No final de 1909, dois grandes homens mantiveram correspondência atravessando oceanos, religiões, gerações e raças. Leon Tolstoi, mestre da não-violência cristã em seus últimos anos de vida, escreveu ao jovem Mohandas Gandhi, que lutava pelo direito dos colonizadores indianos na África do Sul:
Que Deus ajude nossos queridos irmãos e co-trabalhadores no Transvaal. A mesma luta dos mansos contra os impiedosos, da humildade e amor contra o orgulho e a violência, vai a cada ano se fazendo sentir mais e mais também entre nós.
Um ano depois, cansado dos conflitos internos na Rússia e incapaz de suportar a contradição de viver em pobreza cristã em uma propriedade próspera mantida com a renda importuna de seus grandes romances (escritos antes da conversão religiosa e publicados por sua esposa), Tolstoi fugiu de trem para local desconhecido em busca de um fim de vida em maior simplicidade. Ele escreveu para a esposa:
Minha partida irá perturbá-la. Sinto por isso, mas por favor compreenda e acredite que eu não poderia agir de outra forma. Minha posição nesta casa estava se tornando, ou se tornara, insustentável. Independente de qualquer outra coisa, eu não podia mais viver nas condições de luxo em que vinha vivendo, e estou apenas fazendo o que os velhos de minha idade costumam fazer: abandonando esta vida mundana a fim de viver os meus últimos dias em paz e solidão.
Mas a derradeira jornada de Tolstoi foi breve e desditosa. Menos de um mês depois, enregelado e exausto com as muitas viagens em trens russos no frio do inverno que se aproximava, ele contraiu pneumonia e morreu aos 82 anos na casa do chefe de estação na parada ferroviária de Astapovo. Debilitado demais para escrever, ditou a sua última carta em 1º de novembro de 1910. Dirigida a um filho e uma filha que não partilhavam a sua concepção de não-violência cristã, Tolstoi ofereceu algumas últimas palavras de conselho:
As noções que vocês adquiriram sobre darwinismo, evolução e a luta pela existência não lhes explicarão o significado de suas vidas e não os orientarão naquilo que fizerem; e uma vida sem uma explicação do seu significado e importância, e sem a infalível orientação que provém disso, é uma existência lastimável. Pensem a respeito. Digo isso, provavelmente na véspera de minha morte, pois amo vocês.
A reclamação de Tolstoi tem sido a mais comum de todas as acusações contra Darwin, desde a publicação de A origem das espécies até hoje. O darwinismo, corre o argumento, destrói a moral por afirmar que o sucesso na natureza só pode ser medido vencendo-se batalhas sangrentas – a “luta pela existência” ou “sobrevivência dos mais aptos”, para citarmos os lemas escolhidos pelo próprio Darwin. Se quisermos que “humildade e amor” triunfem sobre “orgulho e a violência” (conforme Tolstoi escreveu para Gandhi), devemos repudiar a maneira de Darwin conceber a natureza – como Tolstoi enunciou no último apelo a seus filhos desnorteados.
Essa acusação contra Darwin é injusta por dois motivos. Primeiro, a natureza (não importa quão cruel possa ser em termos humanos) não se presta como fundamento de nossos valores morais. (Na melhor das hipóteses, a evolução poderia ajudar a explicar por que nós temos sentimentos morais, mas a natureza jamais poderá decidir por nós se uma ou outra ação específica é certa ou errada.) Segundo, a “luta pela existência” de Darwin é uma metáfora abstrata, não uma afirmação explícita sobre combate sangrento. O sucesso reprodutivo – o critério da seleção natural – ocorre de diversos modos: vitoria em combate pode ser um dos caminhos, mas cooperação, simbiose e apoio mútuo também garantem sucesso em outros momentos e contextos. Numa passagem famosa, Darwin explica o seu conceito de luta evolutiva (Origin of spicies, 1859, 62-63):
Uso este termo num sentido amplo e metafórico que inclui dependência entre um ser e outro, e (o que é mais importante) que também inclui não apenas a vida do indivíduo mas também a sua capacidade de deixar uma progênie. Podemos efetivamente dizer que, em épocas de escassez, dois caninos de fato lutarão entre si para obter alimento e viver. Mas uma planta na orla de um deserto também estará lutando pela a vida contra a seca. (…) Como o visco é disseminado pelos pássaros; podemos metaforicamente dizer que ele luta com as demais plantas frutíferas para conseguir que os pássaros o comam e assim disseminem as suas sementes, não as das outras plantas. Nesses vários sentidos, que se entrelaçam, eu uso por uma questão de conveniência o termo geral luta pela existência.
