum dos convidados, arrogue-se ares de dono e senhor, permitindo-se tomar o comando ou fazer prevalecer indiscretamente somente o seu capricho. Isto não supõe a morte de toda a alegria, o fim de todo prazer? Não há júbilo senão entre os livres e iguais, entre pessoas que podem divertir-se como lhes convenha, em grupos distintos se é o caso, mas próximos uns dos outros e entremesclando-se a sua maneira, porque as horas passadas de tal modo parecem-lhe mais doces.
Permitirei-me aqui narrar uma lembrança pessoal. Viajávamos em um desses lindos navios modernos que rompem com soberba as ondas a uma velocidade de 15 ou 20 nós por hora e que, contra vento e maré, traçam uma linha reta entre continente e continente. O vento estava calmo, a tarde era aprazível e as estrelas iam iluminando-se uma a uma na escuridão do céu. Conversávamos no tombadilho sobre o que podia ser se não fosse essa etrerna questão social que nos aflige, que se lança à garganta como a esfinge de Édipo? O reacionário do grupo se via severamente pressionado por seus interlocutores, todos mais ou menos socialistas. De repente voltou-se para o capitão, o chefe, o amo, esperando que nele encontraria um defensor nato dos bons princípios: “Você manda aqui. Por acaso seu poder não é sagrado? Que seria deste navio se não estivesse dirigido por sua vontade constante?”. “Que homem tão ingênuo é você”, respondeu o capitão. “Entre nós, posso dizer-lhe que de fato eu não sirvo para nada. O timoneiro mantém o navio em linha reta; dentro de alguns minutos outro piloto o sucederá, depois outro mais, e seguiremos regularmente, sem minha intervenção, a rota acostumada. Abaixo, os fogueiros e os mecânicos trabalham sem minha ajuda, sem meu conselho, e melhor que se eu me imiscuisse em sua tarefa. E todos estes marinheros, todos marinheiros, sabem também qual trabalho devem desempenhar e, chegado o caso, a mim não me resta mais que fazer minha pequena porção do trabalho conforme com a sua, mais penosa e pior retribuída que a minha. Supõe-se, sem dúvida, que eu deva guiar o navio. Mas não se dá conta de que isto é uma simples ficção? Aí estão os mapas, mas não fui eu quem os traçou. A bússola nos dirige, e não fui eu quem a inventou. Abriram para nós o canal do porto do qual viemos e também o do porto no qual desembarcaremos. E este soberbo navio, cuja armação apenas de plana sob a pressão das ondas, que se balanceia majestoso sobre as ondas, que navega com poderio empurrado pelo vapor, tão pouco fui eu quem o construiu. Que sou eu frente os grandes mortos, os inventores e os cientistas, nossos predecessores, que nos ensinaram a atravessar os mares? Somos todos seus associados, e os marinheiros meus camaradas, e também vocês, os passageiros, pois por vocês cavalgamos as ondas e, em caso de perigo, com vocês contamos para que nos ajudem fraternalmente. Nossa obra é comum e somos solidários uns com os outros”. Todos calaram e eu guardei no baú de minha memória o precioso tesouro do discurso daquele capitão tão pouco corrente. Assim, aquele navio, aquele mundo flutuante em que, por outro lado, os castigos são desconhecidos, portava através do oceâno, apesar dos estorvos hierárquicos, uma república em escala. E não se trata em absoluto de um exemplo isolado. Cada um de vocês conhece, ao menos de ouvir, escolas em que o professor, apesar da severidade de um regulamento sempre implicado, tem a todos os alunos por amigos e felizes colaboradores. A autoridade competente tem tudo previsto para domar a esses pequenos facínoras, mas seu amigo maior não tem nenhuma necessidade das ferramentas da repressão; trata os meninos como homens, apelando constantemente à sua boa vontade, à sua compreensão das coisas, à seu sentido de justiça, e todos respondem com alegria. Uma minúscula sociedade anárquica, verdadeiramente humana, se vê constituída de tal maneira, ainda que tudo (leis, regulamentos, maus exemplos, imoralidade pública) se confabule em seu ambiente para impedir sua eclosão.