Todavia, em ainda outro sentido, o lamento de Tolstoi não é inteiramente infundado. Darwin de fato apresentou uma definição ampla, abrangente e metafórica de luta, mas os seus exemplos sem dúvida favorece o combate sangrento – “Natureza, rubra em dente e garra”, num verso de Tennyson tão citado que acabou se tornando um clichê irrefletido para essa visão da vida. Darwin baseou a sua teoria de seleção natural na lúgubre concepção de Malthus segundo a qual o aumento da população supera necessariamente a oferta de alimentos e leva a um combate direto pelos recursos minguantes. Além disso, Darwin sustentou uma concepção limitada mas dominante de ecologia como um mundo completamente abarrotado de espécies concorrentes – tão equilibrado e repleto que uma nova forma só poderia entrar literalmente empurrando um outro habitante para fora. Darwin expressou essa noção em uma metáfora ainda mais fundamental para a sua visão geral do que é o conceito de luta: a metáfora da cunha. A natureza, escreveu ele, é como uma superfície com 10 mil cunhas premiadas ocupando todo o espaço disponível. Uma nova espécie (representada por uma cunha) só consegue acesso a uma comunidade colocando-se em alguma minúscula fresta existente e empurrando outra cunha para fora. O sucesso, de acordo com essa concepção, só é atingível por um confronto direto para obter domínio.
Ademais, o principal discípulo de Darwin, Thomas Henry Huxley, propôs uma visão “gladiatória” da seleção natural (palavras dele) numa série famosa de ensaios sobre ética. Huxley sustentou que o predomínio do combate sangrento definia o modo de ser da natureza como amoral (não explicitamente imoral, mas certamente inapropriado como guia para uma conduta moral).
Do ponto de vista do moralista, o mundo animal está aproximadamente no mesmo plano que um espetáculo de gladiadores. As criaturas são razoavelmente bem tratadas e preparadas para a luta – através da qual os mais fortes, mais ágeis e mais astutos conseguirão viver para lutar novamente. O espectador não precisa baixar o polegar, pois não há mercê.
Mas Huxley vai ainda mais longe. Qualquer sociedade humana instituída de acordo com essas linhas da natureza cairá na anarquia e na desgraça – o brutal mundo hobbesiano de bellum omnium contra omnes (onde bellum significava “guerra” e não beleza): a guerra de todos contra todos. Portanto, a principal meta da sociedade tem que ser a mitigação da luta definida pelos rumos da natureza. Devemos estudar a seleção natural e fazer o oposto na suciedade humana:
Porém, na sociedade civilizada, o resultado inevitável de tal obediência (à lei do combate sangrento) é o restabelecimento, em toda a sua intensidade, daquela luta pela existência – a guerra de um contra todos – cuja mitigação ou abolição sempre foi o principal objetivo da organização social.
É essa aparente discordância entre os modos da natureza e qualquer esperança de decência social entre os seres humanos que, desde Darwin, tem definido o tema principal da discussão sobre ética e evolução. A solução de Huxley – de que a natureza é sórdida e não serve de guia para a moral (exceto, talvez, para indicar o que deve ser evitado na sociedade humana) – conquistou muitos adeptos. A minha preferência está com uma solução diferente, uma que leva a sério a concepção metafórica de luta proposta por Darwin (a despeito da própria preferência dele por exemplos gladiatórios): a natureza é às vezes terrível, às vezes benévola (na realidade, nem uma coisa nem outra, mas a terminologia humana é notoriamente inadequada). Ao apresentar exemplos de todos os comportamentos (sob a rubrica metafórica da luta), a natureza não favorece nenhum e não oferece parâmetros para a ação. Seja como for, os fatos da natureza não podem fornecer orientação moral.
Mas uma terceira solução foi proposta por alguns pensadores que gostariam de encontrar um fundamento para a moral na natureza e na evolução. Como poucos são aqueles capazes de auferir algum conforto moral na interpretação gladiatória, essa terceira posição buscou reformular os modos da natureza. As palavras de Darwin sobre o caráter metafórico da luta são um ponto de partida promissor. Seria possível argumentar que os exemplos gladiatórios foram exagerados e equivocadamente representados como predominantes. Talvez a cooperação e o apoio mútuo sejam resultados mais comuns da luta pela existência. Talvez a reprodução seja mais favorecida pela comunhão, e não pelo combate, na maioria das circunstâncias.
A expressão mais famosa da terceira solução é possivelmente aquela que se encontra em Mutual aid (Apoio Mútuo), publicado em 1902 pelo anarquista revolucionário russo Petr Kropotkin. (Devemos abandonar o velho estereótipo do anarquista como um homem barbudo que caminha furtivamente pelas ruas da cidade à noite jogando bombas. Kropotkin era um homem afável e bondoso, quase santo de acordo com alguns, que defendia uma visão de pequenas comunidades definindo os seus próprios padrões mediante consenso para o benefício de todos, eliminando assim a necessidade da maioria das funções de um governo central.) Kropotkin, que era um nobre russo, viveu exilado na Inglaterra por motivos políticos. Ele escreveu Apoio Mútuo como réplica direta ao ensaio de Huxley citado acima, “The struggle for existence in human society”, publicado em The Nineteenth Century em fevereiro de 1888. Kropotkin respondeu a Huxley com uma série de artigos, também publicados em The Nineteenth Century e posteriormente coletados no livro Apoio Mutuo.
Conforme sugere o título, Kropotkin, como sua premissa básica, argumenta que a luta pela existência geralmente leva ao apoio mútuo, e não ao combate, como principal critério de sucesso evolutivo. Portanto, a sociedade humana deve fundar-se em nossas inclinações naturais (e não invertê-las, como queria Huxley) para formular uma ordem moral que traga paz e prosperidade à nossa espécie. Em uma série de capítulos, Kropotkin tenta ilustrar a continuidade que há entre a seleção natural para o apoio mútuo entre animais e as bases para o sucesso na organização social cada vez mais progressiva dos seres humanos. Seus cinco capítulos sequenciais tratam do apoio mútuo entre os animais, entre os selvagens, entre os bárbaros, na cidade medieval e em nosso meio.
Confesso que eu sempre considerei Kropotkin um maluco idiossincrático, ainda que inegavelmente bem-intencionado. Ele é sempre apresentado assim nos cursos habituais de biologia evolutiva – um pensador indulgente e confuso que permitiu que a esperança e o sentimentalismo interferissem no seu rigor analítico e na sua capacidade de aceitar a natureza tal como ela é, com o belo e o feio. Afinal, ele era um homem de ideais políticos estranhos e impraticáveis, arrancado à força do contexto da sua juventude, um estranho em terra estranha. Além disso, o retrato que traçou de Darwin de tal modo se adequava aos seus ideais sociais (o apoio mútuo advindo naturalmente como um produto da evolução sem necessidade de uma autoridade central) que só era possível enxergar desejos pessoais, e não exatidão científica, no que ele escreveu. Kropotkin há muito estava na minha lista de possíveis assuntos para um ensaio (mesmo que fosse simplesmente porque eu queria muito ler a sua obra, em vez de repetir as interpretações dos livros de texto), mas nunca levei adiante o projeto porque não conseguia encontrar um contexto mais amplo do que o homem em si. Intelectos aluados são interessantes como material de fuxico, ou talvez de psicologia, mas a verdadeira idiossincrasia é a pior base possível para uma generalização.
Todavia, a situação mudou repentinamente quando li um belíssimo artigo no último número de Isis (o mais importante periódico profissional em história da ciência) escrito por Daniel P. Todes: “Darwin´s malthusian metaphor and russian evolutionary thought, 1859-1917”. Descobri que o paroquialismo fora meu, na minha ignorância das ideias russas sobre evolução, e não de Kropotkin em seu isolamento na Inglaterra. (Eu consigo ler russo, mas só a duras penas, e com um dicionário – o que significa, em termos práticos, que não consigo ler russo.) Eu sabia que Darwin havia se tornado um herói dos intelectuais russos e que influenciara a vida acadêmica na Rússia possivelmente mais do que a de qualquer outro país. Porém, praticamente nenhuma das obras russas foi jamais traduzida ou sequer discutida na literatura em inglês. Os ideais dessa escola nos são desconhecidos; nós sequer sabemos identificar os nomes dos principais protagonistas. Eu conhecia Kropotkin porque ele publicava em inglês e vivera na Inglaterra, mas nunca havia compreendido que ele representara uma crítica russa padrão a Darwin – uma crítica muito bem elaborada, fundamentada em motivos interessantíssimos e em tradições nacionais coerentes. O artigo de Todes não torna Kropotkin mais correto, porém coloca a sua obra num contexto geral que exige o nosso respeito e é extremamente esclarecedor. Kropotkin foi parte de uma grande corrente que fluiu em direções pouco familiares, e não em diminuto arroio isolado.