Sem cessar aparecem grupos anarquistas, apesar dos velhos preconceitos e do peso morto dos antigos costumes. Nosso novo mundo desponta ao redor, tal uma flor nova que germinaria sobre os detritos das Idades. Não só não é quimérico, como se repete sem cessar, e se mostra já sob mil formas; cego é o homem que não consegue observar. Pelo contrário, se há uma sociedade quimérica, impossível, é sem dúvida o pandemonium no qual vivemos. Saberão reconhecer que não abusei da crítica, sem dúvida fácil, com respeito ao mundo atual, tal como o constituiu o chamado princípio de autoridade e a feroz luta pela existência. Mas se é certo, enfim e por definição, que uma sociedade é uma agrupação de indivíduos que se unem e colocam-se de comum acordo para o bem-estar comum, não se pode dizer sem cair no absurdo que a massa caótica circundante constitua uma sociedade. Segundo seus protetores – pois toda má causa os tem -, esta teria como fim a perfeita ordem para a satisfação dos interesses de todos. Ou não é de rir ver uma sociedade ordenada no mundo da civilização européia, com sua sucessão contínua de dramas intestinos, assassinatos e suicídios, violências e tiroteios, decadência e fome, roubos, fraudes e enganos de todo o gênero, quebras, demolições e ruínas? Quem entre nós, ao sair daqui, não verá alçar-se a seu lado os espectros do vício e da fome? Em nossa Europa há cinco milhões de homens que não esperam mais que um sinal para matar a outros homens, para queimar suas casas e colheitas; outros dez milhões de homens na reserva, fora dos quartéis, se mantém na idéia de que cumpriram a mesma tarefa de destruição; cinco milhões de desgraçados vivem – ou melhor, vegetam – nas prisões, condenados a diversas penas; dez milhões morrem a cada ano de morte prematura e, de 370 milhões de homens, 350 – para não dizer todos – tremem com justificada inquietude frente o futuro. Apesar da imensidade das riquezas sociais, qual de nós pode afirmar que um brusco giro da sorte não lhe arrebataria o que tem? Tratam-se de fatos que ninguém pode negar e deveriam, tal me parece, inspirar-nos a todos a uma firme resolução de mudar este estado de coisas, cheio de revoluções incessantes.
Tive um dia a ocasião de conversar com um alto funcionário, levado pela rotina da vida até o mundo dos que promulgam leis e ditam castigos: “Mas defenda sua sociedade!”, dizia eu. “Como quer você que a defenda se é indefensável?”, respondeu ele.
E contudo alguns a defendem, ainda que mediante argumentos que não são razões: defendem-na graças ao chicote, ao calabouço e ao cadafalso.
Por outro lado, aqueles que a atacam podem fazê-lo com toda a serenidade de sua consciência. Sem dúvida o movimento de transformação acarretará violências e revoluções, mas por acaso o mundo circundante é outra coisa além de violência contínua e revolução permanente? E nas alternativas da guerra social, quem serão os homens responsáveis? Quem são os que proclamam uma era de justiça e de igualdade para todos, sem distinções de classe nem entre indivíduos, ou quem são os que querem manter as separações e, por conseqüência, o ódio de casta, esses mesmos que criam leis repressivas e que não sabem resolver problemas se não mediante a infantaria, a cavalaria e a artilharia? A história nos permite afirmar com toda certeza que a política do ódio gera sempre ódio, agravando fatalmente a situação geral ou inclusive levando à ruína definitiva. Quantas nações pereceram assim, arrastando opressores e oprimidos! Pereceremos também?
Espero que não, graças ao pensamento anarquista que sai à luz cada vez mais, renovando a iniciativa humana. Não são vocês mesmos anarquistas ou, quando menos, estão muito marcados pelo anarquismo? Quem de vocês, em sua alma e consciência, se diria superior a seu vizinho e não reconheceria nele um irmão e igual? A moral que se proclamou aqui com um discurso mais ou menos simbólico se converterá certamente em uma realidade. Pois nós anarquistas sabemos que esta moral de justiça perfeita, de liberdade e de igualdade é a verdadeira, e a vivemos de todo coração, mesmo que nossos adversários duvidem. Não estão seguros de ter razão; no fundo estão inclusive convencidos de estarem errados e assim, por antecipação, nos entregam o mundo.

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São Paulo, 2011

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