Todes argumenta que essa escola russa de críticos darwinianos fundamentava a sua premissa principal numa rejeição firme de concepção malthusiana segundo a qual a rivalidade, em seu modo gladiatório, haveria de predominar num mundo cada vez mais repleto em que a população, crescendo em escala geométrica, irá inevitavelmente superar uma oferta de alimentos que só pode aumentar em escala aritmética. Tolstoi, expressando um consenso de seus compatriotas, tachou Malthus de “mediocridade maliciosa”.
Todes encontrou um conjunto diversificado de razões pro trás da hostilidade russa a Malthus. Objeções políticas ao pega-pra-capar da competição industrial do Ocidente surgiram em ambos os extremos do espectro político russo. Diz Todes:
Os radicais, que esperavam construir uma sociedade socialista, viram no malthusianismo uma corrente reacionária da economia política burguesa. Os conservadores, que esperavam preservar as virtudes comunais da Rússia czarista, viram nele uma expressão do “tipo nacional britânico”.
Mas Todes identifica um motivo muito mais interessante na experiência imediata do solo da Rússia e na sua história natural. Todos nós temos uma tendência a elaborar teorias universais a partir da esfera restrita das circunstâncias à nossa volta. Muitos geneticistas interpretam o mundo inteiro da evolução dentro dos confins de um vidro de laboratório contendo moscas-das-frutas. A minha crescente incerteza em relação à adaptação universal certamente provém em grande parte do fato de eu estudar um determinado caracol (que apresenta variações profundas e caprichosas em um meio ambiente aparentemente não-variante) e não um pássaro em voo ou alguma maravilha de estrutura natural.
A Rússia é um país imenso, subpovoado por qualquer medida de deu potencial agrícola no século XIX. É também, na maior parte do seu território, uma terra agreste, dura, onde é mais provável haver rivalidade entre um organismo e seu ambiente (como na luta metafórica mencionada por Darwin de uma planta na orla do deserto) do que entre organismo e organismo em combate sangrento. Como é que um russo, com tão intensa vivência de sua terra, poderia ver no princípio malthusiano de superpopulação um fundamento da teoria evolutiva? Diz Todes:
Era alheio à experiência deles porque, em termos bem simples, a gigantesca massa terrestre da Rússia tornava ainda mais acanhada a sua população esparsa. Seria preciso um tremendo salto da imaginação para um russo enxergar que um aumento inexorável da população haveria inevitavelmente de exaurir a oferta potencial de alimento e espaço.
Se esses críticos russos conseguiam honestamente associar o seu ceticismo pessoal à sua perspectiva paroquial, eles também podiam reconhecer que os arroubos opostos de Darwin talvez refletissem o provincianismo de um ambiente diferente – e não um conjunto de verdades necessariamente universais. Malthus desponta como um profeta muito melhor num país industrial superpovoado que professa um ideal de livre concorrência em mercados abertos. Além disso, muito já se insistiu no fato de Darwin e Alfred Russel Wallace terem ambos desenvolvido, independentemente, a teoria da seleção natural após um contato inicial com a história natural dos trópicos. Também independentemente, os dois alegaram ter-se inspirado em Malthus; porém, se a fortuna favorece a mente preparada, então a experiência tropical de ambos provavelmente os predispôs a lerem Malthus com empatia e aprovação. Nenhuma outra região da Terra é tão lotada de espécies e, portanto, tão repleta de rivalidade corpo a corpo. Um inglês que tenha conhecido os modos da natureza nos trópicos estaria quase fadado a encarar a evolução de maneira diferente de um russo criado com lendas sobre os desertos siberianos.
Por exemplo, N. I. Danilevsky, um especialista em pesca industrial e dinâmica populalcional, publicou em 1885 uma grande crítica em dois volumes do darwinismo. Ele identificou a luta pelo proveito pessoal como o credo de um “tipo nacional” distintamente britânico, em contraste com os antigos valores eslavos de coletivismo. As crianças inglesas, escreveu ele, “boxeiam uma contra uma, não em grupo como nós, russos, gostamos de lutar”. Danilevsky considerava a rivalidade darwiniana “uma doutrina puramente inglesa” fundada numa linha do pensamento britânico que se estendia de Hobbes, passando por Adam Smith, a Malthus. A seleção natural, disse ele, está enraizada “na guerra de todos contra todos, hoje denominada luta pela existência – a teoria política de Hobbes; e na competição – a teoria econômica de Adam Smith. (…) Malthus aplicou exatamente o mesmo princípio ao problema populacional. (…) Darwin estendeu a teoria parcial de Malthus e a teoria geral dos economistas políticos ao mundo orgânico”. (As citações são do artigo de Todes)
Quando voltamos ao Apoio Mútuo de Kropotkin à luz das descobertas de Todes sobre as ideias russas acerca da evolução, precisamos inverter as noções tradicionais e interpretar essa obra como pertencente à corrente principal da crítica russa, e não como uma esquisitice pessoal. A lógica central do argumento de Kropotkin é simples, direta e basicamente irrefutável.
Kropotkin começa admitindo que a luta desempenha um papel essencial na vida dos organismos e que constitui o principal ímpeto para a evolução destes. mas ele sustenta que a luta não deve ser considerada como um fenômeno unitário, e precisa ser separada em duas formas fundamentalmente diferentes com significados evolutivos opostos. Devemos reconhecer, antes de mais nada, a luta de organismo contra organismo pela posse de recursos limitados – o tema que Malthus legou a Darwin e que Huxley descreveu como gladiatório. Essa forma de luta direta leva, de fato, à competição visando proveito pessoal.
Mas uma segunda forma de luta – o estilo que Darwin denominou metafórico – lança o organismo contra a inclemência do meio ambientefísico ao seu redor, não contra outros membros da mesma espécie. Os organismos tem que lutar para se manter aquecidos, para sobreviver aos perigos súbitos e imprevisíveis do fogo e das tempestades, para perseverar em períodos severos de seca, neve ou pestilência. Essas formas de luta entre o organismo e o meio ambiente são melhor empreendidas pela cooperação entre os membros da mesma espécie – pelo apoio mútuo. Se a luta pela existência lançar dois leões contra uma zebra, teremos um combate felino e uma carnificina equina. Mas se os leões estiverem combatendo juntos as agruras de um meio ambiente inanimado, então a luta não eliminará o inimigo comum – ao passo que a cooperação poderá acabar com uma ameaça que estaria além do poder de qualquer indivíduo superar.
Desse modo, Kropotkin criou uma dicotomia na noção geral de luta – duas formas com implicações opostas: (1) organismo contra organismo de uma mesma espécie pela posse de recursos limitados, provocando rivalidade e competição; (2) organismo contra meio ambiente, levando à cooperação.
Nenhum naturalista há de negar que a ideia de uma luta pela vida levada avante por meio da natureza orgânica constitui a maior generalização do nosso século. A vida é uma luta, e nessa luta os mais aptos sobrevivem. Mas as respostas às perguntas “com quais armas a luta é basicamente empreendida?” e “quem são os mais aptos na luta?” irão definir enormemente conforme a importância dada aos dois aspectos distintos da luta: o direito, em que indivíduos estão em busca de alimento e segurança; e a luta que Darwin descreveu como “metafórica” – a luta, frequentemente coletiva, contra circunstâncias adversas.
Darwin reconheceu que ambas as formas existiam, mas sua lealdade a Malthus e a sua concepção de uma natureza abarrotada de espécies levo-o a enfatizar o aspecto competitivo. Seus menos sofisticados devotos então exaltaram a perspectiva competitiva quase à exclusividade, e ainda a sobrecarregaram com um significado social e moral.
Eles vieram a conceber o mundo animal como um mundo de luta perpétua entre indivíduos semi-esfaimados, sedentos do sangue alheio. Fizeram a literatura moderna ressoar com um grito de guerra de ai dos vencidos!, como se fosse a última palavra da biologia moderna. Elevaram a luta “impiedosa” por proveito pessoal à altura de um princípio biológico ao qual também o homem deveria se submeter sob risco de sucumbir em um mundo baseado no mútuo extermínio.
Kropotkin não negou a forma competitiva de luta; apenas argumentou que o estivo cooperativo havia sido relegado, embora devesse estar no mesmo plano ou mesmo predominar sobre a rivalidade e a competição quando consideramos a natureza como um todo.
Há uma imensa quantidade de combate e extermínio ocorrendo entre as várias espécies; mas, ao mesmo tempo, há uma quantidade equivalente, ou talvez superior, de apoio mútuo, ajuda mútua e defesa mútua. (…) A sociabilidade é tanto uma lei da natureza quanto a luta mútua.
À medida que Kropotkin examinava suas exemplos selecionados e preparava o terreno para as suas próprias preferências, ia se tornando cada vez mais convencido que o estilo cooperativo, levando ao apoio mútuo, não só predominava no geral mas também caracterizava as criaturas mais avançadas de qualquer grupo – formigas entre os insetos, mamíferos entre os vertebrados. O apoio mútuo tornou-se, portanto, um princípio mais importante que a competição, a rivalidade e o morticínio:
Se nós (…) perguntarmos à Natureza: “quem são os mais aptos: aqueles que lutam continuamente entre si ou aqueles que se apoiam mutuamente?”, perceberemos de imediato que aqueles animais que adquirem hábitos de apoio mútuo são indubitavelmente os mais aptos. Eles tem mais chances de sobreviver e, em suas respectivas classes, de atingir o desenvolvimento máximo da inteligência e da organização corporal.
Se perguntarmos por que Kropotkin preferiu a cooperação enquanto a maioria dos darwinianos do século XIX advogava a competição como o resultado predominante da luta na natureza, dois grandes motivos se destacam. O primeiro parece menos interessante, por ser óbvio em face do princípio ligeiramente cínico mas absolutamente realista de que os verdadeiros crentes tendem a acrescentar por inferência suas predileções à natureza. Kropotkin, o anarquista que ansiava substituir a regência de um governo central pelo consenso das comunidades locais, certamente esperava encontrar uma nítida preferência pelo apoio mútuo na mais intima essência evolutiva de nosso ser. Se o apoio mútuo permear a natureza, então a cooperação humana se tornará uma simples instância da lei da vida.
Nem os poderes opressivos de um Estado centralizado nem os ensinamentos de ódio recíproco e combate inclemente – que, adornados com os atributos da ciência, partiram de filósofos e sociólogos obsequiosos – poderiam eliminar o sentimento de solidariedade humana alojado no fundo do entendimento e do coração do homem, pois dói acalentado por toda a nossa evolução precedente.
Mais esclarecedor é o segundo motivo, um bem-vindo aprendizado empírico proveniente da própria experiência de Kropotkin enquanto naturalista e uma confirmação da intrigante tese de Todes segundo a qual o fluxo habitual de ideologia para a interpretação da natureza pode às vezes ser revertido, com a paisagem natural tingindo as predileções sociais. Na juventude, muito antes de sua conversão ao radicalismo político, Kropotkin passou cinco anos na Sibéria (de 1862 a 1866), pouco depois de Darwin publicar A origem das espécies. Ele esteve lá como oficial militar, mas seu posto serviu como um conveniente disfarce para o seu desejo de estudar geologia, a geografia e a zoologia do vasto interior da Rússia. Lá, no inverso polar das experiências tropicais de Darwin, ele conheceu o meio ambiente menos conducente às concepções de Malthus. Observou um mundo escassamente povoado, varrido por frequentes catástrofes que ameaçavam as poucas espécies capazes de encontrar refúgio em tamanha aridez. Como um discípulo potencial de Darwin, Kropotkin tentou achar competição e rivalidade, mas raramente as encontrou. Pelo contrário, constatou repetidamente as vantagens do apoio mútuo para se suportar uma desolação externa que ameaçava todos igualmente e não poderia ser vencida por meios análogos aos da guerra e do boxe.
Kropotkin, em suma, tinha um motivo pessoal e empírico para favorecer a cooperação como uma força da natureza. Ele escolheu justamente este tema para o parágrafo de abertura de Apoio Mútuo:
Dois aspectos da vida animal mais me impressionaram durante as viagens que fiz na juventude pelo Leste da Sibéria e Norte da Manchúria. Um deles foi a extrema severidade da luta pela existência que a maioria das espécies de animais precisa empreender para sobreviver frente a uma Natureza inclemente; a tremenda destruição da vida que periodicamente resulta de agentes naturais; e a consequente exiguidade de vida ao longo do vasto território que esteve sob minha observação. E o outro foi que, mesmo naqueles poucos locais onde a vida animal era abundante, eu não consegui encontrar – embora tenha buscado ansiosamente – a luta feroz pelos meios de existência entre animais pertencentes à mesma espécie que foi considerada pela maioria dos darwinistas (embora não pelo próprio Darwin) a característica dominante da luta pela vida e o fator principal de evolução.
O que podemos dizer do argumento de Kropotkin hoje, e o de toda a escola russa que ele representava? Terão sido apensa vítimas de uma esperança cultural e de um conservadorismo intelectual? Não acredito. Na realidade, eu diria que o argumento básico de Kropotkin está correto. Há, de fato, diversos modos de luta, alguns levando à cooperação entre os membros de uma espécie como o melhor caminho para o proveito individual. Se ele enfatizou excessivamente o apoio mútuo, a maioria dos darwinistas da Europa exagerou igualmente a competição. Se ele extraiu uma esperança imprópria de reforma social a partir de sua concepção de natureza, outros darwinianos erraram com idêntica firmeza (e por motivos que a maioria de nós hoje renegaria) ao justificarem as conquistas imperiais, o racismo e a opressão dos trabalhadores industriais como consequências implacáveis do modo competitivo de seleção natural.
Só encontro falha em dois aspectos de suas ideias – um técnico, o outro geral. Kropotkin, de fato, cometeu um erro conceitual comum ao não reconhecer que a seleção natural é um argumento sobre vantagens e benefícios para cada organismo, por mais que possam lutar entre si. O resultado da luta pela existência pode ser a cooperação e não a competição, mas no universo das explicações de Darwin o apoio mútuo tem que beneficiar cada organismo individualmente. Kropotkin às vezes menciona o apoio mútuo como sendo selecionado para o benefício de populações ou espécies inteiras – um conceito estranho à lógica darwiniana clássica (na qual os organismos procuram, ainda que inconscientemente, o seu próprio benefício em termos de genes transmitidos a gerações futuras). Por outro lado, é verdade que ele reconhece (e com frequência) que a opção pelo apoio mútuo beneficiaria diretamente cada indivíduo em sua luta pelo triunfo pessoal. Assim, se não chegou a compreender a plena implicação do argumento básico de Darwin, certamente incluiu a solução ortodoxa como a sua justificativa principal do apoio mútuo.
Num âmbito mais geral, eu gosto de aplicar uma regra empírica em tanto cínica quando se trata de julgar argumentos sobre a natureza que também tem claras implicações sociais: quando uma afirmação confere à natureza exatamente aquelas propriedades que nos fazem sentir bem ou que alimentam nossos preconceitos, devemos ser duplamente cautelosos. Eu desconfio especialmente de argumentos que encontram bondade, mutualidade, sinergismo, harmonia – os próprios elementos que nós tanto nos esforçamos, e geralmente com tão pouco sucesso, para incorporar em nossas vidas – intrinsecamente na natureza. Não vejo evidência alguma para a noosfera de Chardin, para o estilo californiano do holismo de Capra, para a ressonância mórfica de Sheldrake. Gaia me parece mais uma metáfora que um mecanismo. (As metáforas podem iluminar e libertar, mas novas teorias científicas tem que afirmar algo novo sobre causalidade. Gaia, para mim, parece apenas reformular, em termos diferentes, as conclusões básicas a que chegaram há muito tempo os argumentos classicamente reducionistas da teoria da ciclagem biogeoquímica.)
Não há atalhos para a percepção moral. A natureza não é intrinsecamente nada que possa nos oferecer conforto ou consolo em termos humanos – mesmo que seja porque a nossa espécie é um insignificante advento tardio em um mundo que não foi preparado para nós. Tanto melhor. As respostas a dilemas morais não estão lá fora, esperando para ser descobertas. Estão, como o reino de Deus, dentro de nós – o local mais difícil e inacessível para qualquer descoberta ou consenso.
Texto retirado de: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2013/02/516683.shtml